quinta-feira, 2 de julho de 2020

Autoridade científica e fraude universal


          O sentimento nacional é um elo que une pessoas de diferentes histórias, mas que compartilham principalmente de uma mesma língua e cultura. Max Weber define a nação como uma "espécie particular de comoção" que compartilha de valores comuns e é dirigida por um poder político. A língua é o principal elemento desta unidade, pois permite a troca comum de valores, informações, bens; viabiliza a unidade de cultura restrita a grupo específico de pessoas. Deste espectro bebe o nacionalismo

          O século XX viu no nacionalismo o elemento base para a guerra. A mobilização das massas, inimaginável antes da era moderna na escala como vemos hoje, tornou-se possível pela autoridade política centralizada e o comando burocrático do Estado. O sentimento nacional transformou-se no combustível de um aparato super-poderoso inédito até então.

          Os nacionalismos exacerbados e as ideologias totalitárias fizeram deste aparato o veículo para a manipulação de suas próprias sociedades e a destruição daqueles que imaginavam seu inimigos, como foram o nazi-fascismo na expansão territorial e o imperialismo na conquista de povos "primitivos". Mesmo o comunismo, com seu apelo universal arrebatador, mas carente de uma raiz cultural profunda, aproveitou-se deste sentimento. Na China, Rússia, Camboja ou Cuba, este sistema de poder moldou-se a cada uma das realidades. O dia 9 de maio, por exemplo, marca para os russos vitória na Segunda Guerra Mundial, mas o regime soviético comandado Stálin batizou de Grande Guerra Patriótica.

          Este tipo nacionalismo, capturado e transformado pelo totalitarismo, sempre alegou pretensões "científicas" para seus horrores, fossem eles com bases supostamente raciais, sociais ou nacionais.

          Julien Benda, no clássico "A Traição dos Intelectuais", joga uma luz nesta pretensão científica formulada por pensadores que, abandonando seus valores de justiça, verdade e razão, viram na mobilização das massas por meio do sentimento nacional uma forma de realização daquilo que nomeou de paixões.

          Importante atentar para a passagem onde Benda aponta as paixões políticas que os intelectuais de sua época dotaram de fundamentos "científicos", estabelecendo fórmulas definidas do interesse e do orgulho nacional.

"Acrescentemos que nosso tempo introduziu na teorização das paixões políticas duas novidades que não deixam de intensificá-las singularmente. A primeira é que hoje cada uma pretende que seu movimento esteja de acordo com o 'sentido da evolução', com o 'desenvolvimento profundo da história'; (...) essa não é senão a antiga vontade de ter o destino a seu favor, disposto porém de forma científica. E isto nos conduz à segunda novidade: a pretensão que têm hoje todas as ideologias políticas de estarem fundadas sobre a ciência, de serem o resultado da 'estrita observação dos fatos'."

          Ressalvo aqui as passagens que dão ao sentimento nacional a autoridade suprema sobre a humanidade: a evolução de acordo com o "desenvolvimento profundo da história" com base na "estrita observação dos fatos". Com esta autoridade auto-evidente, quem ousaria questioná-la?

          Na obra "O Jardim das Aflições", Olavo de Carvalho observa neste movimento o fenômeno do historicismo, que consiste em dirigir a vida social para um futuro ideal localizado num período indeterminado. O Estado moderno é o instrumento de realização deste ideais, aqui encarnado pelo nacionalismo. É o que o autor chamou de "deuses do tempo", a submissão da humanidade ao poder estatal capaz de realizar a fórmula da sociedade ideal.

          A suposta "autoridade científica" atribuída ao nacionalismo moderno (e Benda afirma que as paixões políticas são um fenômeno característico da era moderna) é evocada não apenas ao sentimento nacional, mas às questões globais. O processo de transformação do Estado-nacional moderno num Estado mundial é o que Olavo vai identificar como globalismo, a apoteose a realização histórica da humanidade.

          Desde o início da epidemia do coronavírus, a todo o instante somos bombardeados pela televisão a respeito das condutas corretas de como lidar com a doença e temos nossas liberdades mais básicas, como a de ir e vir, restringidas pelas autoridades públicas.

          Mas qual é a justificativa utilizada para afirmar que estas imposições e normas de conduta são de fato necessárias e corretas para lidar com o vírus? De que estas são orientações dadas por especialistas. E esta afirmativa é válida em escala global, possuem a mesma validade, em linhas gerais, para todas as pessoas em todo o mundo.

          Acima da autoridade formal dos governos e da fé pública nos jornalistas está a alegada "autoridade científica" daqueles que conhecem a doença.

          Dada a amplitude, complexidade e desconhecimento do tema, como comentei em outra postagem, não surpreende que os mesmos organismos que alegam a autoridade da ciência são aqueles que entram em contradições consigo mesmos e solapam o real conhecimento científico.

          Os intelectuais de Benda são hoje tanto os especialistas representantes da "autoridade científica" como os jornalistas formadores de opinião, sendo estes últimos não os porta-vozes das nações, mas da humanidade inteira. É o apelo não à comunidade unida por um mesmo sentimento, como dizia Weber, mas à fraternidade universal, a união da humanidade inteira sob a mesma bandeira, o mesmo destino, a mesma mobilização, seja em nome da saúde ou de outra "causa".

          Se no século XX e ainda no XXI, o sentimento nacional é um veículo eficaz de mobilização para a guerra, como alerta Benda, a fraternidade universal baseada na "autoridade científica" não pode ser outra coisa senão uma fraude universal, pois carece de respaldo popular e elementos reais de unidade, e que resultará apenas em medo e caos na mesma proporção.

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