segunda-feira, 27 de março de 2023

Catedral Católica Ucraniana de Londres (King's Weigh House Chapel)

                    (Catedral Católica Ucraniana vista a partir do Brown Hart Gardens, para leste.)                    

          Em fevereiro passado, após descer na estação de Bond Street, resolvi caminhar na direção oposta da Oxford Street no distrito de Mayfair, na área central de Londres. A expectativa era rever o bairro e visitar uma igreja católica do local. 

          Menos de duas quadras depois me deparei com um belo edifício de tijolo avermelhado - como muitos da área - com formato ovalado no andar superior e uma torre de uma igreja na esquina seguinte. Logo pensei em se tratar de mais uma das tantas igrejas anglicanas da cidade. Mas não, era uma igreja católica ucraniana cujo nome é Catedral Católica Ucraniana da Sagrada Família de Londres.

          O edifício se chama King's Weigh House Chapel e seu nome está estampado na parede lateral junto à Binney Street, uma das ruas transversais à Bond Street. Logo na entrada da nave da igreja, cujas portas estão voltadas à Duke Street, temos dois pequenos painéis (1) explicando a origem da construção até sua posse pelos imigrantes católicos ucranianos na segunda metade do século XX.

          Apesar de compartilhar da harmonia dos edifícios daquela porção de Mayfair, construídos com tijolos que dão o aspecto avermelhado do local, a construção se destaca pela robusta torre com o campanário e a já mencionada porção ovalada que abriga a nave da igreja. 

          O desenho é do prestigiado arquiteto Alfred Waterhouse (1830 - 1905), autor de diversas obras belas e originais, com destaque ao Museu de História Natural de Londres. Segundo o projeto British History Online (BHO) (2), que descreve em detalhes a origem da igreja em Mayfair, seu "estilo, uma variante do romanesco carolíngio que Waterhouse gostava, combina particularmente com tijolo vermelho rosado e abundantes revestimentos de terracota". Esse perfil integra perfeitamente a obra junto às elegantes construções da Duke Street e seu entorno.

          Segundo os painéis da entrada, a igreja tem origem na chamada Capela Livre - livre da jurisdição episcopal - fundada pela então Rainha Matilda (1102 - 1167) e localizada nas imediações da Torres de Londres, o principal edifício da cidade na época. 

          A situação se manteve estável até 1662, quando o Reio Carlos II (1630 - 1685) decretou o Ato de Uniformidade (3) estabelecendo reformas na Igreja da Inglaterra, então já separada da Igreja Católica, com base no Book of Common Prayer e atrelando-a mais fortemente ao Estado. Uma grande parte da congregação não aceitou as reformas do governo e se separou da Igreja da Inglaterra. Mais de dois mil sacerdotes saíram ou foram expulsos da Igreja num evento conhecido como Grande Expulsão (4) e compuseram um grupo de religiosos que mais tarde seriam chamados de não-conformistas. 

          Aqueles que viriam a fundar a nova congregação se estabeleceram em Cornhill, onde na época se localizava o King's Beam (5) - Barra ou Trave do Rei - utilizado para pesar os produtos que entravam na cidade Londres. Daí a origem do nome da congregação, que passou a se chamar King's Weigh House no final do século XVI e ocupou vários locais pela cidade até se estabelecer num igreja na Fish Street Hill, próximo ao Monumento ao Grande Incêndio de 1666. 

          No final do século XIX, começaram a surgir os planos (6) que dariam origem à atual igreja na Mayfair. Um projeto de lei local de 1864 propunha a compra do espaço utilizado pela King's, situação que se arrastou até 1883, quando a congregação foi forçada a deixar a igreja na  Fish Street Hill para a construção do primeiro edifício da Monument Station. O período coincidiu com o drama de outra congregação religiosa em Londres, a da Robert Street (atual Weigghouse St.), que possuía uma capela na Duke Street mas que seria demolida em 1886 para a construção de habitações. Esta também buscava um novo espaço para seus serviços religiosos. 

          O ministro responsável pela pequena congregação da Robert Street conseguiu um novo terreno no atual local da King's Weigh House junto ao Hugh Lupus Grosvenor (1825 - 1889), 1º Duque de Westminster, que ofereceu o arrendamento do terreno por um preço muito baixo. Segundo o BHO, o Duque era bastante "generoso em relação às instituições religiosas de todo o tipo". O projeto para uma nova igreja foi escolhido através de uma competição. O desenho do arquiteto australiano John Sulman (1849 - 1934), de estilo gótico, previa um espaço para mil pessoas, mas era caro e não poderia ser bancado pelo grupo.

          No início de 1887, a congregação da King's tomou conhecimento do caso do grupo da Robert Street. Com a saída forçada da Fish Street Hill, o grupo recebeu larga quantia da Metropolitan and Distritc Railways Companies e poderia ajudar no pagamento da obra. Havia quatro anos que realizava seus serviços no Hotel Cannon Street Station, que existia junto à estação do mesmo nome. Logo em seguida, ambas as congregações formaram um comitê para realizar o empreendimento.

          Esse comitê escolheu, em abril de 1888, o arquiteto Alfred Waterhouse para desenhar o novo edifício. A documentação disponível no BHO caracteriza Waterhouse como alguém com "rigor, clareza e domínio do plano" em seu trabalho. Sob orientações também do Duque, que conhecia o arquiteto e concedeu arrendamento de noventa e nove anos do terreno para a obra, os trabalhos começaram no verão de 1889 e terminaram em julho de 1891, quando foi realizado o primeiro Concílio Congregacional Internacional na nova casa. Tanto a congregação da King's Weigh House como a Robert Street passaram a utilizar o local, mas logo o segundo grupo foi absorvido pelo primeiro.

          Já foi mencionada aqui a beleza da igreja de Mayfair. Sua entrada pela Duke Street é dividia em três arcadas sobre uma curta escadaria que a liga à calçada. Na fachada, à esquerda, há um segundo piso e uma torre discreta para ventilação e, à direita, a torre principal na esquina com a Weigghouse Street. Esta ergue-se acima de nave ovalada da igreja e pouco acima dos edifícios do entorno com um campanário, telhado pontiagudo e uma discreta cruz branca em seu cume. Ao exemplo da foto acima, sua faixada pode ser contemplada do Brown Hart Gardens (7), construído em estilo barroco em 1903-5, junto com os edifícios de tijolos vermelhos (8) erguidos em 1886-8 como habitações para a classe trabalhadora das indústrias de Londres.

          Nas ruas lateral e detrás da igreja, Weighhouse Street e Binney Street, respectivamente, o edifício se projeta com vitrais duplos (9) inspirados no movimento Arts and Crafts dispostos numa arcada, havendo na segunda rua uma placa de pedras brancas com a inscrição "King's Weigh House Chapel. These buildings were erected in the yeard 1891 for the worship and service of God". Acima, destaca-se a nave ovalada da igreja cercada parcialmente por vitrais compridos na vertical e coberto por telhas marrom-escuro. Na sequência da Binney Street estão as salas de aula com um hall no andar superior e a casa do ministro da congregação construídos com o mesmo material da igreja, mas distribuídos de forma irregular com três andares e amplas janelas para a rua.

          No interior, o edifício chama a atenção pelo revestimento em madeira e a luminosidade escassa. Há um forte senso de isolamento em relação ao ambiente externo. Modificada para o rito greco-católico ucraniano, há uma iconóstase que separa a nave onde ficam os fiéis e o santuário (altar) reservado ao clero. Nos ícones - os que consegui identificar - estão São Nicolau na ponta esquerda e São João Batista na direita, Mãe de Deus e Jesus Cristo junto à porta central; acima episódios centrais da vida de Cristo com os Doze Apóstolos numa faixa superior, e no arco da porta a Santa Ceia encimada com Cristo no trono acompanhado por Maria e José. O ícone da Sagrada Família, que dá nome à catedral, estava colocada junto à mesa à frente da porta para contemplação dos fiéis.

          No andar superior, há belíssima arcada de madeira em estilo clássico italiano na altura. Seu formato de elipse acompanha a nave da igreja e fecha-se com os ícones na parte superior da iconóstase dando sensação de aconchego e embelezamento. O formato representa o perfil congregacional original de uma igreja protestante. Vitrais intercalados com ícones de santos venerados pelo cristianismo oriental compõe a parede do andar citado completado pelo teto verde-escuro suspenso por uma arcada em madeira, tendo ao seu centro um destacado lustre metálico banhado a ouro.

          Mas para chegar a este perfil na decoração interior e estar sob posse de greco-católicos ucranianos, a King's Weigh House passou por muitas transformações físicas e organizacionais ao longo do século XX. Um grande órgão, que inicialmente ficava na porção leste - onde hoje está o altar - foi colocado na porção oposta em duas extremidades a partir de 1903, além de novas decorações com estátuas e vitrais. Desde então, porém, a congregação declinou até a chegada do ministro presbiteriano escocês William Edwin Orchard (1877 - 1955).

          Orchard (10) foi um marco na história da King's Wieigh House. Era considerado "socialista, pacifista e simpatizante católico", segundo a documentação do BHO, além de líder do grupo ecumênico Sociedade dos Católicos Livres. Chegou à King's como ministro no verão de 1914 e introduziu elementos católicos e de tradições cristãs reformadas no culto, como o uso do incenso e do sacrário. Bastante persuasivo, houve um aumento de fiéis na congregação tanto pelo seu discurso pacifista - sua chegada ocorreu durante a I Guerra Mundial - quanto pelos elementos católicos que introduziu na prática devocional. 

          Em 1919, Orchard publicou um livro que compilava o serviço de culto utilizado na igreja contendo elementos do Book of Common Prayer (anglicano), do missal romano e das liturgias cristãs orientais. Após a morte de sua esposa Annie, em 1920, ele se aprofundou na tradição católica e tentou fazer da King's Weigh House uma espécie de "igreja ponte" entre os ramos católico e protestante. Serviços, música, culto, vestimentas e práticas sacramentais se tornaram cada vez mais católicas. Em 1926, uma nova versão do livro publicado sete anos antes também trazia mais elementos dessa tradição. Mas em 1931, após anos de negociações, a tentativa de unir os grupos católico e protestante na igreja de Mayfair falharam, e Orchard, em crise pessoal, deixou a King's no início de 1932, e parte da congregação o seguiu. Em 2 de junho daquele ano foi batizado na Igreja Católica, em Roma, onde se tornou sacerdote em 1935.

          A principal das poucas alterações físicas que o marcante ministro ecumênico deixou na igreja de Mayfair foi o retábulo de madeira no altar. Após sua partida, a congregação declinou bastante ao longo dos anos 1930. 

          Em 20 de outubro de 1940, a King's Weigh House foi severamente danificada após ser atingida por uma bomba lançada por bombardeiros alemães na II Guerra Mundial. O ataque ocorreu durante um serviço religioso e matou a esposa do então ministro da congregação. Ainda assim, o edifício sobreviveu às demais investidas bélicas que, ao exemplo do ataque de 29 de dezembro do mesmo ano, destruiu um terço da City de Londres e arrasou por completo uma área próxima à Catedral São Paulo. Durante o conflito, a igreja se tornou centro de observação de incêndios e local de acolhimento.

          Apenas um pequeno grupo realizava as atividades quando, em 1946, a congregação recebeu a Constance Coltman, a primeira mulher ordenada ministra no Reino Unido. A ordenação foi realizada por Ochard ainda protestante em 17 de setembro de 1917 na própria King's. Constance tinha por objetivo reavivar a igreja e ficou no local até 1949. 

          Com o tempo, a congregação foi declinando. Apenas em 1953 o edifício foi totalmente reformado e reaberto. O local era frequentemente alugado para outros serviços e reuniões de propósitos variados. Também serviu por vários anos como capela protestante para os membros da marinha americana posicionados em Londres até ser fechada por tempo indeterminado.

           A King's Weigh House ficou inutilizada e chegou a acumular poeira. Em 1965, a congregação se fundiu à Whitefield Memorial Road, da Tottenham Court Road, e se dissolveu (11) de forma definitiva no ano seguinte.

          O próximo grupo religioso a utilizar o local seria o de católicos ucranianos, que estabeleceram ali sua catedral existente até hoje. Mas como um grupo estrangeiro - e católico - tomou posse da King's?

          Após a II Guerra Mundial (12). batalhões britânicos compostos por ucranianos e refugiados espalhados pela Europa Oriental se estabeleceram no Reino Unido. Entre 1946 e 1950, até 35.000 ucranianos chegaram ao país, e na metade da década de 1950 até 10.000 saíram para outras regiões da Europa e América do Norte. Parte significativa daqueles que se estabeleceram definitivamente em terras britânicas eram católicos de rito oriental.

          Nesse meio tempo, a Igreja Católica Ucraniana (13) foi registrada como instituição de caridade de acordo com as leis britânicas em 9 de julho de 1965. Mas sua criação efetiva ocorreu antes, em 10 de junho de 1957, quando a Santa Sé erigiu o Exarcado Apostólico para Católicos Ucranianos do Rito Bizantino (14) com o objetivo de organizar sua missão na Inglaterra e no País de Gales. Três anos mais tarde, em 12 de maio de 1968, a missão do exarcado foi estendida à Escócia transformando-se no Exarcado Apostólicos para os Católicos Ucranianos no Reino Unido conforme decreto estabelecido em março do ano anterior.

          A essa altura, a organização ainda não possuía estrutura para uma eparquia em todo o país e estava sob comando, inicialmente, do Arcebispo de Westminster, William Godfrey (1889 - 1963) - bispo de rito latino - que liderava todos os católicos no território britânico. Apenas após sua sua morte em 1963, seu bispo auxiliar, Augustine Hornyak (1919 - 2003) - este sim do rito greco-católico - foi apontado como exarca da organização.

          A aquisição da King's Weigh House (15) ocorreu em 26 de outubro de 1967 após uma campanha difícil de arrecadação. Até então, a Igreja Ucraniana possuía dezessete paróquias, mas não uma catedral. A primeira igreja ucraniana no Reino Unido foi a de Saffron Hill, em Londres, adquirida em julho de 1948, consagrada em dezembro do mesmo ano, mas vendida como parte do esforço da campanha de fundos.

        Ao exemplo das demais paróquias, o edifício foi adaptado ao rito greco-católico. No lugar do púlpito protestante foi construído o altar e a já mencionada iconóstase (16) - objeto característico do cristianismo ortodoxo dos qual os greco-católicos são herdeiros - pintada pelo monge ucraniano Juvenalij Mokrystky (17) e instalada apenas em 1980; o órgão e a bancada foram retirados; os bancos da nave substituídos por cadeiras e foram colocados confessionários desenhados pelo arquiteto John Francis Bentley (1839 - 1902) de acordo com o modelo da Catedral de Westminster, em Londres. Bentley ganhou notoriedade pelo desenho neo-bizantino dessa mesma catedral católica.

          A inauguração da nova King's ocorreu num sábado, 29 de junho de 1968, numa celebração liderada pelo bispo Hornyak e recebeu o nome de Catedral Católica Ucraniana da Sagrada Família no Exílio. O nome deriva da Carta Apostólica Exsul Familia Nazarethana (18), de 1º de janeiro de 1952, onde o Papa Pio XII se compromete em proteger católicos exilados como os ucranianos e restaurar a hierarquia da Igreja. 

          Até hoje a igreja se mantém em uso contínuo, com altos e baixos nas atividades. Na década de 1970, um conflito entre Hornyak e o arcebispo da Igreja Greco-Católica Ucraniana - chamado de patriarca - Josyf Slipyj (1892 - 1984) levou ao enfraquecimento da comunidade e a uma grande redução do número de fiéis, que por um período não passavam de apenas trinta pessoas nas celebrações. Uma das consequências disso foi o adiamento da instalação da iconóstase, dada a diminuição dos recursos disponíveis. Ao longo da década de 1980, porém, a comunidade se recuperou, e a iconóstase foi instalada. Na década seguinte, uma nova leva de imigrantes ucranianos chegou ao Reino Unido vinda da agora Ucrânia independente. Nos anos 2000, a estimativa (19) era de que em torno de cem mil pessoas se consideravam ucranianas ou possuíam cidadania desse país.

          Apenas por um breve período a King's deixou de ser utilizada. Em 13 de agosto de 2007, parte de seu teto da igreja desabou (20). Durante meses os serviços foram realizados no hall ao lado da nave e na Igreja da Imaculada Conceição, também em Mayfair, dirigida pelos jesuítas. Nessa época, a Igreja Ucraniana estava sem um exarca, que foi apontado apenas em 2 de agosto de 2011 após seis anos e meio de sede vacante. O então administrador do exarcado, bispo Hlib Lonchyna, assumiu o cargo.

          Em 8 de janeiro de 2013, o Papa Bento XVI elevou o exarcado à categoria de eparquia - equivalente à diocese no rito latino -, que recebeu o nome de Eparquia Católica Ucraniana da Sagrada Família de Londres, sem a denominação "no Exílio", e Lonchyna tornou-se eparca.

          Contemplando o interior da igreja por mais de quarenta minutos, pude não apenar relaxar por um tempo, mas absorver, com muito pouca consciência de tudo o que foi contado aqui, da história do lugar, agora reavivado por acontecimentos muito recentes.

          Logo que havia entrado no edifício chamou minha atenção duas bandeiras à direita de quem está de frente ao altar, uma da Ucrânia e outra do Reino Unido. Imediatamente lembrei da corrente guerra na Ucrânia e pensei em se tratar da demonstração do vínculo entre a comunidade local e seu país de origem como sinal de apoio e presença distante. A guerra havia iniciado quase um ano antes da minha visita, e não pude deixar de imaginar o que os frequentadores da catedral estavam vivenciando. 

          A comunidade se tornou centro de atenção tanto da imprensa local como das autoridades políticas. Três dias após o início da guerra, o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson - ele mesmo católico - apareceu de surpresa numa celebração religiosa pela paz na Ucrânia (21). Johnson voltou ao local - agora fora do cargo - em nova celebração pela paz, quando o conflito completou um ano, e onde também compareceu o prefeito de Londres, Sadiq Khan (22).

          Minha visita ocorrera dez dias antes desse último evento, e durante todo o tempo que estive ali nem uma pessoa sequer apareceu. O silêncio era tão marcante que parecia que as almas tivessem desaparecido em lamúria e desânimo ou se recolhido para um local misterioso. O ambiente era de paz completa, em contraste com o que viva a terra de origem dos membros dessa comunidade de Londres

          No primeiro piso à esquerda havia a lembrança de outro acontecimento recente. Uma placa dourada lembrando a visita do Rei Carlos III, filho da recém falecida Elizabeth II, em 30 de novembro do ano passado. A inscrição comemorava os setenta e cinco anos do estabelecimento da Igreja Católica Ucraniana no Reino Unido. Chamou minha atenção que a visita ocorrera fora da data exata deste aniversário - no mês de fevereiro -, e especulei que talvez Carlos estivesse lá para deixar seu apoio aos ucranianos, se situar num conflito em andamento e se destacar frente ao legado de sua mãe, pretensamente neutras em questões políticas. 

          Divagações à parte, a Catedral da Sagrada Família de Londres é um local de história complexa e muito viva, onde altos e baixos convivem ao longo do tempo. Ela não é apenas espaço de busca pela paz que encontrei naquele local interiormente discreto, belo e silencioso onde se revive regularmente o sacrifício de Cristo, mas agora, mais do que nunca, é espaço de preservação e consolidação de uma identidade religiosa e nacional sob ameaça de destruição. 

          Com a guerra em andamento os corações se agitam no outro extremo da Europa, e dada a vitalidade, agora renovada, de uma igreja sob ameaça, os tijolos vermelhos da King's Weigh House ainda terão muita coisa para testemunhar no futuro. 

----------

Imagens


                       Inscrição com o nome original da igreja na parede voltada à Binney Street.

King's Weigh House vista da esquina da Weighhouse Street com a Binney Street.

        

     Fachada da King's Weigh House na Duke Street.                  Nave da igreja.

Iconóstase.

            

Lustre da nave.



Arcada de madeira em estilo italiano no andar superior.



Novamente o andar superior, agora com as luzes acessas. Imagens de santos católicos orientais na parede entre as janelas.


               Ícone da Sagrada Família sobre o altar.       Vitral de janela inspirada no Arts and Crafts.



Placa comemorativa da visita do Rei Carlos III em 30 de novembro de 2022.

----------

Referências

1) Brief history of our cathedral (Ukrainian Catholic Eparchy of the Holy Family of London). Disponível em: https://www.ucc-gb.com/cathedralhistory. Acesso em 14 de março de 2023.

2) Duke Street Area: Duke Street, East Side (BHO | British History Online). Disponível em: https://www.british-history.ac.uk/survey-london/vol40/pt2/pp87-91#h3-0003. Acesso em 14 de março de 2023.

3) Charles II, 1662: An Act for the Uniformity of Publique Prayers and Administrac[i]on of Sacraments & other Rites & Ceremonies and for establishing the For of making ordaining and consecrating Bishops Preists and Deacons in the Church of England (BHO | British History Online). Disponível em: https://www.british-history.ac.uk/statutes-realm/vol5/pp364-370. Acesso em 15 de março de 2023.

4) The Great Ejection: An Appreciation of the Ejected 350 Years Later (Stive K. Mittwede). Disponível em: https://www.academia.edu/24346080/The_Great_Ejection_An_Appreciation_of_the_Ejected_350_Years_Later. Acesso em 15 de março de 2023.

5) "The King's Beam" (Exeter Memories). Disponível em: http://www.exetermemories.co.uk/em/_art/kingsbeam.php. Acesso em 16 de março de 2023.

6) Duke Street Area: Duke Street, East Side (BHO | British History Online). Disponível em: https://www.british-history.ac.uk/survey-london/vol40/pt2/pp87-91#h3-0003. Acesso em 14 de março de 2023.

7) Duke Street Area: Duke Street, West Side (BHO | British History Online). Disponível em: https://www.british-history.ac.uk/survey-london/vol40/pt2/pp91-92. Acesso em 14 de março de 2023.

8) Duke Street Area: Introduction (BHO | British History Online). Disponível em: https://www.british-history.ac.uk/survey-london/vol40/pt2/pp86-87. Acesso em 14 de março de 2023.

9) King's Weigh House Chapel by Alfred Waterhouse (Jacqueline Banerjee). The Victorian Era. Disponível em: https://victorianweb.org/art/architecture/waterhouse/3.html. Acesso em 14 de março de 2023.

10) Orchard, William Edwin (1877 - 1955) (Elaine Kaye). Oxford Dictionary of National Biography. Disponível em: https://www.oxforddnb.com/display/10.1093/ref:odnb/9780198614128.001.0001/odnb-9780198614128-e-75389. Acesso em 16 de março de 2023.

11) The History of the King's Weigh House Church: a Charpter in the History of London. By Elaine Kaye. Pp 176. London: Allen & Unwin. 1968, 21s. (B. R. White). The Journal of Eclesiastical History. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/journal-of-ecclesiastical-history/article/abs/history-of-the-kings-weigh-house-church-a-chapter-in-the-history-of-london-by-elaine-kaye-pp-176-london-allen-unwin-1968-21s/2B8424C88E4BE54B007E3F9853F427B0. Acesso em 17 de março de 2023.

12) Ukrainians in the United Kingdom. (Roman Kravec). Ukrainians in the United Kingdom. Online encyclopaedia. Disponível em: https://www.ukrainiansintheuk.info/eng/01/ukrinuk-e.htm. Acesso em 18 de março de 2023.

13) About the Eparchy. (Ukrainian Catholic Eparchy of the Holy Family of London). Disponível em: https://www.ucc-gb.com/about. Acesso em 14 de março de 2023.

14) Brief history of our cathedral. (Ukrainian Catholic Eparchy of the Holy Family of London). Disponível em: https://www.ucc-gb.com/cathedralhistory. Acesso em 14 de março de 2023.

15) "In Exile No Longer": Holy Family Cathedral Celebrates 50 Years (Rev. Dr. Athanasius McVay). Annales Ecclesiae Ucrainae. Disponível em: https://annalesecclesiaeucrainae.blogspot.com/2018/06/in-exile-no-longer-holy-family.html. Acesso em 21 de março de 2023.

16) Cathedral Church of the Holy Family. (Latin Mass Society). Disponível em: https://issuu.com/latinmasssociety/docs/moa_summer_2022_final/s/15826372. Acesso em 21 de março de 2023.

17) About the Parish. (Roman Catholic Parish of Ukrainian Cathedral). Disponível em: https://issuu.com/latinmasssociety/docs/moa_summer_2022_final/s/15826372. Acesso em 21 de março de 2023.

18) Exsul Familia Nazarethana. (Pope Pius XII). Papal Encyclicals Online. Disponível em: https://www.papalencyclicals.net/Pius12/p12exsul.htm. Acesso em 22 de março de 2023.

19) Immigration from Ukraine since 1991. (Roman Kravec) Ukrainians in the United Kingdom. Online encyclopaedia. Disponível em: https://www.ukrainiansintheuk.info/eng/01/immig1991-e.htm. Acesso em 21 de março de 2023.

20) Cathedral collapse sparks exodus. (BBC News). Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/england/london/6957015.stm. Acesso em 21 de março de 2023.

21) Boris Johnson lifts spirits at Ukrainian church (Reaction). Disponível em: https://reaction.life/boris-johnson-lifts-spirits-at-ukrainian-church/. Acesso em 22 de março de 2023.

22) London: Mayor Sadiq Khan, Boris Johnson, attend prayer service on anniversary of Ukraine invasion. (Jo Siedlecka). ICN. Independet catholic news. Disponível em: https://www.indcatholicnews.com/news/46622. Acesso em 25 de março de 2023.

Livros

ACROYD, Peter. London. The Concise Biography. Vintage, London. 2012

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A cruz da pessoa desajustada


          Se você é um desajustado num mundo que lhe exige cumprir certos preceitos e comportamentos - preceitos e comportamentos que, na verdade, você idealizou como corretos - talvez sinta que nunca, jamais sua vida entrará nos eixos segundo esses ideais, reais ou imaginários.

          Para não falarmos de casos reais, podemos recorrer à literatura para descobrir o rumo que um desajustado pode tomar em sua vida, geralmente a um preço muito elevado se comparado, à primeira vista - veja bem, à primeira vista -, com aqueles que consideramos "felizes" e "realizados".

          Mesmo entre as pessoas famosas e influentes, apontadas como exemplos de sucesso nas coisas do mundo, há muitos casos de vocações frustradas, mesmo quando elas cumprem aparentemente os dois pilares que compõem o ideal de felicidade na sociedade moderna, que são a plena realização no casamento e no trabalho.

          O escritor russo Fiódor Dostoiévski, por exemplo, vivia em condições paupérrimas apesar de seu enorme talento com o intelecto e as palavras. Alguém que "deu errado" mesmo em seu tempo, o século XIX, dada algumas qualidades tão evidentes em relação à esmagadora maioria das pessoas. 

          Cito este escritor porque um de seus personagens exemplifica muito bem a enorme dificuldade que uma pessoa pode ter para se adaptar ao mundo. Trata-se de Liev Nikoláievitch Míchkin, personagem principal do romance O Idiota e que carrega muitos traços característicos do autor. 

          O título do livro é um dos adjetivos do pobre homem que, sofrendo de epilepsia e fortemente afetado pela turbulência de um meio social conflituoso e agonizante, não consegue se adequar ao ambiente em que se inserira. Príncipe Míchkin, como é chamado, acaba numa clínica para doentes mentais na Suíça, longe do mundo que o rejeitara na Rússia, seu país natal.

          O mais interessante é que aquele que era chamado de "idiota" estava mais são do que todos os demais personagens. De alma pura, Míchkin não suportou as tensões emocionais de duas famílias aristocratas em conflito, a militância política de um grupo de revolucionários niilistas e a dubiedade e mesmo má intenção de uma das duas mulheres que por ele se apaixonaram. Sofrendo de epilepsia, doença que Dostoiévski possuía, eram muitas tempestades para alguém hipersensível para o ambiente entorno.

          Os críticos da obra caracterizam o príncipe Míchkin como um misto de Jesus Cristo com Dom Quixote para definir sua pureza e ingenuidade quase infantis. Pois num mundo doente, quem parece doente é justamente aquele que está são, e ainda mais doente aquele que é bom de coração. 

          Esse personagem é um claro exemplo de pessoas que não de enquadram no mundo, tomando aqui "mundo" não apenas no seu contexto social específico como também no sentido bíblico de sociedade humana. Mundo é a realidade organizada e criada pelo homem e, refletindo a imagem e semelhança de seu criador, carrega também suas incoerências e contradições.

          Pois o desajustado quer se evadir do mundo, e poucas coisas são mais tentadoras do que fugir deste mundo para um outro. Não, não falo de suicídio, e sim do refúgio na vida interior e o potencial dano que isso pode causar quando essa atitude cobra o preço de negar os deveres e necessidades da vida. 

          Ninguém está imune à necessidade de trabalhar para sobreviver, nem do dever de realizar coisas básicas no trato com o próximo como cumprir acordos tácitos que estão subjacentes, por exemplo, na resposta a uma pergunta ou num ato de compra e venda. Evadir-se do mundo não é a solução, mas fuga para o desejo imaginário de uma vida sem esforço, de um paraíso idílico sem o peso e o consequente suor cobrado pelo pecado original.

          A tentação de evasão do desajustado está em evitar os efeitos de um mundo que lhe agride por sua hipersensibilidade. O personagem Míchkin, ao mesmo tempo em que influenciava positivamente as pessoas ao seu redor com suas reflexões íntimas e exemplo de conduta, absorvia excessivamente o impacto das loucuras alheias. Um troca desigual causada por um sacrifício involuntário, o de iluminar os erros alheios através de um sofrimento psicológico que lhe tirava a paz a todo o instante.

          Não por acaso o mais bem acabado personagem de Dostoivéski acabou retornando à clínica onde estivera meses antes. O mundo era agressivo demais, louco demais para um homem excessivamente são e bom. Voltara à prisão a alma mais pura que não suportou a doença de um mundo que prenunciava a confusão e o caos que viria a perturbar muitas almas e se alastrar por toda a humanidade.

          Na literatura se multiplicam as figuras que não se encaixam no mundo. As obras distópicas são exemplares nesse ponto. Os personagens Bernard Marx de Admirável Mundo Novo, Winston Smith de 1984 e Juliana Frink de O homem do castelo alto se adaptam forçosamente a uma realidade hostil e lutam até o fim de suas forças para confrontar e vencer uma ordem repressiva e artificialmente imposta. Obviamente, estes são casos extremos, mas num mundo onde a liberdade a cada dia se torna mais exígua, mais e mais desajustados - e muitos conformados - começam a brotar em nossas esquinas.

          Possivelmente Dostoiévski corroboraria as atitudes desses heróis literários, como o enigmático personagem de Memórias do subsolo, que proclama em alta e profunda voz a liberdade humana em conflito com as limitações de sua própria condição existencial. Eis o desajustado por excelência, que se debate em sua impotência frente a um mundo que não pode transformar decaindo na apatia de uma experiência repleta de conflitos e frustrações, de uma vida num subterrâneo deprimido pela crosta que o oprime.

          Talvez a pessoa desajustada não seja apenas fora do lugar, mas sensível demais para aceitar uma ordem social deformada, doente na alma e conduzida por cegos rumo ao abismo. Mas isso não é razão para a apatia, e sim para a luta. Primeiro por sua própria sobrevivência, a necessidade de carregar uma cruz que, aparentemente, pesa mais do que a dos outros; e depois para, através dessa mesma superação, fazer do príncipe um vitorioso, iluminar pelo exemplo um mundo que jaz na escuridão.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Feliz Natal | 2022

          Creio que o Cristianismo jamais será compreendido enquanto não for visto como realidade, e não meramente fé, como se essa fosse distinta do próprio mundo em que vivemos e, pior, como se fosse alheia à razão. Jesus Cristo é uma realidade, Seus milagres são realidades, Sua morte e ressurreição são realidades, Sua presença em pessoa na Santa Comunhão é uma realidade!

          O Natal, portanto, não é simplesmente história e tradição. É fato. É acontecimento!! E o mais impressionante é que Jesus, sendo Deus, que é o Eterno, o Infinito, o Absoluto, teve a infinita humildade de vir ao mundo e entrar na História como uma criança nascida numa estrebaria. Querem coisa mais chocante do que o Todo-Poderoso vir ao mundo da forma mais humilde possível? E mais, porque Ele quis? Porque foi Sua vontade? Ele poderia ficar lá, na Sua Glória, sorrindo eternamente para si mesmo.

          Mas não. Ele escolheu o amor. A maior prova de amor que o Natal traz é que um Ser tão poderoso se fez infinitamente pequeno por causa nossa, minha e sua. Ele se importa contigo. Isso é amor, meu camarada. Proporcionalmente você não é nada para Deus, mas por amor você é tudo para Ele. E Ele, ainda por cima, preparou-se por 33 anos para derramar todo o Seu sangue por você na cruz.

          O Natal é a celebração do amor mais profundo, mais largo, mais infinito que transcende a nossa inteligência. O amor de Jesus, de Deus, por nós é inimaginável! Absolutamente inimaginável!! Só o amor infinito seria capaz de cobrir o abismo intransponível entre a infinitude divina e a finitude humana. E Nosso Senhor Jesus Cristo, como Menino, cobriu esse abismo. O amor de Jesus por você é infinito, e por isso mesmo capaz de cobrir toda e qualquer distância, toda e qualquer solidão, toda e qualquer treva. O resto não importa. Só Ele importa. Só a Sua Pessoa, o Seu Amor importa. Tudo o mais é consequência.

          FELIZ NATAL!!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

O paradoxo da luz

 

          Poucas coisas me deprimem mais do que aqueles dias de calorão intenso, céu limpo e luz estourada ao ponto de enrugar o rosto ao pô-lo pelo lado de fora da janela. O calor opressivo e úmido desanima o corpo, a ausência de nuvens dissolve a esperança e a luz intensa - além da radiação emanada dessa mesma luz e que provoca o calor - exige proteção que, começando pelos olhos, acaba por puxar o corpo inteiro ao recolhimento.

          Psicologia à parte, tenho repulsa a essa experiência típica de final de ano e início das chamadas férias, onde a sociedade brasileira, refratária a tudo o que diz respeito à vida interior e ao senso mais básico de realidade, se joga ansiosamente ao culto de tudo o que essa época representa, virando a ordem de cabeça para baixo na medida em que a temperatura sobe. 

          Opressão, mal-estar, depressão e dispersão. Um caldo perfeito para os fracos de espírito se deixarem levar pelos três primeiros e, ao bater do desespero, se jogar de cabeça no quarto. Não por acaso o carnaval, tomado como o ápice de nossa "cultura" e "diversão", foi alçado às alturas muito além da festa da Páscoa no país que se ufana em dizer ser o "mais católico do mundo".

          Mas hoje, em meio à luz estourada do início de dezembro, vi outra luz. Não necessariamente com os olhos, pois os olhos veem o mundo, mas aquilo que a alma contempla e podemos chamar de graça. E essa graça não seria alcançável se o mundo não fosse também simbólico transcendente à sua forma imediata.

          A luz que cega é a mesma que ilumina, o calor que arde é o mesmo que dá a vida e a sensação de opressão que se abate é a mesma que nos impulsiona à vida interior. 

          Me recordo de uma viagem recente em fins de outubro quando voltava de Gramado para Porto Alegre num dia de céu limpo, e meu padrinho de crisma comentava sobre a luz forte já no miolo da primavera. Partindo dessa luz tropical intensa, dizia ele que os pintores europeus tinham à sua disposição a luz do sol das regiões de clima temperado, o que lhes conferia maior contraste de cores com as estações do ano. 

          Assim, se a luz menos intensa dá cores mais vivas, a luz mais intensa dá vida mais abundante, materialmente falando. Em ambos os casos ela realça a vida, ora pela estética, ora pela abundância.

          Mas a luz vai além do simbolismo, ela ilumina a alma, dá movimento e sentido à vida enquanto tal.

          São Boaventura chama Deus de Pai das Luzes, numa referência a Ele como origem da inteligência humana com sua capacidade de contemplar e transformar o mundo. Luz, aqui, é intelecção, inteligência, apreensão da realidade. Pois se a natureza não é apenas material, mas também simbólica, então ela nos diz muito mais do que a forma encerrada em si mesma. A natureza é o primeiro Evangelho, que nos exige contemplação e compreensão para uma vivência correta segundo a ordem estabelecida desde o Alto.

          Portanto, sem luz não haveria visão e, mais ainda, não haveria inteligência, atributo exclusivamente humano por graça divina. A luz compreende o tripé que permite o homem existir, ver e entender, e por isso mesmo se faz humano e tão próximo d'Aquele que o criou.

          Subitamente, a luz estourada desse início de dezembro que observei pela janela se transformou, por um instante, num chamado do Céu, como se dissesse: "Eu estou aqui". O ambiente opressivo se transformou em ânimo e força para um vida abundante, como se a radiação fosse transmutada em energia física, num alegoria da alma que se vivifica com a luz que vem do Céu.  

          Ninguém vive se não foi antes pensado pela mente divina. A luz é um fiat, o impulso vital que anima e dá a vida, como o ardente sol de verão que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que oprime dá a vida em abundância.

sábado, 5 de novembro de 2022

A corrida injusta

 

          Depois das eliminatórias, chegou a final da corrida mais especial do ano: os dois mil e oitocentos metros sem barreiras. Os finalistas, Lúcio e Jaime, estavam a postos para a largada. 

          O tempo nublava, ameaçava chuva com trovões à distância, e fazia muito calor. Na arquibancada absolutamente lotada, uma boa parte do público torcia para cada um dos seus atletas, e uma parcela menor, apesar de sentir o calor das torcidas, se mantinha indiferente preocupada apenas em ficar acomodada no seu lugar tomando um sorvete ou uma cervejinha. Pouco se importavam quem iria vencer e apenas se divertiam com as torcidas.

          Alessandro, o juiz da corrida, estava na largada para dar a partida, enquanto um subordinado ficava à linha de chegada. Olhava com fixação para a pista de saibro, seus olhos negros transmitiam determinação enquanto a careca lustrosa brilhava à luz do sol que ainda aparecia entre nuvens escuras.

          Levantou o braço para o alto com rigidez, revólver em punho e, pam!, Lúcio e Jaime largaram a todo o vapor!

          A torcida se animava, empurrava cada um de seus atletas, e por vezes xingamentos apareciam de um para o outro lado tentando incomodar e atrapalhar o grupo adversário. O juiz olhava para arquibancada e, ao invés de se concentrar exclusivamente na competição, mandava três subordinados averiguarem a suposta confusão do público. A parcela ainda indiferente continuava de sorvete e cerveja na mão, e um que outro começava a se animar com a disputa.

         Jaime sentiu os pés pesados, não entendia como poderia ser tão mais difícil correr do que nas eliminatórias. Não tardou para notar que dentro das solas do tênis - sim, dentro das solas, não debaixo delas - havia pequenas placas de chumbo que dificultavam a explosão muscular e o espaçamento das passadas. A torcida chiava, reclamava, inclusive xingava o adversário e o juiz pela trapaça. Não farão nada contra essa sacanagem? Quem forneceu a ele o par de tênis com peso adicionado?

          Imediatamente a polícia entrou na arquibancada e silenciou a barulheira levando alguns torcedores embora, devidamente orientados pelos subordinados do juiz. Do outro lado, a torcida adversária aplaudia, e os comentaristas de rádio e TV explicavam para a audiência o inusitado acontecimento sancionando as ações repressivas.

        Apesar da vantagem, Lúcio corria um pouco menos, sentia cansaço, mas seguia na liderança com Jaime logo atrás. Subitamente, ele notou que na pista ao lado havia uma barreira e, seguindo as normas da competição, corria exclusivamente em sua faixa sem se importar muito com aquele familiar objeto. Jaime se deparou com a barreira surpresa e pulou-a. Acertou a barra superior com a coxa esticada para trás e caiu ao chão, levantando logo em seguida e disparando com expressiva vontade ao ponto de compensar o peso adicional dos tênis.

        Alessandro fez sinal para continuar, Jaime olhou para trás, o ignorou e partiu na busca por Lúcio. Sua torcida chiava mais uma vez e xingava a torcida vizinha; como resposta, esta parte retrucava xingando e acusando os primeiros de trapaça. "Vocês não sabem jogar! Trapaceiros!" Era a primeira vez que uma parte do público acusava o outro de ser injusta, justamente aquela que fora injustiçada. Calúnia. Difamação. Os jornalistas, ouvindo a discussão, repercutiam a acusação nos meios de comunicação e comentavam a necessidade de se colocar ordem na baderna.

          O juiz ouviu as palavras pesadas, fitou obstinadamente os olhos no público e não teve dúvidas: mandou novos emissários para a arquibancada, que chamaram a polícia para acabar com o tumulto. Apontou para a pista e mandou colocar outros dois obstáculos.

          A polícia subiu na arquibancada, identificou os caluniadores, que apontaram os que estavam sendo caluniados, trocou de lado e cercou as pessoas apontadas. Além de caluniadas, agora tinham a polícia no pé. No bate-boca, mais gente foi retirada da arquibancada.

          Jaime começava a ultrapassar Lúcio, que suava muito e tentava se recompor com apoio de sua torcida, mas inesperadamente ambos encontraram os dois novos obstáculo à frente. Jaime pulou um dos cavaletes e... pulou o outro também! Ambos estavam na mesma pista! Bateu com o joelho detrás na barra de madeira e pisou com o pé esquerdo torto, causando muita dor no tornozelo e forçando excessivamente o músculo principal da coxa. Cambaleando, tentou se recompor, enquanto Lúcio abria novamente vantagem.

          Um dos subordinados apitou com força. Alessandro se aproximou dele, que apontou que Jaime havia tentado sair de sua faixa de corrida atravessando a linha divisória do adversário. Mesmo distante, correndo em velocidade pela curva, Jaime parou logo no apito e ouviu a punição: dez segundos imóvel. Não aguentou mais: abriu os braços, esperneou, as veias do pescoço saltaram e seu rosto se transfigurou num vermelhidão tomado pela raiva. Neste exato momento, um fotógrafo que cobria a competição captou uma imagem de Jaime, desfigurado como um monstro em fúria, e a esplendorosa figura saiu na TV e na internet. A audiência ficou assustada. Como pode um homem desequilibrado como este competir em algo tão importante? E Lúcio corria em disparada.

          A razão da parada e da fúria de Jaime tinham uma explicação: seu técnico apontou a trapaça do peso nos seus tênis, mas ao invés de averiguar a denúncia, Alessandro o mandou para fora do abrigo que fica à beira da pista e o descredenciou de frequentar o estádio pelo resto do ano. A torcida, revoltada com a punição, foi multada por cantar contra Lúcio e ironizou os uso dos pesos de chumbo. A polícia também agiu: entrou nas cabines da imprensa e ameaçou alguns jornalistas que criticaram duramente o juiz pelo arbítrio. Vendo o mau tempo invadir o local de trabalho, fizeram como a torcida de um dos lados: baixaram a bola e foram obrigados a não mais mencionar o nome de Alessandro na transmissão de rádio e TV.

          Passados dez segundos, Jaime retomou a corrida com tudo, enquanto Lúcio corria à frente em maior vantagem.

          O tempo nublou de vez, e as trovoadas aumentaram em barulho e frequência. A arquibancada ficou um pouco assustada, Jaime passou a suar mais e Lúcio, um tanto displicente, afrouxou o passo enquanto sua torcida demonstrava confiança na vitória. 

          Vendo o fim se aproximar, Jaime acelerou o passo, desta vez ainda mais do que antes, e sua torcida, apesar de menos confiante, retomou a gritaria e os cantos, mas de forma comedida. Seu atleta notou o canto contido, mas pisou fundo deixando a arquibancada mais em polvorosa. 

          A chegada deixou a quase todos tensos e nervosos. Jaime alcançou Lúcio, e este, lançando a cabeça sobre a linha de chegada, parecia ter vencido. Apenas parecia. A arquibancada ficou em silêncio, tensa, com suas respectivas bandeiras coladas entre as mãos e junto às bocas, que diziam: "Tem que dar. Tem que dar" ou "Ai, quem será que venceu?" ou ainda "Ai, meus Deus. O que houve?" A parte neutra da torcida também absorveu a atmosfera eletrizante, mas ignorou a tempestade que havia de cair. "Isso vai passar e vamos tocar a vida", diziam.

          O juiz correu até a linha de chegada e consultou seu subordinado, que mostrou a fotografia eletrônica tirada no exato momento em que os corredores atravessaram seu limite. E ali estava o resultado: Lúcio chegou à frente por um nariz enquanto Jaime estava de cabeça abaixada como quem olhava para seus pés pesados. A posição da cabeça foi determinante para sua derrota.

          Parte da torcida do segundo chiou questionando a posição da câmera, que não parecia estar perfeitamente alinhada à chegada, e reclamando do peso no pés, que atrapalharam seu corredor por todo o trajeto. Alessandro levantou a mão, os policiais na arquibancada viram e a torcida voltou a se acalmar imediatamente.

        Lúcio foi proclamado vencedor. Jaime se recusou a cumprimentá-lo, inclinou a cabeça, resmungou de canto com alguns de sua equipe de treinamento e se afastou na direção no vestiário.

          Não havia sequer tempo para a premiação: a tempestade que se armava estava chegando, e enquanto uma parte do público se retirava às pressas, outra protestava e batia boca com a adversária. Pela imprensa e os celulares da multidão, chegava a notícia de que esta mesma tempestade havia destruído toda a cidade vizinha. "Mas não acontecem tempestades deste tipo na nossa região", disse uma das pessoas que tomava sorvete. "Só vai chover".

          Ao ver como o tempo se armava, Alessandro fixou o olhar nas nuvens de tempestade e sorriu, Lúcio ficou tranquilo, pois bastava esperar um pouco para que a premiação acontecesse, e Jaime se dirigiu para o banho sem saber o que fazer.

          Neste momento, um enorme raio atingiu um grupo de pessoas na arquibancada e um estrondo ensurdecedor fez todos curvarem seus corpos num instinto de proteção. Do sorriso, o rosto de Alessandro passou para o terror, e todos viram o que estava preste a acontecer.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A unidade virá, você queira ou não

          Chegará o dia em que a Igreja será una na sua dimensão histórica e geográfica. Não haverá mais divisões entre cristãos, talvez com exceção de pequenos grupos muito isolados. Haverá unidade plena e total, a desejada unidade de Jesus Cristo para que "todos sejam um". Uma só Igreja em comunhão com um único Deus.

          Para isso, haverá o mundo de se purificar do profundo, doloroso e escandaloso pecado da divisão. Isso significa que é necessário antes o arrependimento para que a unidade seja efetiva, seja no seio do mundo ocidental, seja com os cristãos do oriente. E todo o arrependimento passa pela libertação do erro, portanto, do pecado e suas consequências. Levada à escala secular e global, a unificação da Igreja significará uma libertação espiritual em escala universal. Será uma purificação do mundo numa dimensão talvez nunca antes vista.

          Por isto mesmo vejo que para haver paz no mundo tem de haver necessariamente a unidade cristã. Sem seus demônios expurgados, não haverá unidade e não haverá paz.

          Chegará um tempo em que a Terceira Roma se unirá à Primeira, tanto mais agora com a tão atrasada e angustiante consagração da Rússia realizada e sua consequente conversão prometida. Chegará um tempo em que a Segunda Roma se converterá à Primeira, pois reconhecerá que o profeta Jesus não é "apenas" um profeta, mas Deus mesmo. Creio - e podem discordar de mim - que a aparição de Nossa Senhora justamente no único local de Portugal que carrega um nome muçulmano tenha esse indicativo, que não caberia explanar aqui. Constantinopla será reconquistada não pelas armas, mas pelo espírito.

          Chegará também o dia em que o mundo todo se encontrará em Roma. Os russos serão católicos, os ingleses também, a França voltará a ser a flor da Igreja, toda a Europa do norte não mais se afastará e esfriará sua fé; a vastidão do mundo árabe reconhecerá a Cristo como as nações da África, paulatina e silenciosamente, aos poucos vêm reconhecendo. Não poderia falar dos demais povos, pois quase nada ou nada sei sobre a fé que carregam, mas mais de meio mundo clamando pela conversão do restante parece um apelo irresistível. China católica? Não sei como, mas necessariamente será.

          Enquanto a unidade não chega, bem como a paz também não - aparentemente cada vez mais distante -, o clamor dos peregrinos é pela conversão e unidade do mundo inteiro. 

          Nossa Senhora prometeu que Seu Coração triunfaria. Isso significa necessariamente o triunfo do Sagrado Coração de Jesus, pois ambos corações estão tão profundamente ligados que um não pode avançar sem o outro. Dela virá o triunfo de Cristo, Rei soberano das nações. As nações que hoje não O aceitam acabarão por aceitá-Lo, pois antes do fim, em algum momento, a Palavra de Deus tem de ser plenamente cumprida. Está escrito e assim será.

          Na Terra, uma só Igreja; no Céu, a Eternidade. 

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Até quando?

          Até quando as pessoas vão acreditar nos "jornalistas" da velha "mídia"? Até quando as pessoas vão acreditar em institutos de pesquisa? Até quando as pessoas vão acreditar que a televisão informa imparcialmente e se baseia na ciência? Até quando as pessoas vão acreditar que os termos que circulam na boca da esmagadora maioria dos formadores de opinião não falam de realidade, mas foram fabricados justamente para moldar o comportamento das pessoas? Até quando as pessoas vão parar de acreditar em "nossas" instituições e no chamado "Estado democrático de direito"? Até quando as pessoas vão acreditar que a solução de nossos problemas está na política?  Até quando?

          No último dia 2 tivemos eleições onde um condenado pela justiça pleiteava o maior cargo da república, cuja disputa era organizada e monitorada por uma ditador e criminoso afoito por impor aos seus desafetos e inimigos do sistema o ostracismo do silêncio ou a cadeia. Isso por si só punha por terra a legitimidade do pleito que, desmoralizado desde dentro, não tinha validade alguma fora o fato de se impor como realidade imediata inescapável. 

          As informações em circulação são, em grande parte, moldadas por um consórcio que se diz de comunicação munido por números de um outro consórcio, o dos institutos de pesquisa, cuja margem de erro foi, em massa, pelo menos três vezes o que este grupo previa. A favor do condenado, é claro.

          Muito feliz foi a definição do primeiro grupo ao se chamar de "consórcio", pois talvez seja o melhor termo para definir uma máfia sem chamá-la pelo nome. 

          E não se enganem que a força política contrária ao sistema falso e podre é capaz de salvar a pátria. Não é. Pois seu drama - e do país inteiro - jaz em deitar no berço esplêndido do artificialismo estéril da república, que há cento e trinta anos tenta absorver tudo à dimensão da política e criar a nação à imagem e semelhança de seus erros e falsidades. 

          Há multidões inteiras acreditando que basta um bom executivo para virar a maré das mazelas nacionais. Quem dera bastasse arrumar o corpinho sem antes arrumar a cabeça. Num sujeito que está louco e metido em macumba até a goela, pouco vai adiantar ficar bonitinho e regular o colesterol.

          O problema está na cultura; o problema está no espírito. Porque se muitos acreditam que tudo passa pela política, então a dimensão existencial, alongada infinitamente pelo elevado mistério da vida, é rebaixada e achatada ao manejamento das coisas do mundo. Para essa massa, Cristo é impotente sem o braço do poder de César. Sua fé está depositada no lugar errado, e tudo é esmagado pela horizontalidade da dimensão política.

          Uma boa dose de ceticismo manejada pela prudência é garantia de sanidade mental. Ninguém consegue se manter são e sustentar uma esperança verdadeira apostando suas fichas neste hospício republicano, agora dominado pelos consórcios e o juízes de capa preta, aliados na luta contra uma nação que insistem em querer governar.

          O primeiro passo é colocar a própria cabeça além de seus limites, acima do buraco aberto no teto da cela hospitalar. É no alto que depositamos nossa confiança. O exemplo arrasta, e as pessoas não conseguem acreditar numa mentira para sempre.