sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Conhecimento muito além de opiniões: a busca por verdades cruciais

(A vida possui muitas "pergunta cruciais", aquelas cuja resposta depende de um profundo esforço pessoal e fazem a diferença quando encontradas. Na foto: Biblioteca Nacional da República Tcheca, em Praga.)

Recentemente foi publicado no Youtube o áudio de uma aula do filósofo Luiz Gonzaga de Carvalho Neto realizada em 4 de junho de 2008. A aula era direcionada a funcionários de uma instituição, cujo nome não é revelado. Essa situação exigiu de Luiz Gonzaga uma breve observação no início de sua fala: todas as pessoas têm necessidade de algum conhecimento, mesmo para as coisas mais básicas do cotidiano. Mas quando esta necessidade logo é sanada, o interesse pelo conhecimento é abandonado. Dar uma aula para funcionários implicava se colocar no desafio de instigar alunos que, em princípio, não estavam lá por interesse genuíno no conteúdo, e sim para cumprir deveres profissionais ou evitar uma punição por não cumprimento da norma.

O tema da aula era a relação entre estudo e conhecimento. Luiz Gonzaga inicia sua apresentação diferenciando quatro tipos de conhecimento: aquele que utilizamos para fins meramente objetivos, como escovar os dentes, dirigir um carro, passar num concurso, etc; o que exige um aperfeiçoamento periódico, como aquele buscado por médicos, professores, cientistas, etc, preocupados em melhorar sua vida profissional; o conhecimento que é buscado com a finalidade de encontrar uma resposta específica e fazer disso uma carreira para a vida toda, como fazem escritores, filósofos, determinados cientistas empenhados na descoberta de cura para doenças ou o desenvolvimento de determinadas tecnologias; e o conhecimento voltado (este mais raro) para uma completude pessoal, para engrandecer a alma e fazer com que a pessoa sinta-se mais completa como ser humano.

(Segundo Luiz Gonzaga, grande parte do conhecimento é voltado para fins meramente utilitários, no máximo para aperfeiçoar habilidades profissionais.)

A esmagadora maioria das pessoas no mundo, e no Brasil em particular, dedicam-se às duas primeiras formas de conhecimento. Acontece que esta massa pára por aí, não indo além daquilo que é estritamente necessário saber ou para melhorar seu desempenho profissional. Isto faz com que as pessoas jamais passem do nível da opinião na esmagadora maioria dos assuntos, e que aqueles dedicados à sua especialidade profissional se tornem, no máximo, bons profissionais especializados na sua área.

(O conhecimento voltado às "perguntas cruciais", às quais determinadas pessoas dedicam toda uma vida a respondê-las, deixa um legado às gerações futuras. Na foto, catedral anglicana de Saint Paul, em Londres: símbolo da cidade, estrutura imponente, bela arquitetura e técnica revolucionária de construção para o século XVI.)

As pessoas dedicadas a responder questões pertinentes da nossa vida (que Luiz Gonzaga chama de "perguntas cruciais"), como os grandes problemas filosóficos, os melhores meios de organizar a sociedade ou de encontrar respostas para problemas pessoais ou coletivos, são aquelas que saltam da mera opinião e passam ao conhecimento. Luiz Gonzaga retoma os termos gregos doxa e episteme, que significam "opinião" e "conhecimento", respectivamente, para explicar que o primeiro dá um salto qualitativo para o segundo quando é submetido ao crivo de todas as perguntas e experiências que estão em posse do questionador. Quando um cientista, por exemplo, quer inventar um equipamento que ninguém inventou ele busca meios de superar as experiências anteriores que tentaram cria-lo sem sucesso. Isto quer dizer que tudo o que feito pelo homem foi antes pensado para depois ser aplicado, isto é, passou da mera opinião para o conhecimento e daí a sua aplicação na realidade. Os princípios que regem um sistema político, as grandes religiões (dada suas manifestações humanas) e todo o qualquer produto industrial foi antes pensado e depois aplicado, e eles hoje só existem porque são os melhores resultados de todas as experiências anteriores em seus respectivos campos.

Em grande parte do vídeo Luiz Gonzaga relaciona a capacidade humana de conhecer com a democracia. Neste texto não vem ao caso esta problemática, mas cabe aqui destacar um ponto: uma democracia só é viável, segundo o filósofo, porque há pessoas que são capazes de superar sua mera opinião e testá-la no mundo real, isto é, transformá-la em conhecimento. Nenhum povo pode exercer pressão real sobre seus governantes com o objetivo de melhorar sua condição social se não for capaz de mostrar que sua ideia é melhor do que "aquilo que está aí" e que vai muito além da mera vontade, como vemos nas reivindicações por melhores salários, "mais educação", "mais segurança", etc. Isto pressupõe um meio de alcançar a esfera de poder, já que o governante, por mais ignorante que seja, em algum momento analisou seriamente a possibilidade de como chegar lá, transformando sua mera vontade em realidade de fato. Os governados incapazes de transformar sua opinião em conhecimento consistente sobre um assunto qualquer será sempre tratado pelos governados como crianças. Alguém que, por exemplo, saiba como realmente melhorar o atendimento da saúde pública terá muito mais legitimidade e influência no sistema político do que se fizer apenas barulho reclamando por aquilo que acha que é melhor. Nenhum governo terá a legitimidade necessária para governar se sua ação não for contestada por alguém que realmente conhece os assuntos pertinentes à vida cotidiana dos indivíduos. Não há democracia se não há um número mínimo de pessoas, uma verdadeira aristocracia capaz de apresentar projetos reais para a vida, se não de todas, ao menos da grande maioria das pessoas.

(Uma vida dedicada às "perguntas cruciais" levará ao encontro de "verdades cruciais" que estarão acima da esfera das meras opiniões e ficarão como legado para outras pessoas em diversas esferas da sociedade.)

O mais importante de tudo, porém, não está nos efeitos do conhecimento na esfera política. Dedicar-se ao conhecimento, à busca da dúvida que paira sobre nossa cabeça durante grande parte de nossa vida, mexe, antes de tudo, com nossa vida pessoal. Alguém que tem uma pergunta crucial e se dedica verdadeiramente a responde-la está dando sentido à sua própria vida. Não importa se este interesse é em contribuição às outras pessoas ou para alcançar a plenitude enquanto ser humano; o que importa é a busca em si, cujo resultado dará sentido à sua existência. Ter um interesse real sobre algo é um sinal de que este algo lhe diz respeito verdadeiramente. Cabe a esta pessoa, portanto, responder à pergunta que lhe é pertinente. Não importa se o alvo é a busca por uma vacina contra a AIDS ou os critérios para educar corretamente os filhos. É a dedicação pela busca às respostas que levarão à descoberta daquilo que Luiz Gonzaga mencionou como "as verdades cruciais da vida humana". "Nem que seja uma só", completou o filósofo.

Viktor Frankl, fundador da logoterapia, fez exatamente esta busca. Ele suportou a prisão  nos campos de concentração nazistas porque tinha dois objetivos de vida: reencontrar sua mulher, a qual perdeu contato com a prisão, e continuar seus trabalhos no novo ramo de conhecimento que viria a fundar. Sua mulher morreu num dos campos de concentração, mas sua pesquisa, que veio a desembocar na logoterapia, deu rumo à sua vida. Desconheço as razões que levaram Frankl a continuar atuando na psicologia (talvez seu livro de memórias ajude a responder esta pergunta), mas certamente sua atividade científica era busca por respostas a perguntas que ele antes havia formulado. A prova da veracidade desta busca está no livro Em Busca de Sentido, onde ele explica como o desejo de continuar suas pesquisas na psicologia o motivaram (e deram sentido) a continuar vivo.

(Para Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, só é possível responder às "perguntas cruciais" individualmente, e o encontro dessas respostas faz a vida valer à pena.)

No final da aula, Luiz Gonzaga diz que as descobertas sobre questões cruciais da vida humana só podem ser feitas pela consciência individual. "Isso é único", diz ele sobre a busca. "O que torna a gente único... são as respostas que a gente pode oferecer às pessoas." A descoberta às questões cruciais inserem-se numa sequência de respostas já dadas. O importante, portanto, não é dar respostas novas a um velho problema, e sim reatualiza-lo, trazê-lo novamente ao momento presente, reforçá-lo na consciência das pessoas. Encontrar essas respostas é crucial para apostar a vida em algo que valha à pena, é dedicar-se a algo maior do que nós mesmos e que será legado para a gerações futuras. É auto-transcender-se, como diz Frankl, e é na auto-transcendência que está o sentido da vida, em algo fora, maior e mais elevado do que nós. Como conclui Luiz Gonzaga: "Isto é para você terminar a sua vida e falar: 'foi bom!'" Uma vida que foi existencialmente boa é uma vida plena de sentido.

Infelizmente há uma segunda parte da aula que não está disponível no Youtube. De qualquer forma esta lição de vida é inspiração para ampliar nossos horizontes e, por que não, legar às pessoas com as quais vivemos respostas que elas gostariam de ter mas são incapazes de possuir. Isto é mais do que ser um aristocrata. É ser bom.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Igreja 3: Paróquia São João Bosco

(Igreja da Paróquia São João Bosco, ao lado do Colégio Dom Bosco, visto da Rua Dr. Eduardo Chartier esquina com Rua Américo Vespúcio. Foto de 13 de outubro de 2016.)

No meu último texto sobre as igrejas de Porto Alegre abordei a Paróquia Santa Maria Goretti, no bairro de mesmo nome. Vamos agora à outra igreja, a da Paróquia São João Bosco.

A Paróquia São João Bosco, também conhecida apenas como Dom Bosco, localiza-se no bairro Higienópolis na Zona Norte da cidade. Sua fachada está virada para oeste. A região é plana e baixa, mas a igreja está num terreno levemente elevado a aproximadamente 22 m acima do nível do mar na Rua Dr. Eduardo Chartier esquina com a Rua Mal. Simeão e ao lado do colégio de mesmo nome. Sua origem está vinculada a esta instituição, que é mais antiga.

Colégio Salesiano Dom Bosco foi fundado pelo padre salesiano José Mássimi, de Rio Grande. Em 1943 o sacerdote conseguiu junto ao então prefeito de Porto Alegre, Loureiro da Silva, a aquisição de um terreno para a construção do atual colégio. A ideia inicial era ocupar todo o atual quarteirão, mas lentamente e com muitas dificuldades o edifício que daria origem à escola foi construído e inaugurado (ainda incompleto) em 19 de março e 1952 com o nome Casa do Pequeno Operário. O nome era uma homenagem ao patrono São José Operário comemorado neste mesmo dia.  

(Vista aérea da Vila IAPI, sem data, onde se destaca a Av. Brasiliano de Moaris. O Colégio Dom Bosco aparece acima à esquerda em forma de "C". O terreno aberto do lado direito do prédio é o terreno da atual igreja.) 

A Paróquia São João Bosco seria criada pouco mais de dez anos depois por um decreto do então Arcebispo Dom Vicente Scherer em 8 de agosto de 1962. Seu território fora desmembrado das paróquias vizinhas Nossa Senhora Auxiliadora, São João Batista e Nossa Senhora de Fátima, no IAPI. Já a inauguração da igreja ocorreu em 23 de setembro do mesmo ano, e o primeiro pároco foi o padre Victor Vicenzi, salesiano e então diretor da Casa do Pequeno Operário. (Cabe notar que um convite para a primeira quermesse da igreja, em 1º e 2 de junho de 1962, com o objetivo de arrecadar fundos para a construção da nova igreja - seria o salão do colégio? - já chamava o local de "paróquia". Isso mostra que que a comunidade já sabia que uma nova paróquia seria criada.)

(Celebração no salão do Colégio Dom Bosco onde funcionou a paróquia de 1969 até provavelmente 2002.*)
  
(Altar construído dentro do salão. Em destaque a imagem de São João Bosco. Reparem nas paredes e na luminária, que não condizem com uma igreja.*)

A sede da nova paróquia não era uma igreja, e sim uma das dependências do colégio. Apenas em 1969 foi fechado um acordo entre as partes para uso do salão da instituição de forma permanente por parte da paróquia, que ficaria com a responsabilidade de fazer sua manutenção. A inauguração do novo local ocorreu em 2 de agosto do mesmo ano pelo então Arcebispo Auxiliar de Porto Alegre Dom Edmundo Kunz. O salão era organizado e ornamentado para a realização da missas com um altar improvisado sobre um palco levemente elevado em relação à multidão, e bancos para assentar várias dezenas de pessoas (pela primeira fotografia acima é difícil fazer um cálculo preciso, mas 200-300 pessoas parece um número razoável).

Depois de muita expectativa, a construção da igreja atual começou a ser planejada no primeiro semestre de 1996 numa reunião com o pároco, o direto do colégio e membros salesianos. Com o apoio financeiro do Reitor-Mor dos salesianos, paroquianos e demais colaboradores, a nova igreja da Paróquia São João Bosco foi construída no terreno baldio ao lado do colégio e foi projetada, segundo o atual pároco, pela arquiteta Rejane Buffon. A inauguração ocorreu em 12 de outubro de 2000 com a presença do Arcebispo Dom Dadeus Grings, 33 sacerdotes e mais de 300 jovens de instituições salesianas do Rio Grande do Sul, o que deixou o prédio lotado. É provável, portanto, que o salão do colégio estivesse ocupado até este ano. A bênção solene do templo apenas em 2002, no dia 24 de maio, com a presença de Dom Dadeus e 18 sacerdotes salesianos numa celebração que lotou a igreja. Esta data foi escolhida por ser dia de comemoração de Nossa Senhora Auxiliadora, padroeira da Congregação Salesiana Dom Bosco.* Nesta época o pároco era Valdir Andreatta, que hoje está em Itajaí, SC.

Durante boa parte de 2016 a igreja permaneceu fechada devido à violenta tempestade que atingiu Porto Alegre na noite de 29 de janeiro. Muitas telhas voaram com a força do vento, a água da chuva penetrou no interior e o gesso que revestia o interior da nave desabou. Durante quase oito meses o edifício passou por reformas e foi reaberto com uma celebração no final do mês de setembro.

(Extremidade da torre com a cruz, ambos de concreto: única expressão explicitamente religiosa na estética da igreja. Pontas de concreto parecem apontar para a cruz. Foto de 26 de setembro de 2016.) 

(Vista da igreja do outro lado da Rua Eduardo Chartier. Mesma data.)

Localizado num terreno ao lado do Colégio Dom Bosco, a paróquia está sob cuidados do pároco Tarcísio Luís Brasil Martins*. Sua igreja tem aspecto de uma grande residência com revestimento de concreto, tinta branca e telhas cinza-escuro, lembrando uma casa germânica (quem souber o estilo arquitetônico, agradeço desde já). Apesar do grande telhado curvado, seu ponto mais alto é a torre com aproximadamente 30 m de altura, que atravessa as telhas e está firmada sobre a escadaria em basalto da fachada. A única representação cristã explícita no exterior é a cruz no alto da torre. De formato retangular, a torre é feita de concreto, pintada totalmente de branco e possui paredes lisas pontiagudas em dois os lados. Olhando com atenção as paredes parecem representar direções para o alto como se apontassem para a cruz (difícil alguém que não é arquiteto definir o estilo e as figuras que supostamente estão ali presentes). Além da cruz há ainda os vitrais em torno da porta de entrada e na face norte da igreja virada para a Rua. Mal. Simeão, mas devido à luminosidade eles são poucos visíveis e apresentam-se escurecidos, não sendo possível identificar à primeira vista suas representações.

Apesar da imponência do edifício e da altura da torres, a igreja não é grande o suficiente para se destacar do entorno, e sua estética secularizada confunde o edifício com as construções no entorno. Na época da fundação do Colégio Dom Bosco e da criação da paróquia, a região onde hoje se encontra o bairro Higienópolis era pouco habitada. O local mais densamente povoado das redondezas era a Vila IAPI, construída nos anos 50. Quando a igreja foi inaugurada em 2002, o colégio já tinha sua feição atual. Sua fachada de três andares encobre o lado sul da igreja, claramente visível apenas há poucos metros de distância e cuja única referência é a torre. Sua visão é parcialmente encoberta pela vegetação, casas e pequenos edifícios no entorno. No lado norte, a partir da Rua. Mal. Simeão, temos a Rua Brigadeiro Oliveira Neri*, cujo traçado em curva faz com que a visão da igreja fique encoberta pelas residências. Além do mais, a estreiteza da Rua Mal. Simeão e o muro nesta lateral impedem uma contemplação de todo o prédio para os pedestres que passam pelo local. Nos fundos da igreja temos uma residência que provavelmente pertence a um pequeno complexo de quadras esportivas do Porto Alegre Tennis.

O relevo aplainado, o edifício do colégio, à malha urbana do bairro e sua estética secularizada (que defini de forma leiga como "grande residência") subtraem da Igreja Dom Bosco sua representação católica e religiosa.

* Agradeço ao padre Tarcísio pela recepção, a observação do livro tombo, o envio por e-mail do breve histórico da paróquia e o esclarecimento sobre sua data de inauguração e bênção solene.

sábado, 22 de outubro de 2016

João Paulo II: o santo que veio do lado de lá da Cortina de Ferro

(Em 22 de outubro de 1978, há exatos 38 anos, Karol Wojtyla tomava posse como João Paulo II. O Papa foi canonizado por Francisco em 27 de abril de 2014.)

Eu gosto de fazer alguns comentários sobre política. Não em entrar em discussão sobre preferências ou meramente emitir opiniões, mas de entender a realidade por detrás dos discursos e da propaganda.
Ninguém, porém, é melhor do que Deus para entender a realidade do mundo político (na verdade, ninguém é melhor do que Deus em qualquer coisa). Afinal, Ele é o próprio arquiteto do poder estabelecido. Jesus Cristo anunciou a Pôncio Pilatos que o poder que o governador possuía só existia porque lhe fora dado do Alto (João, 19:11).

Não foi coincidência que nos tempos da Guerra Fria o Espírito Santo foi soprar na Polônia e trazer ao trono de Pedro o Papa João Paulo II. Neste 22 de outubro completam-se 38 anos de sua posse, ocorrida em 1978.

(Duas milhões de pessoas em Varsóvia, Polônia, em junho de 1979: a eleição de João Paulo II como Papa ajudou a encerrar o regime comunista no país.)

No ano seguinte o novo Papa visitou seu país, onde duas milhões de pessoas foram recebê-lo nas ruas de Varsóvia. Apesar da dura repressão, principalmente através da polícia secreta, o regime comunista da época tinha alguma flexibilidade e, claro, não podia reprimir uma multidão daquela proporção. Dez anos depois o Muro de Berlim vinha abaixo e, num jogo de dominó, arrastou todo o bloco do leste até desmantelar a toda-poderosa União Soviética. O fim da superpotência foi oficializado em 25 de dezembro de 1991, no Natal, no meu entender um sinal claro da revelação de Jesus a Pilatos. Os regimes comunistas tinham como uma de suas principais características o ateísmo oficial, e uma das consequências era a repressão religiosa e a disseminação doutrinária do ateísmo. E não é necessário entrar no mérito do genocídio, o que desqualificaria esses regimes por mais religiosos que fossem.

(Cerimônia de consagração do mundo e da Rússia na Praça São Pedro em 25 de março de 1984: segundo Gabrielle Amorth, a Rússia não foi mencionada no evento. Teria havido também resistência por parte do clero no mundo à consagração.)

Deus deu ao mundo sinais gritantes durante o pontificado de "João de Deus" que, como bom santo, se exauria nas viagens pelo mundo e morreu em sacrifício pela Igreja. Infelizmente João Paulo II não conseguiu realizar alguns de seus sonhos como uma visita à China e à Rússia, neste último caso em razão da classificação do país como território canônico da Igreja Ortodoxa Russa. Na ocasião da visita à Ucrânia em junho de 2001, país de maioria ortodoxa, houve muita resistência por parte dos líderes da igreja russa local em receber e aceitar a presença de um Papa católico numa viagem por eles considerada proselitista. Havia também a pendência em torno de um tema que lhe era caro: a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria que, segundo o recém falecido exorcista Gabrielle Amorth, não teria sido realizada conforme a revelação de Nossa Senhora à irmã Lúcia no ano de 1929 devido à pressão de dentro do Vaticano (escreverei sobre isso num momento oportuno e publicarei tanto aqui quanto no meu outro blog).  

(Aparição pública do Papa em 27 de março de 2005, cindo dias antes de sua morte: sacrifício até o fim.)

São João Paulo II  tinha uma missão clara: resgatar parte da humanidade, particularmente parte da cristandade, que estava sob domínio de um poder político explicitamente anticristão. Wojtyla era devoto de Nossa Senhora, particularmente de Fátima. Foi sob este título que a Mãe de Deus alertou sobre os "erros da Rússia" ao três pastorinhos ainda em 1917, quando realizou o primeiro pedido de consagração do país. Com o resgate da cristandade sob julgo comunista caberia ao Papa unir os cristãos e dar fim à divisão de 1054 causada pelo cisma ortodoxo. Não foi coincidência, repito, que Deus, depois de mais de 400 anos, foi buscar um Papa fora da Itália e justamente num dos raros países de forte tradição católica sob julgo comunista. João Paulo II não conseguiu realizar tudo o que desejava. Ele tinha meio mundo contra sua missão, mas suportou o peso do trabalho até o último minuto, o último suspiro, o último momento. Sua disposição era prova de que o Senhor nele habitava. Sua santidade não foi coincidência ou mera propaganda católica. Na sua disponibilidade e limitações, ele fez muito mais do que um ser humano comum faria. Sua missão foi cumprida.

Russos, livros e bebidas: testemunhos de um estereótipo

(Rússia e vodka: combinação que não é exatamente um estereótipo.)

Quem acompanha brevemente meus escritos na internet sabe que tenho o blog "A Rússia e o Mundo" onde publico análises e comentários sobre política, história e cultura da Rússia. Para tentar entender um pouco realmente que país é este e quem são os russos (tanto em sua concepção étnica quanto nacional, como didadicamente distingue Angelo Segrillo no seu livro "Os Russos"), busco acompanhar alguns eventos que tratam de temas a respeito da cultura. E ainda por cima encarei o desafio de aprender a língua russa.

Comecei as aulas de russo em agosto deste ano. Minha professora Elena é diretora do Instituto Cultural Russo. Nossas aulas ocorrem uma vez por semana, salvo percalços criados pela agitada agenda da professora.

(Letras e fonéticas do alfabeto russo.)

A primeira dificuldade é conhecer o alfabeto cirílico. O mais complicado no aprendizado para quem fala português não é, no meu entender, conhecer as trinta e três letras do alfabeto (alguma extremamente esquisitas, como o "jé", cuja escrita é um asterisco de seis pontas, ou o "iú", escrito como IO vinculados por um traço), e sim não confundir a letra de forma com a fonética em português. Por exemplo: a letra "H" tem som de "N" em português; o "N" invertido tem som de "I"; o "B" de "V", "Y" de "U"; e a escrita similar ao número "3" som de "Z". Tornar estas associações natura naturais sem confundir com a fonética do português dá frequentes curto-circuitos nos meus neurônios. 

(Entre os russos é comum os encontros serem acompanhados pela vodka, cujo hábito é não tomar só.)

Mas como boa russa que minha professora é, natural da cidade de Krasnoiarsk no sul da Rússia, ela nos ensinou uma das coisas mais comuns do país: as bebidas. Estão lá os vinte nomes de bebidas listados em russo no meu caderno, da água ao conhaque. Elena nos contou que a imagem do russo beberrão de vodka é verdadeira, e que nos encontros sociais é extremamente comum o uso da bebida. É "tradição" entre os russos tomar a vodka em três pessoas, e a razão é bastante prática: depois de muitas doses alguém acaba tonto, incapaz de sair caminhando por aí, restando dois para ajudar. É comum ver na rua duas pessoas carregando um bêbado, como também são comuns os casos de atropelamento de pessoas sob efeito do álcool. Inclusive é pouco educado recusar uma bebida quando se é convidado a um encontro. Ser russo é estar realmente familiarizado com a vodka.

(Uma das vitrines da Rússia, São Petersburgo possui arquitetura essencialmente europeia. Em destaque a cúpula dourada da Catedral de Santo Isaac, de estilo neoclássico, ao contrário do bizantino das demais igrejas ortodoxas.)

Outro exemplo do comportamento dos russos tive na semana passada quando assisti a uma aula ministrada pela professora de literatura russa da UFRGS Denise Regina de Sales sobre a cidade de São Petersburgo.  O tema era a cidade pela ótica de dois ex-moradores e famosos escritores: Nikolai Gogol (1809-1852) e Fyodor Dostoyevsky (1821 - 1881). Fui ao encontro mais atraído em conhecer a história da cidade do que a visão que seus famosos escritores tinha dela, cujas obras, confesso com um pouco de vergonha, ignoro por completo. Interessante notar que esta cidade, fundada em 1703 pelo czar Pedro, o Grande, rivaliza com Moscou não só como capital histórica do país, mas também por suas associações simbólicas e culturais. São Petersburgo é a cidade masculina, ocidentalizada, aberta, jovem; Moscou é a cidade feminina, propriamente russa, reservada e mais antiga.

       
                  (Gogol e Dostoyevsky: ex-moradores de São Petersburgo dão vida à cidade.)

Enquanto ouvíamos os trechos dos autores lidos pelos alunos da aula entrávamos e imaginávamos as cenas às quais Gogol e Dostoyevsky nos transportavam. Tive de ler dois trechos deste último, e fiquei impressionado com o mergulho que o leitor fazia no corpo do personagem bem como no ambiente físico. Brinquei por um momento que o aprisionamento emocional descrito pelo personagem de Dostoyevsky era angustiante e me levaria a ficar sem ar. Infelizmente não me recordo da fonte dos trechos. De qualquer forma a experiência foi muito válida porque me ajudou um pouco a ter uma breve ideia da dimensão do impacto da literatura russa do século XIX no mundo todo.  e de minha ignorância sobre o tema.

(Pushkin: orgulho nacional.)

O que também chamou minha atenção foi, segundo os relatos, o valor que os russos dão à literatura e à cultura do país. Além da professora, muitos alunos já estiveram na Rússia. Um dos presentes comentou em dado momento que um amigo(a) em viagem ao país contemplou o busto de um homem num local público. Depois perguntou a uma pessoa próxima de quem se tratava. A pessoa ficou assombrada com a ignorância da pergunta. Ela não entendia como alguém não sabia de quem era a representação. O busto era do poeta Alexander Pushkin (1799-1837), nascido em Moscou e falecido em São Petersburgo, considerado pelo russos o maior de todos os seus escritores. Na medida em que a pessoa explicava à visitante quem era Pushkin, apareceu um policial para ver o que estava acontecendo. Mas o policial foi tragado pela conversa. Depois vieram outras pessoas e mais outras formando um aglomerado de indivíduos que discutiam em grupo quem era Pushkin. Isso denota que o poeta tem alguma fama em seu país de origem. Diria, pelos comentários da professora e dos alunos, muita fama.

É claro que os relatos acima não resumem quem são os russos, nem dão forma acabada a este povo. Associar russos com vodka e literatura é mais ou menos como associar brasileiros à samba e futebol. É uma associação meramente popularesca. Diz pouco sobre a sociedade, ou mesmo distorce sua verdadeira identidade. Vodkas à parte, quem dera fôssemos também nós apaixonados pelos intérpretes de nossa pátria, e não unicamente pelas diversões passageiras. Faria um bem danado à nossa mentalidade e à auto-estima. Mas resgatar uma cultura que foi substituída pelas paixões mais superficiais e efêmeras será um trabalho que levará gerações.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Igreja 2: Paróquia Santa Maria Goretti

(Fachada da Paróquia Santa Maria Goretti vista do canteiro central da Rua Rio São Gonçalo, em 28 de setembro de 2016. Do lado esquerdo da foto está parte da estrutura do estádio do Clube São José.)

          Em meu último texto sobre as igrejas de Porto Alegre analisei a igreja da Paróquia Santo Antônio do Partenon. Ali observei que a construção é a mais importante da região por estar localizada quase no topo do Morro Santo Antônio e pelo destaque dado à torre, com mais de 30 m de altura. Também descobri que o edifício, com misturas de estilos, mais moderno e oficialmente concluído em 1934, foi escolhido em detrimento de um modelo gótico.

          Continuando o estudo sobre as igrejas da cidade vamos agora para a Paróquia Santa Maria Goretti. Ela está localizada no bairro do mesmo nome na Zona Norte de Porto Alegre, na Rua Rio São Gonçalo entre as avenidas Assis Brasil e Sertório. Com a fachada virada para o leste, seu terreno está sobre a bacia do Rio Gravataí numa região baixa, plana e quase ao nível do mar. Chama a atenção que o edifício está numa esquina ao lado do campo de futebol do Clube São José, situação única entre as igrejas da cidade.

          Segundo o histórico disponível no seu site*, a origem da Paróquia Santa Maria Goretti está vinculada ao padres palotinos. Em 1950 estes padres assumiram a Paróquia Nossa Senhora de Fátima, na recém construída Vila IAPI, também na Zona Norte. Lá rezavam o terço em homenagem à Santa Maria Goretti. Depois de serem transferidos à paróquia vizinha, a Divino Espírito Santo no bairro Vila Floresta, os padres construíram uma grande capela em madeira dedicada à Santa Maria Goretti. Esta capela estava localizada numa área pobre à oeste da sede da Divino. Em 30 de dezembro de 1957, a capela foi elevada à paróquia, e o padre Santo Lorenzato foi seu primeiro pároco. Em seguida foi erguido um salão paroquial em madeira e uma casa paroquial de alvenaria.
  
          Dois meses depois de construída a casa paroquial*, um grande incêndio destruiu a paróquia. Ele aconteceu às 10 h da manhã de 3 de junho de 1960, uma sexta-feira, e em trinta minutos a igreja estava destruída. Uma campanha liderada pelo arcebispo Dom Vicente Scherer e o Instituto Vicente Palotti lançaram uma campanha entre paróquias e rádios da época para arrecadar fundos à construção de uma nova igreja. Como parte desta mobilização, em 5 de junho, um domingo, houve uma missa campal com mais de mil pessoas, onde foi arrecadado dinheiro. Em 5 de julho os palotinos fizeram a doação do altar, e as irmãs do antigo Hospital Lazarotto doaram a imagem da padroeira, que permanece na igreja até hoje. Estas doações foram feitas em nova missa celebrada no mesmo dia no Instituto Vicente Palotti. Após a celebração foi realizada uma procissão até o local do incêndio com a presença de quase duas mil pessoas e diversos sacerdotes.

          A nova igreja foi construída em material e é a mesma dos dias de hoje. Seu edifício passou por uma reforma em torno de 1980, já que a fachada e a torre estavam inacabados. O objetivo era concluir a obra e melhorar a fachada do edifício. O projeto, autorizado pela Arquidiocese de Porto Alegre, foi elaborado pelo Dr. Vitor Fuhrmeister. Segundo o pároco da época, Eugenio Driessen, Furhmeister "modificou o aspecto da igreja de forma surpreendente" dizendo que isto iria "embelezar todo o bairro". Exageros à parte, a fachada foi totalmente modificada, recebendo novas janelas, acabamento, e a torre da igreja, que apresentava o aspecto de um esqueleto inacabado, foi completada. As fotos abaixo mostram o antes e o depois da obra.*

(Antes. Visão do outro lado da Rua Rio São Gonçalo. A casa paroquial está à direita da foto.)
  
(Depois. Visão do outro lado da rua.)

          Desde então a Igreja Santa Maria Goretti apresenta o mesmo aspecto, porém com manchas escuras e a perda da tintura devido à ação do tempo. Já o revestimento da fachada acima da porta foi modificado, contando possivelmente com novo revestimento no lugar da tinta branca.

(Detalhe da torre com a cruz e o campanário.)

          A torre da igreja possui aproximadamente 11,5 m de altura, está localizada no lado direito da fachada e é revestida em tijolo. Com os pouco mais de 2 m da cruz acima, sua altura total é de aproximadamente 13 m. A cruz é totalmente lisa, não possui qualquer ornamentação e apresenta desgaste pela ação do tempo. Na torre há quatro janelas logo abaixo de seu topo com pouco mais de 2 m de altura formando um espaço aberto onde localiza-se o campanário. O sino está suspenso por uma estrutura metálica junto ao teto, e todo o conjunto é visível por através das janelas. Logo abaixo da abertura há uma janela com formato que lembra uma flor e um vitral representando uma cruz e raios de luz saindo de seu centro.

(Detalhe do vitral da torre logo abaixo do campanário.)

          O edifício como um todo apresenta um aspecto moderno, reto, sem ornamentações externas (quem souber seu estilo arquitetônico, desde já agradeço). As únicas referências religiosas externas são a torre com a cruz e o campanário, os vitrais da torre e da janela central da fachada frontal (que apresenta uma imagem da padroeira), uma cruz no revestimento acima desta janela e o nome da paróquia escrito num banner acima da porta de entrada. No seu todo a igreja lembra um edifício comercial com poucas caracterizações típicas de uma igreja e carece de representações religiosas. Com exceção da torre e da cruz acima, todas as demais representação são muito discretas. Sua localização compete com o campo de futebol do São José, de longe a maior construção do bairro e principal referência geográfica da região. Segundo o pároco Paulo Inácio Labres, que está a seis anos na paróquia e me recebeu para uma conversa em sua casa paroquial no dia de minha visita, a torre é o principal chamativo da igreja. Segundo ele os moradores que moram algumas quadras à frente enxergam a torre de longe e a usam como referênci para localizar o prédio. Apesar do estádio ao lado, a torre é um dos pontos altos do bairro onde a maior parte das edificações é composta por casas e edifícios baixos de empresas. 

          O caso de Paróquia Santa Maria Goretti é um claro exemplo de como a estética pode subtrair sacralidade de um edifício religioso. A falta de representações religiosas, o estilo moderno e retilíneo, a falta de conservação (ao menos externamente) e a localização ao lado de um estádio de futebol, que acaba por encobrir a relevância do prédio, dissolvem a religiosidade que a construção poderia representar. Ao contrário da Santo Antônio do Partenon, a localização geográfica da igreja também não ajuda já que edifício está no mesmo nível dos demais e qualquer construção nova de maiores dimensões acabará por abafar a presença da igreja. Esta presença marcante poderia ser compensada por uma forte representação estética e simbólica, mas esta representação é quase ausente na Santa Maria Goretti.

* Agradeço ao pároco Paulo Inácio Labres pelo ótimo acolhimento, as fotografias e algumas informações históricas da paróquia.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O furacão Matthew e a Torre de Siloé

(Haiti depois da passagem do furacão Matthew.)

Querem saber o que é igualdade? Vejam como Deus trata seus filhos: Ele faz com que o sol nasça para todos no planeta, sem exceção, e permite que um mesmo furacão varra lugares tão díspares como o Haiti e os EUA.

Não estou justificando a tregédia provocada pelo furacão Matthew, e sim o fato de que a realidade em que vivemos se impõe de tal forma que qualquer diferenciação sociológica estabelecida entre as pessoas é uma mera convenção humana. Somos, sim, diferentes, mas porque Deus quis, e não desiguais, porque aos Seus olhos a filiação, a origem e o fim de nossa trajetória de vida são os mesmos.

(Representação da queda da Torre de Siloé: o sofrimento de uma tragédia não é sinal de um julgamento moral. Todos, sem exceção, estão expostos a acontecimentos fora do nosso controle.)

A igualdade está no plano espiritual. Jesus diz no Evangelho de Lucas (13:1-5) que não cabe a nós julgarmos os atingidos pelas tragédias, a exemplo da Torre de Siloé por Ele mencionada, porque não sabemos dos pecados alheios. Quem sabe é Deus e, portanto, só Ele pode julgar se uma tragédia é ou não "merecida".

(Clássico em português de Robert Dahl: a igualdade política é sempre imperfeita.)

Toda a igualdade é imperfeita, e a democracia é, até os dias de hoje, o regime político que até agora mais teria se aproximado deste ideal igualitário. Foi o que analisou o cientista político Robert Dahl no seu clássico Poliarquia. Para ele todas as democracias têm como parâmetro a poliarquia, a democracia perfeita, justamente porque buscam permanentemente a perfeição (e sempre com diversos percalços, como mostram as democracias europeias que sucumbiram à tirania no período entre-guerras). Democracias buscam o equilíbrio perfeito entre participação e oposição, mas sua complexidade, da desigualdade econômica aos traços culturais dos povos, desequilibram a balança.

Qualquer pretensão de total igualitarismo é falha e fadada ao erro, seja no seu plano político, e mais ainda no plano econômico à exemplo do comunismo. Nenhum sistema é capaz de dar à humanidade tudo o que Deus deu através da criação com seus bons presentes e trágicos acontecimentos.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Igreja 1: Paróquia Santo Antônio do Partenon

(Fachada frontal e norte da Igreja Santo Antônio do Partenon. Foto tirada na manhã de 30 de setembro de 2016.)
 
          Como havia comentado em minha última postagem, estou realizando um trabalho a respeito da representação simbólica das torres das igrejas (ou da ausência delas) como referência da expressão religiosa da sociedade tendo como objetivo identificar, de forma genérica, o processo de perda da desta representação na paisagem urbana de Porto Alegre. Este pode ser um indicativo da secularização, isto é, a subtração da expressão religiosa na sociedade em seu todo dada a importância estética e simbólica das torres.

          Começarei o trabalho de campo pelas paróquias. As razões são duas: primeiro porque elas são as principais igrejas da cidade por sua relevância administrativa e por terem um sacerdote permanente; segundo porque são fáceis de serem identificadas pelo primeiro fator. Reitero que este trabalho não é científico. É, acima de tudo, de observação na tentativa de fazer um apanhado geral das igrejas da cidade.

(Torre da igreja vista da parte baixa da Rua Paulino Chaves, já no bairro Santo Antônio, à oeste.)

          A primeira paróquia é a Santo Antônio do Partenon. Sua igreja está próximo ao ponto mais alto do Morro Santo Antônio numa altitude de aproximadamente 70 m no extremo-leste do bairro Partenon, virado para o lado oeste da cidade onde se encontra o Guaíba. Apesar do lago não ser visível desde a igreja devido à presença de outra porção do morro, sua torre ganha destaque por ser de longe a construção mais alta da vizinhança. De frente à igreja está a Rua Paulino Chaves, de onde sua fachada principal é visível apesar da presença dos jacarandás na calçada à frente.

          A torre, localizada sobre a entrada principal da igreja, tem aproximadamente 31,5 m de altura contando desde a base até o pequeno domo localizado do lado esquerdo. Somada à cruz de metal no topo (+- 5,5 m ao lado do domo), são 34,5 m. A cruz é o único símbolo religioso representado na torre: além do modelo de metal em destaque no alto, há outras duas cruzes nas extremidades do topo, uma à direita e outra à esquerda, e uma quarta cruz sobre a porta de entrada. Estas três cruzes são, aparentemente, construídas com o mesmo material com que foi feita a torre e a nave da igreja.

(Torre da igreja com 31,5 m de altura, sendo 34,5 m com a cruz de metal. Abaixo as janelas dos sinos e o relógio sobre a entrada.)

(Detalhe da cruz. Nas duas extremidades as cruzes de material, e à direita da foto o domo que dá acesso ao terraço.)

          Ao longo da torre há seis janelas fechadas em veneziana onde estão guardados os sinos. Apenas do lado esquerdo há uma parede circular onde estaria a escadaria que leva ao terraço, cuja porta está sob o domo. Desde o térreo são cinco andares. Há ainda pequenas janelas junto à escadaria e logo abaixo das janelas dos sinos. Em seguida, sobre a porta de entrada, há um relógio.    

         Não verifiquei o material com a qual a igreja foi construída. Aparentemente sua estrutura é de pedra, mas segundo o frei capuchinho Francisco Turra, pároco da Paróquia Santo Antônio do Partenon desde 2008 (apesar de dizer-me que estava no local desde "há nove anos", isto é, desde 2007), a igreja é revestida de cirex, uma argamassa composta pela mistura de pó de granito com mica cujo efeito é uma aparência rochosa. A torre apresenta o mesmo aspecto. A igreja, portanto, parece ser mais robusta devido à aparência rochosa. Já seu estilo arquitetônico é um misto de gótico, como as janelas laterias e da fachada frontal, com barroco, exemplificado por sua curvatura.*

          O atual edifício da paróquia não é o mais antigo. A Igreja Santo Antônio do Partenon inicialmente foi uma capela, conforme conta o histórico no site oficial da paróquia (e em mais detalhes no Projeto de Resolução que homenageia a paróquia com o Troféu Câmara Municipal). 

          A primeira capela nasceu de uma provisão episcopal de 9 de junho de 1875, mas sua construção foi iniciada em 16 de maio do ano seguinte com o lançamento da pedra fundamental . O terreno pertencia à Sociedade Parthenon Litterário, local de encontro de intelectuais da cidade e que deu nome à paróquia. Sua inauguração foi no Natal de 1881. Logo em seguida, em 6 de janeiro de 1882, a imagem de Santo Antônio foi levada em procissão da Catedral à nova capela. A paróquia foi fundada oficialmente em 30 de agosto de 1911 pelo arcebispo Dom Cláudio Ponce de Leão, e ficou vinculada ao convento dos Capuchinos, atualmente localizado do lado esquerdo da igreja do outro lado da rua Paulino Chaves. O primeiro pároco foi Frei Bernardin d´Apremont.

(Projeto rejeitado da nova igreja.)

(Vista da face norte do projeto que foi aprovado. Destaque para o nome dado à igreja em francês.)

          Apesar da ampliação da igreja em 1922, quando passou de 12 para 14 m de extensão, em 1927 foi acertada sua demolição, realizada no ano seguinte. Foi apresentado um projeto para um igreja em estilo gótico, similar à Igreja Santa Teresinha do Santíssimo Sacramento, em frente ao Parque da Redenção, com a representação de diversos santos em vitrais da fachada e com altura menor do que a do edifício atual. O documento data provavelmente de 1927 (dia 4 de junho; no registro da foto cortei sem querer o ano). Mas este projeto foi rejeitado.

          O projeto vencedor que deu origem ao atual edifício data também de 1927. Ele foi desenhado pelo arquiteto Henri-Victor Dernadé e veio da cidade de Arnnecy, na França (algumas plantas identificam a paróquia como "Eglise de Parthenon. Bresil"). O engenheiro responsável foi Mathãus German Desiderius Casagrande (ou Mateus Casagrande), e a pedra fundamental, lançada em 17 de junho de 1928, foi abençoada pelo então arcebispo Dom João Becker. Apesar da igreja ficar oficialmente pronta em 1934, suas obras não estava completas. Elas pararam em 1932, ano em que foi erguida a cruz luminosa no topo da torre, em julho (provavelmente a mesma que vemos hoje, já que à noite uma cruz de luz azul é visível). No dia 5 de julho foram badalados pela primeira vez os sinos. As obras só seriam retomadas 1950 e concluídas onze anos depois. A primeira missa na nova igreja ocorreu apenas em 31 de agosto de 1952. Entre 1984 e 2006 o edifício passou por diversas reformas internas. Em 2008 iniciou sua restauração interna e em 2010 foi concluída a restauração externa.

          É possível ver pelas fotografias do Google Street View que o jardim na entrada da igreja fora totalmente reformado em meados de 2010 em diante. Antes, junto à Rua Luis de Camões, havia um muro de concreto no local. No final de 2013 a grama fora colocada, e a nova escadaria e luminárias já estavam presentes. Desta forma a frente da igreja tornou-se mais visível e atraente. Quando visitei a paróquia, as fachadas frontal e da direita estavam limpas, e havia operários limpando a face sul da torre com jatos d´água. A Paróquia Santo Antônio do Partenon parecia muito mais nova do aparentavam os 82 anos de idade da nova igreja.

(Lado sul da igreja visto da continuação da Rua Paulino Chaves em frente ao convento dos capuchinhos. A torre estava em processo de limpeza. Destaque para a cúpula da nave principal escondida pela torre e pelo edifício do Colégio Rainha do Brasil.)
 
          Interessante notar que na construção da nova igreja o projeto mais "tradicional" fora rejeitado, cujas razões desconheço. Mas a construção atual, de desenho mais limpo num mito de gótico com barroico, é maior e mais imponente. Duas coisas no atual edifício, e na torre em particular, chamam a atenção: a altura da torre sobre o morro e a ausência de imagens religiosas. Foi privilegiado um projeto mais moderno, porém maior, sendo a igreja diversas vezes reformada nos últimos trinta anos. Apesar do crescimento dos bairros Partenon e Santo Antônio e de um perfil estético mais "limpo", a Paróquia Santo Antônio do Partenon continua como uma das principais referências da região por sua localização e imponência sendo visível há quilômetros de distância como do alto do Morro Petrópolis e dos bairros Jardim Botânico e Santana.

* Agradeço aos amigos Carlos Guilherme Silveira e Silvana Antoniolli pela identificação do estilo arquitetônico da igreja.