quinta-feira, 30 de julho de 2020

Crise da ciência: uma crise do espírito

(Relógio astronômico na Igreja Santa Maria em Lubeck, Alemanha)

          A todo o momento ouvimos falar na televisão sobre ciência ou seja lá o que a classe jornalística chama de ciência.

          É importante ter em mente que a ciência tal qual é concebida nos dias de hoje possui metodologias que são arbitrárias e se baseiam em concepções de mundo precedentes a elas; é também mutável podendo apresentar resultados diferentes no dia seguinte em que um primeiro resultado é apresentado, e que por isso mesmo jamais pode haver o que tanto proclamam de "autoridade científica".

          Nesta palestra proferida pelo professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em Filosofia, Victor Sales Pinheiro, a ciência moderna é apresentada como elemento distinto e inconciliável com o que chamamos de "religião" (termo impreciso para designar uma variedade enorme de fenômenos sociais, antropológicos e espirituais) e, por isso mesmo, em permanente crise.

          Segundo o professor, a ciência moderna surge no século XVI, mas sua forma ideologizada se constitui apenas no século XIX com o positivismo de Augusto Comte, dando origem ao que ele chama de "religião do progresso". Esta concepção se opõe e combate abertamente a "religião tradicional" tratando-a como uma mistificação supersticiosa e obscurantista, situação que piora com as falsificações antirreligiosas de John Draper e Andrew White, cujas motivações e erros deliberados são mostrados pelo historiador da ciência, Ronald Numbers

           Esta cosmovisão deu origem aquilo que Olavo de Carvalho, no "Jardim das Aflições", chamou de "deuses do espaço", onde o homem, prescindindo da dimensão espiritual da vida, busca racionalizar, matematizar e enquadrar a totalidade do cosmos num esquema pretensamente científico, como se fosse possível o conhecimento total e, portanto, a manipulação plástica de toda a realidade pela vontade do homem.

          Mas a ciência moderna logo entra em crise, não apenas por seus analistas críticos que surgem já na virada para o século XX e depois (Victor cita Husserl, Heidegger e Voegelin), como esta idealização espúria ignora o vasto período entre os filósofos gregos e Descartes como se nada houvesse na cultura ao longo de dois mil anos que contribuísse para o pensamento científico. 

          Prescindido da ética advinda da fé cristã, para a ciência resta o potencial de manipulação da natureza, mas falta-lhe o sentido. A era moderna criou muitos comos, mas eliminou ou porquês. Das crises, que vêm em série desde há mais de século, brotaram os monstros totalitários e genocidas do nazismo e do comunismo, duas ideologias cientificistas, que são causa e consequência de duas Grandes Guerras, eventos onde a técnica foi aplicada à destruição e mortandade em massa.

          Com base na exposição acima, fica a pergunta: como pode haver segurança num mundo que põe sua fé na ciência, mutável por excelência? 

          Se não há parâmetro fixo que forneça fundamento e matéria-prima sobre o qual se construa qualquer empreendimento humano (o que inclui a totalidade dos métodos e conhecimentos científicos), não pode haver, igualmente, elemento no qual podemos garantir nossa segurança. Não há paz, seja coletiva ou individual, num ambiente cultural e psicológico que fique à mercê de mudanças permanentes. Apenas crises. 

          Para utilizar o ensaio de Olavo de Carvalho, ao depositar a fé na ciência a humanidade busca novas éticas a fim de solucionar as crises sucessivas e dar estabilidade às mudanças constantes. Da crise coletiva provocada pela vacuidade de fundamentos morais surge a revolução política, cujo objetivo é estabelecer uma nova ordem social e dar cabo à insegurança. O problema é que a ordem coletiva por si mesma não pode gerar os princípios da qual depende e que são forjados pela tradição religiosa. 

          Sobre os "deuses do espaço" erguem-se os "deuses do tempo". São Behemoth e Leviatã, monstros mitológicos que representam as forças da natureza e as forças sociais, respectivamente, que de digladiam mas intensamente na medida em que a fé desaparece da sociedade, até que Behemoth consiga, mais uma vez, vencer a revolta do homem pelo cansaço.        

          A crise da ciência é, portanto uma crise do próprio homem ou, falando de forma mais concreta, fruto da confusão e desorientação na qual as pessoas hoje se encontram. Quando ouvimos falar em "crise política", "crise econômica" ou "crise social" estamos, no fundo, ouvindo sobre os efeitos da degradação moral da humanidade. 

          No artigo "Redescobrindo a vida cristã"Victor Sales aponta um caminho possível de solução à crise através da busca por uma vida religiosa autêntica e do resgate dos fundamentos culturais do cristianismo. Há inumeráveis obras que mostram as realizações da Igreja Católica e de cristãos em geral no campo da cultura. Sua história é repleta não apenas de santos como também de cientistas, filósofos e escritores, uns religiosos, outros leigos.

          O historiador Thomas Woods Jr. no seu livro de título sugestivo "Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental" afirma que a Igreja não apenas fomentou uma cultura: ela criou um civilização inteira. Forjou o desenvolvimento de inumeráveis setores da vida social como agricultura, metalurgia, filosofia (e todo o esforço dos monges copistas no resgate do pensamento clássico grego), arquitetura, organização da vida política e social (bispos e religiosos se tornaram administradores da Europa quando da queda do Império Romano), literatura, direito, pedagogia, e toda a gama de conhecimentos que desembocariam na ciência moderna. 

          Junto às igrejas foram fundadas escolas para que estudantes pudessem se reunir e organizar seus trabalhos. Deste embrião surgiriam as universidades, criação eminentemente católica. Da mesma forma, os cuidados para com doentes e afetados pelas guerras deram origem aos hospitais.

          Se há crise da ciência, é porque há crise humana, no sentido profundo da palavra. Para fixar os pés em algo que possa dar alguma segurança, servir de parâmetro para medir e balizar crises, equilibrar Behemoth e Leviatã, as necessidades humanas e suas paixões, a busca por uma consciência religiosa através de uma espiritualidade profunda seria o primeiro passo para amenizar a crise. Esta consciência alenta o sofrimento psicológico cotidiano e dá a paz necessária para acalmar os pensamentos e aguçar a percepção da realidade necessária para o estudo e o trabalho.

          Basta observar, na perseverança de uma vida espiritual, o resultado desta vivência em nossas vidas. Não é possível mudar o mundo sem mudar antes si mesmo, tendo numa mão a fé em Deus e noutra, claro, o empenho nos estudos.

domingo, 26 de julho de 2020

Novas embalagens para velhos erros


"Nove de cada de ideias que chamamos de novas são apenas velhos erros."
(G. K. Chesterton, em "Porque sou católico")

          Nosso tempo é recheado de novidades quando se trata de tecnologia. Recentemente, foi assim com a comunicação pela internet, onde surgiu uma enorme variedade de formas de contato, como e-mail, teleconferência, redes sociais, WhatsApp e coisas do tipo.
          A novidade nas formas não é um problema em si. O que importa é o que o invólucro traz, seu conteúdo, sua essência.
          Chesterton nos lembra que quase todas as chamadas novas ideias são na verdade velhos erros. Isto ele já notava à época de seu artigo "Por que sou católico", de 1926.

          Mas as novas ideias deixam o lastro da novidade. Frequentemente surgidas num meio relativista, elas trazem o próprio relativismo em sua perspectiva perpetuando esta tendência e a sede das pessoas por novidades.
          A onda vegetariana, por exemplo, já virara moda na Alemanha em meados da década de 1920 e foi adotada como modo de vida exemplar pela ideologia nazista ao associar este comportamento ao solo pátrio. O mesmo ocorreu com o antitabagismo e o ambientalismo.
          O socialismo, tão mutável quanto um camaleão, é outro caso. Antes centrado na luta econômica, passou à luta cultural travestindo-se, por exemplo, de proteção às minorias. Mas quem poderia protegê-las senão um poder capaz conceder direitos de forma sempre crescente? O socialismo, caracterizado essencialmente pelo aumento do poder nas mãos do Estado, pode vir pelo caleidoscópio da diversidade, que quanto mais fragmenta a sociedade em grupos menores, mais exige do Estado regulação para arbitrar as relações sociais.
          O movimento New Age é outra aparente novidade ao misturar fragmentos da espiritualidade oriental com elementos ocultistas, uma recauchutagem religiosa de tradições milenares com os erros da revolução cultural dos anos 1960.
          Se tantas ideias novas são, na verdade, velhos erros, por que então aderir a elas? O mundo moderno, fundamentado no utilitarismo e na mudança constante, clama por novidades, e é mais fácil enfeitar estas essências com novas formas do que reinventá-las por completo.
          Seria muito mais simples ater-se às velhas e boas ideias, as que se comprovaram corretas com a longa experiência humana. Isto não faria do nosso mundo um lugar monótono, mas mais seguro e pacífico.
          Os erros, mesmo que durem muito tempo, precisam sempre de uma nova embalagem, e num mundo de aparências é muito fácil ocultá-los com enfeites e novidades.

sábado, 25 de julho de 2020

A necessidade de estar errado quando todos acham que estão certos


Conta-se que certa vez o jornal London Times pediu a alguns escritores responderem
à pergunta: "O que há de errado com o mundo?" Chesterton enviou a resposta mais
sucinta: "Eu. Atenciosamente, G. K. Chesterton."

          Esta curta e grossa resposta de Chesterton à pergunta do referido jornal londrino pode parecer birra de adolescente; daqueles que, de saco cheio do papai e da mamãe, fazem questão de cuspir sua revolta juvenil na hora do almoço.
          Mas o estado de coisas na época de nosso querido escritor já não era dos melhores. O mundo recém iniciava o século das duas Grandes Guerras, do totalitarismo e do genocídio, cujos terrenos foram preparados por tiranos, fanáticos e loucos.
          Mas eram os loucos, estes que acreditam que tudo é relativo menos sua própria opinião, que há um século já sinalizavam hospício no qual enfiariam o mundo.

          A era moderna, apontada soberbamente como o cume da "evolução" da humanidade, já era indicativo de que muita coisa havia de errado com o mundo.
          Primeiro, porque nenhuma época é necessariamente melhor do que a outra por seu avanço técnico, a mesma técnica que criou os campos de concentração, a bomba atômica e a engenharia social em escala continental.
          Segundo, porque a mudança constante, frenética e cada vez mais acelerada da ordem social, e que tem a técnica como um meio de viabilizá-la, ao exemplo da propaganda e da disseminação de valores progressistas pelos meios de comunicação e as modas do dia, enfraquece os laços que unem as pessoas, tanto na vida pública quanto na família.
          Sendo Chesterton um adepto da vida simples e valorizador das pequenas coisas, porque haveria ele de se admirar com a soberba de um mundo que se considera superior apenas porque é prático e moderno?
          Se há algo errado com o mundo, e no quadro geral parece que está, cabe a nós, admiradores deste homem e devotos dos imitadores de Deus, seguir o ensinamento evangélico de ser bom num mundo mau; de ser, à luz da consciência viva, o mais correto possível frente a todos os erros.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Dostoiévski e a mentalidade de nosso tempo


          As obras de Fiódor Dostoiévski são extensas e incrivelmente ricas em muitos aspectos. Desde os complexos traços dos personagens até a abordagem de temas existenciais, o escritor consegue apresentar com muita perspicácia e conhecimento os problemas pessoais e sociais que envolvem o destino do homem e que compõem o sentido mais profundo de seu trabalho.

          O drama da existência não é seu único tema. Dentro deste, o autor mergulha nos acontecimentos e dilemas de seu país do século XIX e apresenta com clareza os movimentos políticos e a atmosfera psicológica que haveria de varrer a Rússia e o mundo a partir do início do século XX.

          Disseminando ideias deturpadas acerca do homem e do mundo e remando contra a própria condição humana, as criações de Dostoiévski apontam este caminho futuro. Rodion Románovich Raskólnikov em "Crime e Castigo" com sua atitude e moral revolucionária, Piotr Stiepánovitch Vierkohviénski e seus parceiros em "Os Demônios" com seu cinismo, militância e ação violenta, e Ivan Pávlovitch Karamázov em "Os Irmãos Karamázov" com sua soberba e relativismo ateu são alguns dos personagens que se apresentam como protótipos de personalidades tirânicas, imorais e psicóticas que em algumas décadas viriam a inspirar e liderar em todo o mundo os horrores da revolução, da guerra e do genocídio. 

          Mas é num trecho da obra "O Idiota" que o escritor revela sua capacidade de antever com bastante precisão essas possibilidades futuras. 

          No longo trecho reproduzido abaixo, a personagem Lisavieta Prokófievna assiste à uma discussão entre os amigos do personagem principal, Liev Nikoláievitch, o príncipe Míchkin, dentre eles um grupo de jovens niilistas e, absorvida e transtornada pela atmosfera de loucura reinante no ambiente, desabafa:

"Veja só, Ievguiêni Pávlovich, se até o senhor acabou de declarar que o próprio defensor declarou em um julgamento que não existe na mais natural do que matar seis pessoas movido pela nobreza, então é o final dos tempos. Isso eu ainda não tinha ouvido falar. Agora tudo ficou esclarecido para mim. Veja esse tartamudo, por acaso não degola um (ela apontou para Burdovski, que olhava para ela com extraordinária perplexidade)? Aposto que degola! Ele talvez não aceite o teu dinheiro, os dez mil, e não o aceite por uma questão de consciência, mas à noite ele aparece e te degola, e leva o dinheiro do cofre. Leva por consciência! Isso para ele não é uma desonra! É um 'impeto de desespero nobre', é a 'negação' ou sabe lá o diabo o quê... Arre! Tudo anda de pernas para o ar, tudo às avessas. A moça está crescendo em casa, de repente no meio da rua pula para dentro de uma carruagem: 'Mãezinha, há poucos dias eu me casei com um tal de Kárlitch ou Ivánitch, adeus!'. Então, a seu ver, essa é a boa forma de agir? Naturalmente digna de respeito? Questão feminina? Esse menino (apontou para Kólia), até ele discutiu comigo alguns dias atrás dizendo que isso é a 'questão feminina'. A mãe pode até ser uma imbecil, mas ainda assim tu deves ser um homem com ela!... Por que entraram há pouco de cabeça erguida? 'Não ousem aproximar-se': estamos entrando. 'Deem-nos todos os direitos, e quanto a ti não te atrevas a gaguejar diante de nós. Concede-nos todas as honras, mesmo aquelas que não existem, e quanto a ti, vamos tratá-lo pior que o último lacaio!' Procuram a verdade, insistem em seus direitos, mas o caluniaram como um desonesto artigo. 'Nós exigimos e não pedimos, e o senhor não ouvirá nenhum agradecimento de nossa parte porque nós estamos agindo para satisfazer a nossa própria consciência!' Que moral: e já que não haverá nenhum agradecimento de tua parte, então o príncipe pode te responder que ele não sente nenhuma gratidão por Pavlischov, porque Pavlischov fazia o bem para satisfazer a própria consciência. Mas tu contaste apenas com a gratidão dele para com Pavlischov: porque não foi de ti que ele pegou dinheiro emprestado, não é a ti que ele deve, então com quê tu contavas a não ser com gratidão? Como é que tu mesmo vai recusá-la? É uma loucura! Reconhecem a sociedade como bárbara e desumana porque ela difama uma moça seduzida. E se tu reconheces que a sociedade é desumana, então reconheces que essa sociedade causa dor a essa moça. E já que causa dor, como é que tu mesmo expões essa moça nos jornais diante dessa mesma sociedade e exige que isso não seja doloroso para ela? É uma loucura! Vaidosos! Não acreditam em Deus, não acreditam em Cristo! Mas acontece que os senhores estão de tal forma corroídos pela vaidade e pelo orgulho que vão acabar devorando uns aos outros, é isto que eu prevejo para os senhores. Isso não é uma bagunça, isso não é o caos, isso não é o horror?" (p. 325-326) (grifos meus)

          O discurso irado de Lisavieta é uma profecia do que a Rússia enfrentaria em menos de cinquenta anos (a obra foi divulgada em partes entre 1868 e 1869) e revela, com a devida ênfase de uma alma sã, a perversão moral da mentalidade revolucionária, baseada num relativismo que a subjuga em nome da estratégia política com vistas a formulação de uma sociedade ideal futura.

           No artigo A mentalidade revolucionária, o filósofo Olavo de Carvalho mostra que a cosmovisão dessa mentalidade baseia-se na inversão da concepção do tempo, cuja consequência é a inversão dos fundamentos da moral, não mais baseada na experiência de longa data do passado, mas no tempo ideal futuro, o Paraíso terrestre. Como este futuro não existe na realidade, a nova moral anunciada depende da boca daquele que proclama o ideal futuro, transformando-se no juiz e no carrasco que passa a julgar todas as pessoas e épocas com base em sua projeção mental.

          Esta mentalidade está resumida nas palavras dos niilistas repetidas por Lisavieta, que proclama: "Nós exigimos e não pedimos, e o senhor não ouvirá nenhum agradecimento de nossa parte porque nós estamos agindo para satisfazer a nossa própria consciência!" 

          O que poderia haver de mais soberbo do que exigir segundo a consciência? O que haveria de mais relativo do que medir as coisas por sua consciência, sua própria subjetividade? E onde está esta consciência senão no ideal subentendido por detrás de uma exigência moralizante?

          Se a consciência publicamente proclamada é a medida da nova moral, então a moral advinda da experiência da realidade é inválida e substituída por um parâmetro totalmente subjetivo, portanto, mutável. Na falta de uma referência fixa, vencerá a moral que se impor pela astúcia e pela força, transformando-se ela mesma na medida da realidade.

          Os niilistas de Dostoiévski acreditavam poder se impor aos outros pelas palavras intimidatórias e o desprezo sarcástico. Proclamavam a demolição de todos os valores e da ordem social acreditando que disto surgiria espontaneamente uma nova sociedade. 

          A mencionada "questão feminina", em voga na Rússia de então, o ateísmo, a "nobreza" da ação revolucionária expressa, nas palavras da personagem, pela coragem de matar por um ideal nobre, eram (e ainda são) princípios de ideias revolucionárias, que no século XX mudaram de conteúdo, mas não de forma. Podemos tirar a questão feminina e incluir a raça, a minoria oprimida, a questão de gênero, incluir mesmo a questão religiosa, mudar a tática da violência para a propaganda, mas a estrutura da mentalidade continua a mesma: transformar o mundo em nome de um ideal futuro subjugando todas as coisas ao objetivo autoproclamado.

          Quando Stálin perseguiu e matou seus próprios correligionários a partir de 1934 e deu início ao Terror Vermelho para continuar a construção do socialismo, quando Hitler eliminou a S.A. de Ernst Rohm matando os que não podia controlar diretamente para garantir a unidade do poder nazista, quando os militantes chineses mataram uns aos outros na Revolução Cultural e se engalfinharam numa luta pelo poder após a morte de Mao Tsé-Tung para continuar seu legado, quando os movimentos anticoloniais voltaram-se uns contra os outros na África e na Ásia como na Guerra Irã-Iraque e em inúmeras guerras civis acreditando levar seus povos à libertação; quando hoje, os extremistas islâmicos travam batalhas uns contra os outros e demais grupos religiosos acreditando lutar pela sociedade santa; quando os narcotraficantes matam e envenenam milhões de pessoas alegando realizar com isso justiça social, quando mães matam os próprios filhos por considerá-los um estorvo ainda antes de nascer. 

          E quando todos eles, em nome do ideal futuro, massacraram e ainda massacram milhões de pessoas que dizem honrar e defender, é impossível deixar de lembrar o que Dostoiévski, sensível ao drama da condição humana, declarou pelas palavras de Lisavieta:

É uma loucura! Vaidosos! Não acreditam em Deus, não acreditam em Cristo! Mas acontece que os senhores estão de tal forma corroídos pela vaidade e pelo orgulho que vão acabar devorando uns aos outros, é isto que eu prevejo para os senhores. Isso não é uma bagunça, isso não é o caos, isso não é o horror?

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Os frutos dos "livros maus"


"É a literatura moderna dos educados, e não a dos ignorantes, que é agressiva e declaradamente criminosa." (G. K. Chesterton, em "The Defendant") 

          Esta afirmação de Chesterton é de 1901 e provavelmente se baseava nas desgraças publicadas algumas décadas antes. Mas também antevia as desgraças de depois.
          Como afirmou a profecia de Nossa Senhora de La Salette, em 1846, "os livros maus abundarão na Terra" e os espírito malignos "abolirão a fé pouco a pouco".
          Dois anos depois, Marx e Engels publicariam o "Manifesto Comunista", e de suas obras filosóficas surgiriam uma nova geração de intelectuais, os marxistas, que na geração seguinte, com Lênin, como bem mostra o historiador Perry Anderson, também um marxista, desembocariam na sangrenta Revolução Russa.

          Chesterton ainda não vira, naquele momento, a onda de obras revolucionárias que inundaria o século XX, os ataques à religião e a promoção do relativismo quando da penetração do movimento comunista na guerra cultural.
          E nem havia conhecido "Minha Luta", livro onde Adolf Hilter apresentavam suas venenosas ideias ao público e que inspirariam movimentos revolucionários como na Argélia e o mundo árabe; nem o "Livro Vermelho" de Mao Tsé-Tung (foto), que serviria para lavagem cerebral maciça na China e inspiraria movimentos sangrentos na Albânia, África, Sudeste Asiático e Peru.
          Livros necessariamente são escritos por pessoas com capacidade intelectual acima da média e, por sua divulgação, moldam o imaginário, a linguagem e os valores da grande massa, passando suas obras pelas mãos de professores e formadores de opinião. 
          No fundo, os intelectuais dirigem o mundo, porque a direção do mundo por líderes políticos, militares, religiosos e bilionários depende de um planejamento prévio que foi pensado e teorizado para ser colocado em prática. 
          Fossem as obras centradas em promover a herança dos antepassados e apenas divertir as pessoas numa medida justa e não haveria problemas quanto ao que Chesterton chama de "literatura moderna dos educados".
          Mas foi a traição dos intelectuais, para usar o termo de Julien Benda em seu famoso livro homônimo de 1927, que deu a justificativa para os horrores que se avizinhavam nos séculos XX e XXI.
          Dos livros maus, da má literatura, veio a relativização de todas as coisas, inclusive da dignidade humana, aviltada pelas guerras em larga escala nas cidades, campos de concentração, engenharia social e aborto. E daí para o caos e o genocídio foi um pequeno passo.

O pátrio poder e a defesa da liberdade individual

"Se indivíduos têm qualquer esperança de proteger suas liberdades, 
eles precisam proteger sua vida familiar." (G. K. Chesterton)

          A principal defesa da liberdade individual contra a interferência de um poder externo, principalmente do Estado, é a família. Não por acaso Chesterton defendia com tanta frequência esta divina instituição.
          O pátrio poder (ou poder familiar) é a fonte não só de proteção física, com o sustento necessário à pessoa em momentos de dificuldade, mas também psicológica, dado que a família dá orientação e segurança sobre o que se deve ou não deve fazer no dia a dia e nos rumos da própria vida.
          Isto significa seguir apenas um senhor, obedecer a uma autoridade ou a princípios a ela vinculados sem ter de prestar contas a um terceiro sobre o que faz ou deixa de fazer.
          O vínculo familiar reforça a proteção das liberdades também devido ao seu caráter emocional. Trair a família, afastar-se dos parentes, desobedecer os pais ou intimidar os filhos gera sofrimento, e para evitá-lo é melhor manter-se unido aos entes queridos, um escudo natural e espontâneo a qualquer ameaça externa.
          E tais ameaças muita vezes se manifestam de forma sutil, como nos meios de comunicação, que inculcam valores e visões de mundo por vezes abertamente contrários à família.
          Desagregar a família é deixar seu componentes expostos, a sós, contra todo o tipo de influência e crises externas. Necessitadas de vínculos, as pessoas buscam, na ausência de uma relação íntima, fincar suas raízes em outras coisas ou, pior, aderir de imediato às modas do momento.
          Por isto a mentalidade contemporânea de postergar indefinidamente a geração de filhos ou de delegar à escola sua formação moral é abdicar da formação da família e, portanto, das próprias defesas que garantem suas liberdades pessoais.
          Se as pessoas querem simplesmente "curtir" a vida, o preço a pagar será sua submissão, que a cada dia se manifesta de forma mais sutil e ostensiva até o dia em que ter uma família fora dos cânones progressistas se tornará crime.

domingo, 19 de julho de 2020

A impossibilidade de possuir uma religião privada


"Um homem pode tanto possuir uma religião privada quanto possuir um sol ou uma lua privados."
(G. K. Chesterton, em "Introdução ao Livro de Jó") 

          Ter uma religião privada é como andar parado ou se molhar a seco. Não faz sentido, é contraditória à definição que temos de "religião", ao menos na concepção cristã.
          A palavra "religião" vem de "religare", que nos latim significa ligar de novo, no caso, o homem com Deus.
          Ora, na relação com Deus não pode haver dimensão de particularidade, pois Deus é infinito por definição e, portanto, abrange todas as coisas.
          Isto implica que nossa relação com Deus impacta necessariamente nossas atitudes para com a totalidade da realidade, desde pessoas passando por plantas e animais, leis e organizações, até chegar a Ele mesmo, o Senhor do Universo.
          Portanto, ter uma religião privada seria o mesmo que amputar a própria religião, adotar atitudes diferentes sobre as mesmas questões dentro e fora de casa ou, pior ainda, tratar sua fé como algo específico de si mesmo mas inválido aos outros.
          Por isto, a analogia com o sol e a lua nesta afirmação de Chesterton. Não podemos considerar como pessoal algo que é necessariamente universal, não só nos seus princípios, como na dimensão ontológica daquilo que a religião se ocupa: Deus.
          A concepção de privatização da religião vem na esteira do processo de secularização, que tem no Estado laico (tomado aqui no sentido ideal) sua expressão mais evidente. E este mesmo Estado, em nome das liberdades de consciência e religião, trata de retirar da vida pública a mesma expressão religiosa que afirma defender.
          Na era moderna, somos constantemente lembrados, pela educação castradora, pela arte subjetiva e sem sentido, pela arquitetura anti-espiritual e pelo "pensamento livre" que cada um deve guardar seu sol em casa e nos templos enquanto do lado de fora reina a escuridão.
          Hoje é assim. Ao menos por enquanto.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Deus nas pequenas coisas


"É estranho que a mais impopular de todas as doutrinas seja aquela que 
declara como divina a vida comum." (G. K. Chesterton)

          Esta afirmação acima revela um mundo cansado de si mesmo, enfadonho ao se olhar no espelho e ávido por aventuras.
          Chesterton bem sabia o perigo destas aventuras, que brotavam em sua época no outro extremo da Europa com a Revolução Russa, e que viria a tomar outra face bem no meio do continente ao fim de sua vida no anos 1930.
          As aventuras do mundo moderno não ficaram apenas nas máquinas, quem dera fosse, mas penetrou nos alicerces da civilização para transformá-la em outra coisa que não a vida comum do tipo de pessoa que Chesterton chamou de Homem Comum.
          Ora, a vida humana é mudança constante, mas tais mudanças dependem de regramentos perenes que permitam estabelecer um contínuo acontecer, regras claras para que o jogo prossiga ao longos das gerações.
          Há um ditado que diz que Deus está nos detalhes. Isto também pode ser entendido como a Sua presença em elementos ocultos que se revelam em pequenas coisas como o respeito, gestos de ajuda, a valorização da convivência familiar e comunitária, as boas amizades, a lealdade, a honestidade e a reverência aos mais velhos.
          Sobre este edifício se erguem as civilizações e seus grandes feitos. Portanto, Deus está nos fundamentos, e não nas obras grandiosas que sobre eles estão. 
          O divino é o simples, é a vida do dia a dia. O resto é floreio da vaidade humana.

O sustento do mundo pelas pequenas coisas


"Estou certo de que não há futuro para o mundo moderno, a menos que ele possa compreender que não tem de simplesmente buscar o que é mais e mais excitante, porém, antes, a tarefa ainda mais excitante de descobrir a excitação em coisas chamadas monótonas."
(G. K. Chesterton, em "Ortodoxia")

          O mundo moderno é um gigante de pés de barros que não se sustenta por si mesmo.
          Voltado às coisas práticas, este mundo tende a satisfazer constantemente e de forma crescente os desejos humanos, e os desejos são sempre transitórios, frívolos e ávidos por novidades.
          Quanto mais satisfazemos nossos desejos, mais rápido a satisfação se esgota e maior a ansiedade por satisfazer um novo desejo brotado no lugar do anterior.
          Esta máquina em aceleração em progressão geométrica para satisfazer desejos em sequência não pode sustentar por si mesma.
          O estímulo que o mundo moderno dá a este processo leva à subjugação dos princípios que regem a ordem social à vontade individual, inconsistente por definição, cuja consequência é a dissolução do tecido social.
          O resultado não pode ser mais evidente: anomia, desorientação e confusão. Em suma, o retrato do mundo atual que, de convulsão em convulsão, se debate ansiosamente por soluções rápidas às crises; que espera que tudo se resolva tão rápido quanto as variações de seus desejos.
          A declaração acima de Chesterton apresenta uma resposta e uma fórmula simples à máquina deste mundo que se transforma de forma errática.
          Toda e qualquer ordem social, moderna ou tradicional, se sustenta por valores que são perenes, que se mantém (ou deveriam se manter) apesar das mutações sociais em superfície.
          Por exemplo: os filhos devem obedecer aos pais, seja com a vida vivida no campo e no trabalho com a família, seja na rotina de ida à escola, onde a escola não é (ou não deveria ser) instituição de substituição aos pais. Esta obediência pode perfeitamente sobreviver tanto à vida tradicional quanto moderna, ficando a modernidade apenas no seu aspecto superficial, como a técnica e a estética, sem afetar seu fundamento mais profundo.
          É nessas coisas simples ou, como diz Chesterton, monótonas que se sustenta o mundo moderno, que residem os valores que permitem o sustento de uma ordem social mínima.
          Talvez seja possível que o mundo da técnica se firme sobre aquilo que é cotidiano, a vida do lar e do trabalho rotineiro. Porque nem sempre o que é monótono é chato; pode perfeitamente ser alegre a partir do momento em que tomamos consciência de que este mundo tão poderoso e complexo se sustenta em nossos gestos mais simples.
       

terça-feira, 14 de julho de 2020

A antessala do Paraíso


"O temor a Deus é o começo do prazer."
(G. K. Chesterton, em "Varied Types", 1905)

          Chesterton é um daqueles escritores habilidosos que conseguem condensar numa única frase ideias profundas em poucas palavras e, mais incrível ainda, aparentemente contraditórias como "temor a Deus" e "prazer".
          Ao contrário do que muitos imaginam, o temor a Deus não é ter medo Dele, mas respeito, reverência; e esta atitude implica o reconhecimento de quem Ele é, ou seja, Deus, um ser magnânimo, infinito e absoluto.
          O reconhecimento da natureza divina traz por consequência o reconhecimento de nossa natureza, infinitamente desproporcional a Deus.

          Não há como ficar indiferente à infinitude divina, cuja reação é, ou de aceitação, ou de fechamento e revolta. Nossa condição como criaturas de um ser infinito implica necessariamente um chamado à humildade. Do contrário, colheremos desordem e sofrimento.
          A vida dos santos mostra que a virtude mais admirada por Deus é justamente a humildade; seu reconhecimento pelos santos os levaram ao cumprimento dócil e reverencial à vontade divina.
          Se Deus, em sua bondade e magnanimidade, dá de comer aos animais e águas às plantas, por que não daria muito mais aos seus filhos prediletos e ainda mais àqueles bons e obedientes?
          Disto surgem nossas alegrias e prazeres, que se manifestam em situações cotidianas específicas a cada pessoa, porque cada um vale muito mais do que muitos pardais, muitas árvores e muitas montanhas.
          A filiação divina é universal e, portanto, real para todas as pessoas de todas as épocas e lugares, pois a condição humana é a mesma sob as culturas, sociedades e personalidades.
          O reconhecimento desta filiação dá novo gosto e nova cor a todas as coisas. É característico do homem sentir prazer, que é uma reação de satisfação imediata com aquilo que interage. E ao vermos que somos filhos de Alguém que não tem medida, igualmente sem medida será a alegria da vida e o prazer das coisas que através dela Deus nos proporciona.
          Na verdade, isto é mais do que prazer, mais mesmo do que alegria. É um êxtase, uma antessala do Paraíso.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

A unidade da segunda parte da mensagem de Fátima (13 de julho)


Hoje, 13 de julho, faz 103 anos da aparição de Nossa Senhora de Fátima onde Ela afirmou que viria pedir a comunhão reparadora dos sábados e a consagração da Rússia, pedidos que realizou em 1925 e 1929, respectivamente. Destes dois atos, viriam a salvação das almas e a paz no mundo.

Estas mensagem mostram que não adianta pedir apenas a consagração da Rússia (ou seus efeitos, caso já tenha sido realizada por São João Paulo II em 1984 como muitos acreditam) sem a comunhão reparadora, o que inclui a oração completa do Rosário.

Se as pessoas não rezam e não há conversão, do que adianta apenas um ato solene da Santa Sé? Tanto é que Nossa Senhora, ao pedir a consagração da Rússia à irmã Lúcia em 1929 (representação acima), mostrou a ela seu Imaculado Coração, o mesmo ao qual Ela pediu reparação quatro anos antes ao especificar a comunhão reparadora. E no mesmo evento de 1929, apresentou à irmã o mistério da Santíssima Trindade e sua relação com a eucaristia como ato de graça e misericórdia vinculados ao seu Coração. Afinal, Maria sacrificou-se com seu Filho ao vê-Lo, em silêncio, Seu profundo sofrimento na cruz.

Resumindo: a comunhão reparadora é um ato de desagravo à Nossa Senhora e a Jesus cujo ato seria chancelado pela consagração da Rússia, sua conversão e a consequente paz no mundo, tornando visível aos olhos da humanidade o poder do Imaculado Coração. O mundo precisa ver a ação de Nossa Senhora. Este é o triunfo prometido do Imaculado Coração.

Infelizmente, parece que nada disto foi feito, e hoje pagamos as consequências.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

A conquista da liberdade pela vida religiosa


          Quando pensarmos que somos obrigados a ficar em casa por força das autoridades públicas, que alegam tal medida com base em questões científicas sob o coro homogêneo de todos os grandes veículos de comunicação, lembremos que já estamos presos há várias décadas. A diferença é que a tirania da "ciência", do Estado e da autoridade se tornou mais explícita.

          Faço referência ao mundo administrado no qual vivemos.

          Até duas ou três gerações atrás, parte significativa das pessoas vivia no campo ao sabor das estações e dos ciclos naturais. O cotidiano era regrado principalmente por estes elementos; a vida religiosa era mais abundante e ambiente de confraternização dentro da comunidade as famílias não só mais unidas como maiores.

          Obviamente, não é prudente romantizar este passado recente. Violência familiar, assaltos, pobreza, doenças hoje banais que antes não possuíam tratamento, vulnerabilidade quanto aos humores da natureza, isto tudo pesava e causava sofrimento. Não por acaso, a expectativa de vida, que no Brasil do início do século XX mal chegava aos quarenta anos, hoje chega aos setenta e quatro.

          Ocorre que mais tempo de vida não significa mais qualidade, menos ainda mais felicidade. Tomo qualidade como realização pessoal e paz; felicidade como consequência destes dois atributos.

          Pois hoje, nascidos principalmente nas cidades e submetidos a todo o tipo de enquadramento comportamental, somos enviados obrigatoriamente às escolas, sob risco de termos os pais presos pela polícia, para ficarmos horas e horas ao longo de mais de uma década colocando na cabeça informações enquadradas em ciências dadas como espelhos da realidade e que em grande parte não servirão para nada; perdemos a noção do agradável som da natureza ao substituirmos a vida ao ar livre pela prisão de apartamentos e infindáveis salas de aula, reuniões e trabalhos; ficamos sob a tirania das horas numa contagem matemática do tempo, e sob a tirania do calendário ao ponto de imaginarmos estar fora da realidade quando simplesmente entramos em férias do trabalho.

          A vida religiosa, ela mesma veículo de uma vida espiritual (pois "religioso" e "espiritual" são coisas diferentes), antes regradora da ordem e semeadora de princípios, perdeu espaço para um mundo no qual não podemos dialogar, mas nos submeter. Podemos ser perdoados por Deus pelos nossos pecados, mas o relógio é implacável, bem como a sanção da lei por simples erros involuntários.

          É esta vida religiosa que alarga nossa liberdade e não apenas alivia como contém a pressão do mundo administrado, pois planta no cotidiano das pessoas a consciência de que acima do mundo há um Deus que acompanha nossos passos, aproxima as pessoas pelo senso de irmandade diminuindo a necessidade de uma autoridade que regule a vida pública, e abre um elo de confiança em Deus (a fé), cuja intervenção comanda as regras do jogo, podendo flexibilizá-las, tanto no regramento quanto nas sanções dos erros, de acordo com nossas necessidades e pedidos que elevamos aos Céus.

          Se nos sentimos presos nas coisas do mundo talvez seja porque falte a descoberta da imensidão incomensurável que é a alma humana, cuja exploração nos mostra que estamos vinculados a um Deus infinito dentro do Qual temos a liberdade absoluta. Esta liberdade não é a de fazer qualquer coisa, mas de ter atitudes livres conforme as circunstâncias, as mesmas que podem ser alteradas pela Providência.

          Não faço apelo para que abandonemos nossas vidas, mas sim que nos ajoelhemos e rezemos para descobrir este jugo que é suave e este fardo que é leve. Onde viceja uma vida interior abundante viceja igualmente a liberdade que acreditamos encontrar apenas no mundo.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Quando nos tornamos pessoas interessantes


          Tenho me deparado com alguma frequência na internet com chamadas que afirmam que eu não sou tão interessante quanto pareço para mim mesmo. Explicando melhor, a preocupação excessiva com o eu me torna uma pessoa desinteressante e, pior, desagradável para outras pessoas.

          Um pouco de convivência com pessoas excessivamente egocêntricas revela esta realidade. Aqueles que focam muito em si ou falam muito da própria vida se tornam chato, bem como aqueles excessivamente sensíveis e reativos, pois forçam o mundo a girar em torno de suas personalidades causando justamente o afastamento daqueles que pretendem atrair.

          O problema é que a existência humana se dá num quadro que a transcende infinitamente, e o mais natural da personalidade madura e saudável é agir integrada neste meio. Dito de outra forma, uma pessoa saudável dá a devida proporção a si frente à realidade da qual faz parte. Isto significa valorizar-se o mínimo possível, pois estamos cercados por um Universo de uma vastidão incomensurável.

          Não por acaso, a máxima evangélica é amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. O primeiro ponto é justamente o senso das proporções, que exige de nós desprendimento e, portanto, humildade absoluta; é o apagamento do eu. O segundo ponto é o exercício do primeiro, porque o apagamento do eu se dá no serviço ao outro.

          Nos tornamos realmente interessantes quando nos dedicamos ao outro, nos abrimos à realidade entorno e honramos o real valor das coisas. Por consequência, os outros tenderão a fazer o mesmo e olhar para nós com o mesmo desprendimento, pois ganhamos estatura perante seus olhos.

          Não é de graça que foi justamente Jesus Cristo a pessoa mais interessante que já existiu, porque Ele serviu de forma abnegada até o último instante. O mesmo se observa nos santos e nas pessoas que se dedicaram aos outros ou às ações mais elevadas, bem como naqueles dedicados às suas famílias. No desafio que a vida cotidiana nos coloca, ser o menor de todos nos faz sermos o maior aos olhos daqueles que amamos.

Um chamado para honrar o que a vida nos deu


"A menos que possam aprender novamente a apreciar a vida, não apreciaremos
por muito tempo os temperos da vida." (G. K. Chesterton)

          Este aforisma de Chesterton pode ser lido para aqueles que, por razões das mais diversas, perderam o rumo da vida, abdicaram, seja por erro ou falta de decisão, por cumprir sua vocação enquanto pessoa.
          Porque sempre há tempo para uma mudança de rumo, que depende, no fundo, unicamente daquilo que chamamos de decisão.
          Os que retornam para o caminho de sua realização pessoal (que a era moderna reduziu ao sucesso profissional e o amor romântico) passam a admirar novamente as maravilhas antes contempladas na infância e que marcaram a memória dos "velhos tempos".
          O que Chesterton chama de "temperos" é isto: o que há de bom, belo e verdadeiro, que faz nossa história valer à pena e onde temos os primeiros gostos de uma vida que recém se inicia.
          É época em que a alma humana ainda é uma terra virgem ávida pela água e as sementes que fazem brotar vida, e vida em abundância.
          Se tudo fosse sofrimento, não haveria o que contemplar, não haveria tempero, beleza a se guardar na memória.
          Mas a vida é um misto do feio e do belo, do insosso e do saboroso; na verdade, ela é bela em si mesma, sua dimensão insondável abarca o feio de forma a transformá-lo em belo ao integrá-lo nos rumos da História ditados pela Providência.
          É neste cenário que temos de recomeçar. Deus dá os meios, faz tudo por nós naquilo que não podemos fazer. No que podemos, Ele não move uma palha.
          É decisão nossa resgatar os temperos da vida para honrá-la até o último instante.

terça-feira, 7 de julho de 2020

O mal cidadão e o novo pecado


          Na postagem sobre a politização do cotidiano, analisei de que forma o poder do Estado de agigantou, substituiu os valores tradicionais e transformou a ordem social espontânea num regramento de censura da conduta alheia, criando uma atmosfera de desconfiança entre as pessoas.

          A análise teve como principal fundamento da obra "O Jardim das Aflições", do filósofo Olavo de Carvalho.

         Mas se as pessoas censuram o comportamento alheio, quais seriam os "erros" do "mal cidadão" a serem censurados?

          No mencionado livro, Olavo de Carvalho traz a resposta, dizendo que o Estado secular, carregado de simbolismos de sua raiz revolucionária:

"...introduz na moral do homem moderno um novo senso de pecado.: na mesma medida em que a função da Providência já não é conduzir o homens à vida eterna, mas satisfazer a seus apetites neste mundo, o pecado não reside mais numa ofensa à dignidade do homem, ou na desobediência a um mandamento divino explícito, e sim no 'desequilíbrio'. 'Desequilíbrio' significa qualquer ato, pensamento ou hábito que possa colocar o indivíduo em desarmonia com uma ordem cósmica supostamente empenhada em garantir o sucesso, a saúde e a riqueza de todos os bons cidadãos. É 'desequilíbrio', por exemplo, cometer atos de violência, mas também é 'desequilíbrio' não escovar os dentes comer comidas gordurosas ou fumar, pelo menos 'em excesso', seja lá o que isto for. E como a ordem cósmica já não constitui apenas a passagem à esfera espiritual, mas vale por si como horizonte terminal da existência, o pecado não é punido com uma penalidade espiritual após o Dia do Juízo, mas aqui mesmo e na forma do fracasso mundano, da doença ou da pobreza." (p. 263-264)

          O desequilíbrio advém de condutas erradas e, como comentei na postagem mencionada, é dever do cidadão denunciá-las. Desta forma, a censura ao comportamento alheio não é apenas consequência do poder simbólico e coercitivo do Estado, mas também resultado do estímulo deliberado por governos e os meios de comunicação para que as pessoas ajam como "bons cidadãos".

          Ser "bom cidadão" é, além de seguir as regras ditadas, denunciar as erradas de um estranho, de seu vizinho, amigo ou mesmo um membro da família.

          O atual situação de diversas censuras públicas de pessoas comuns sobre a ausência de uso de máscara e a aglomeração de pessoas na crise do coronavírus. Como disse, em junho, um guarda municipal de Belo Horizonte, que as pessoas aglomeradas na ruas não tinham "responsabilidade, empatia e respeito em relação às outras pessoas"; ou ainda o grande número de denúncias feitas pelo Disque-Denúncia (nome sugestivo) do Rio de Janeiro pelo mesmo motivo.

         Vocabulário politicamente incorreto, consumo de gordura e açúcar, energia jogada "fora", supostas atitudes de preconceito, afirmação firme de uma única fé. A lista de pecados mundanos é enorme.

          A diferença é que o pecado, sendo originalmente espiritual, pode ser redimido pelo arrependimento do pecador, ao passo que o pecado mundano não apenas não admite arrependimento como pune, no ato, a pessoa pelo constrangimento direto, quando não a multa e a cadeia. E o carrasco pode ser seu vizinho.

          O novo moralismo moderno é um tribunal impiedoso


O fardo do homem normal


"A imaginação falida e depravada não consegue perceber que um homem vivo
é muito mais dramático do que um homem morto." (G. K. Chesterton)

          Não é necessário dizer que a masculinidade é uma característica não só pouco valorizada em tempos de pós-modernidade como até mesmo hostilizada.
          Mas é necessário lutar, pelo fortalecimento da personalidade e da vida interior (e isto é válido tanto para homens quanto para mulheres, dado que elas são a parte complementar do homem), para que a masculinidade não apenas não seja perdida, mas lapidada como algo a ser valorizado e honrado. Por todos.
          Ser homem não é ser machão, forte, animalesco e cheio de músculos como o estereótipo grosseiro de Hollywood, mas ter a postura firme de ação de defesa junto às outras pessoas, em particular a mulher, sendo forte e durão se necessário.

          Chesterton nos lembra, nesta passagem, que o homem sofre por justamente ter de lutar por seu papel de ser homem.
          Esta posição não é estar acima da mulher e das crianças, mas ao lados deles, à frente na defesa e atrás no apoio.
          Seu preço está no risco; seu sofrimento em expor-se ao risco. Quem consegue dormir em paz sabendo que, no dia seguinte, não terá como trazer à mesa a comida necessária à família? Ou, em meio ao conflito, receoso de que o ladrão ou o inimigo adentre sua casa?
          Um homem ativo é o homem disposto ao sofrimento direto, visível, físico, imagem hoje renegada e "desconstruída" por meio da demolição da masculinidade.
          Já não basta o homem viver o drama de se expor ao sofrimento, tem ainda de culpar-se pela tragédia de ser homem, fruto do que Chesterton chama de "imaginação falida e depravada".
          Por isto nosso escritor nos lembra que o homem morto é menos dramático do que o vivo. Afinal, quem irá se sacrificar na defesa dos mais fracos se o homem abdica de ser homem?
          Se um homem morto é menos dramático do que um vivo, a era pós-moderna resolveu eliminar este problema matando a masculinidade e jogando, assim, todo o fardo masculino nos ombros de mulheres e crianças.
          Eis o preço da "diversidade".

segunda-feira, 6 de julho de 2020

A politização de todas as coisas


          Nos últimos anos, os brasileiros foram vítimas e algozes das disputas políticas pela internet. Foram inúmeras as histórias de brigas, rompimentos, sepultamento de longas amizades que tiveram como estopim temas políticos.

          Lula e Bolsonaro à parte, este é um efeito característicoa da era moderna e fruto direto de um declínio espiritual: a politização de todas as coisas. Diminuída a relevância da vida religiosa pelo processo de secularização, o mundo, isto é, as coisas do imanente, a prática do dia-a-dia, o sensível, o visível o manipulável, tomou a gigantesca dimensão antes atribuída às coisas do espírito.

         O mundo, antes confiado à Providência pelo sentimento religioso do povo, agigantou-se e tornou-se assustador aos olhos do homem moderno, que, em sua cosmovisão limitada, vê apenas uma saída possível (e falsa) para apaziguar o medo: domar o mundo pelo poder político.

          Nas últimas postagens tenho citado a obra "A Traição dos Intelectuais", de Julien Benda. Para o autor, o principal traço desta traição está no abandono à investigação desinteressada da realidade pelos intelectuais e seu empenho pelas coisas práticas, que toma forma de ativismo político. Antes buscando entender o mundo, os intelectuais modernos agora querem transformá-lo, subjugando todos os seus princípios a este objetivo.

          Mas esta politização de tudo não seria possível sem antes uma revolução na cultura. Outro autor aqui mencionado recentemente, o historiador Paul Johnson, afirma que foi justamente o relativismo, advindo das transformações filosóficas enraizadas no século XIX, que permitiu a ascensão de poderes tirânicos e totalitários. Sem antes relativizar a própria vida humana, não seria possível que o poder revolucionário e opressor dos regimes nazista e comunista fossem possíveis. Não se pode matar dezenas de milhões de pessoas tratando-as como pessoas. É preciso desumanizá-las.

          Ao analisar o período pós-colonial do século XX, Johnson afirma que "o político profissional de tempo integral herdou a terra no século XX". Ainda que antes houvesse pessoas do tipo, o político permanente, aquele que vive da política e da agitação, é um traço característico dos últimos pouco mais de cem anos. Para Johnson, os comunistas russos e chineses e os novos líderes do então terceiro-mundo eram exemplos típicos desta classe.

          Esta classe, porém, não poderia se manter de forma permanente sem uma máquina que a sustentasse, e o Estado moderno, com seu aparato burocrático gigantesco necessariamente provido por impostos compulsórios na mesma proporção, não só foi o resultado inevitável do político profissional como é por ele retroalimentado.

          O enorme crescimento desta classe foi possível tanto pela corrupção moral dos intelectuais apontado por Benda quanto pelo próprio processo de modernização, que tem como efeito a complexização da vida cotidiana e o sufocamento da vida religiosa. A era moderna "matou" velhos deuses para colocar reis, chefes de Estado e ditadores no seu lugar.

          A relação entre modernização e crescimento do poder do Estado pode ser encontrada na principal obra de Bertrand de Jouvenel, "O poder. História natural de seu crescimento", diversas vezes citado nos escritos de Olavo de Carvalho e muito bem apresentado no artigo "O Estado e a razão", onde o autor afirma ser o Estado "a mais vasta e complexa criação da inteligência humana, a encarnação suprema da Razão".

          Mas em sua obra "O Jardim das Aflições", Olavo demonstra bem de que forma este crescimento do poder estatal se difunde na sociedade provocando a politização de todas as coisas. Como apontei acima, esta politização é precedida pela dissolução dos valores religiosos.

"O Estado liberal, que professa nominalmente a liberdade religiosa, é dos três o mais eficiente no combate à religião, como se vê pelo fato de que as massas, tendo conservado sua fé religiosa sob opressão nazifascista e comunista, facilmente cedem ao apelo das 'novas éticas' disseminadas pela indústria de espetáculo nas modernas democracias, e abandonam, junto com a religião, até mesmo os preceitos mais óbvios do direito natural: exercendo livremente seus 'direitos humanos' sob proteção do Estado democrático, as mulheres que praticam nos EUA um milhão e meio de abortos por ano logo terão superado as taxas de genocídio germano-soviéticas. Muito mais eficiente do que a tirania de Hitler e Stálin é o regime que, legalizando e protegendo todas as exigências tirânicas e autolátricas de cada ego humano, produz milhões de Stálins e Hitlers." (p. 180)
          
          Com a dissolução da religiosidade da população dissolvem-se, com o tempo, os princípios que sustentam a ordem social ameaçando a ordem mesma.  Assim, o cânone da nova moral secular substitui, mal e porcamente, a ordem espontânea anterior.

"Do outro lado, compensando astuciosamente o desequilíbrio que a liberação desenfreada de desejos poderia causar, o Estado neoliberal produz novos códigos repressivos que, descarregando a reação violenta do superego em alvos moralmente inócuos (o fumo, os beijos roubados, as cantadas de rua, o machismo, o vocabulário corrente, as piadas), dão um Ersatz de satisfação ao impulso natural da moralidade humana, impedindo-o de expressar-se numa condenação frontal de um estado de coisas marcado pela impostura obrigatória universal. (...) ... o Estado, sem deixar de ostentar o prestígio da lenda democrática, acaba por se imiscuir em todos os setores da vida humana, por regulamentar, fiscalizar e punir até mesmo olhares, risos e pensamentos." (p. 180-181)

          Hoje, as denúncias constantes por governos e emissoras de televisão de aglomerações a céu aberto e o não uso de máscaras pelas pessoas comuns, bem como supostas ações racistas e preconceituosas, não apenas repetem literalmente o processo descrito acima, como se apresentam de forma muito mais ostensiva, moralista e repressora. 

          A politização invadiu tudo, da simples presença física nos lugares "errados" ao pensamento e a linguagem, e seu principal fruto é a proliferação ilimitada de Hitlers e Stálins que, em nome da "saúde" e da "democracia", agem como censores da conduta alheia e acabam por instaurar a desconfiança mútua e a opressão de todos por todos.  

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Ainda a traição dos intelectuais: a tragédia na avidez em transformar o mundo


          Quem ler minhas breves e pontuais postagens sobre os aforismas do escritor G. K. Chesterton verá comentários críticos voltados principalmente aos chamados "progressistas".

          Progressistas são aqueles que acreditam num progresso, numa evolução linear da humanidade, principalmente no campo moral justificado pelo avanço da técnica. 

          Para o progressista, se no passado as pessoas buscavam explicar os fenômenos pela fé em Deus, hoje buscam pela razão; se antes o divórcio era mal visto, hoje ele é moralmente aceito quando não bom; se as pessoas reverenciavam os mais velhos, hoje devem lutar para se manter jovens; se antes valorizavam a vida humana, hoje valorizam a animal tanto quanto a humana; se antes amavam a família, hoje amam genericamente a humanidade ou o planeta. Em suma, as pessoas "evoluem" moralmente ao longo da História. 

          Uma das últimas modas progressistas foi a ideologia diversitária cuja ideia, inicialmente propagada pelo movimento LGBT, alega ser a identidade de gênero um construto social e, portanto, passível de mudança por uma questão puramente subjetiva. Não haveria associação direta entre corpo biológico e auto-identificação. Disto deduz-se que alguém pode ser o que bem entender desde que tome consciência de sua identidade sexual. 

          A diversidade foi erigida como valor absoluto, dissolvendo desde dentro a família nuclear e o casamento, instituições arraigadas no passado. É a "evolução", diriam os progressistas.

          Ocorre que tal mentalidade, uma cosmovisão baseada na distorção do real, distingue-se da da maioria das pessoas, a quem Chesterton chama de Homem Comum. Este vive na realidade direta do cotidiano, preocupa-se com seu sustento material e dos seus próximos e pouco ou nada tem a dizer sobre problemas abstratos ou problemas distantes como guerras e catástrofes ambientais do outro lado do globo.

          É aqui que entra o papel dos intelectuais, que, na obra de 1927, Julien Benda alertou para o desvio de seu ofício original, a dizer (e nunca é demais relembrar): a busca pela justiça, a verdade e a razão.

          A principal traição desta classe privilegiada pela capacidade de compreensão do mundo está na luta pela causa, na adesão a uma paixão de caráter político e, portanto, prático. 

          Os intelectuais distinguem-se das pessoas comuns, os homens comuns, a quem Benda chama de "leigos", por não se preocuparem primordialmente pelas coisas do mundo. Eles "não perseguem fins práticos" e "dizem, de certa maneira, 'Meu reino não é deste mundo." E continua o autor:
"De fato, desde mais de dois mil anos até estes últimos tempos, percebo através da história uma série ininterrupta de filósofos, de religiosos, de literatos, de artistas, de cientistas - pode-se dizer quase todos ao longo desse período - cujo movimento é uma oposição formal ao realismo das multidões."
          Não que se preocupar com as coisas do mundo seja ruim em si, pelo contrário, é necessário, mas a ação exige uma compreensão prévia segura e profunda das coisas, papel que cabe à intelectualidade. Mais adiante Benda continua:
"...a ação desses intelectuais permanecia sobretudo teórica; eles não impediram os leigos de encher toda a história com o ruído de seus ódios e de suas matanças; mas os impediram de ter a religião desses movimentos, de acreditar-se importantes porque agiam para realizá-los. Graças a eles, pode-se dizer que, durante dois mil anos, a humanidade fazia o mal mas honrava o bem. Essa contradição era a honra da espécie humana e constituía a fissura por onde podia se introduzir a civilização." [grifos do autor]
          Esta passagem revela a extrema importância dos intelectuais pois, ao não se comprometerem propriamente com as coisas do mundo (planos políticos, movimentos sociais, planejamentos administrativos, ideologias, doutrinas, etc), eles dirigem os acontecimentos dando-lhes o norte daquilo que é o bem e o verdadeiro, os valores necessários para a convivência humana apesar dos erros da humanidade. O intelectual é o guia que permite sustentar a civilização e garantir a própria sobrevivência do homem.

          Mas a coisa mudou na era moderna:
"Ora, no final do século XIX produz-se uma mudança capital: os intelectuais passam a fazer o jogo das paixões políticas; os que formavam um obstáculo ao realismo dos povos tornam-se seus estimuladores." [grifos do autor]
          Benda aponta aí a traição: não mais comprometidos com a compreensão da realidade, a intelectualidade começa a buscar a direção do rumo dos acontecimentos. Ela deseja mudar o mundo.
"Ter por função a busca das coisas eternas e acreditar em um engrandecimento ao se ocupar da cidade, tal é o caso do intelectual moderno. - Que essa adesão do intelectual às paixões dos leigos fortalece essas paixões no coração desses últimos, é algo tão natural quanto evidente." 
          Ou seja, o intelectual moderno continua a aspirar as coisas eternas, perenes e, portanto, não práticas, mas passa honrar sua vocação nas coisas do mundo. Em outras palavras, busca a realização prática de seu ideal, o paraíso nas coisas terrenas, e tenta convencer o leigo de que deve lutar por esta mesma realização. 

          A traição do intelectual moderno alertado em Benda é a figura do revolucionário, que não se contenta em buscar a verdade para apresentar às pessoas de forma que tenham uma vida boa e feliz, mas transformá-la, e fazer das pessoas sua massa de manobra para seus sonhos utópicos. O intelectual moderno de Benda é o inimigo por excelência do Homem Comum de Chesterton.

          Não é necessário voltar à história recente para ver em figuras como Lênin e Stálin, eles próprios intelectuais, Hitler e Mussolini, insuflados por movimentos nacionalistas e ocultistas, e os extremistas islâmicos, embebidos de doutrinas religiosas, fascistas e revolucionárias, o fruto do ávido desejo destes de mudar o mundo, e o que o desvio do pensamento para coisas impróprias pode fazer.

          A loucura do mundo de hoje não é apenas consequência das catástrofes recentes, mas da insistência dos gênios em consertá-lo e dirigi-lo a objetivos que mudam ao sabor das épocas.

          Até recentemente, estávamos mergulhados na propaganda massiva da ideologia diversitária, na luta pelos direitos das mulheres e no combate às "mudanças climáticas". Subitamente, em meio ao medo generalizado, fomos forçados a mudar todo o cotidiano em nome da saúde, e agora, mais uma vez, vemos emergir a luta "antirracista". 

          Todos estes são objetivos políticos voltados para criar um "mundo melhor"; são estes os frutos mais evidentes da ação dos intelectuais no seu desvio das coisas do espírito para as coisas do mundo. Como diz Benda:
"...eles puseram no topo dos valores morais a posse de bens concretos, da força temporal e dos meios que os proporcionam, e votaram ao desprezo dos homens a busca dos bens propriamente espirituais, dos valores não práticos ou desinteressados." 
"Esse deslocamento da moralidade é com certeza a obra mais importante dos intelectuais modernos, a que mais deve reter a atenção do historiador."
          Pela atmosfera de loucura que paira sobre o mundo, podemos deduzir a confusão que passa pela cabeça dos que traíram seu ofício original e arriscam jogar o mundo, hoje mais complexo e munido de armas e tecnologias antes inexistentes, numa tragédia ainda maior do que as do passado recente.

         Transformar o mundo significa transformar para algo. Não necessariamente para melhor.