sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ratio Studiorum. O pó de ouro dos jesuítas


          Numa época em que as pessoas tanto falam em educação, que governos e organizações traçam grandes planos pedagógicos a nível nacional e que meios de comunicação exortam a todos que contribuam para seu desenvolvimento, passa completamente esquecido aquele que foi, talvez, o maior plano educacional de todos os tempos. Provavelmente não só o maior, mas também o mais bem-sucedido em seus frutos, espalhados pelos quatro cantos do mundo.

          Estou falando da Organização e Plano de Estudos da Companhia de Jesus, conhecido como Ratio Studiorum – resumo de seu nome latino, Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu – organizado e compilado definitivamente em 1599 após uma série de experiências pedagógicas de dezenas de colégios que a Companhia possuía na Europa e no mundo.

          Foram em torno de cinquenta anos entre a fundação do primeiro colégio jesuíta plenamente organizado em Messina, em agosto de 1548, até a Ratio de 1599, tempo que abrangeu não apenas a larga experiência pedagógica acumulada em diversos locais do mundo, como também sintetizou aquilo que era considerado o mais belo e perfeito tanto para a educação quanto para a salvação das almas e a glorificação de Deus.

          Através de comissões designadas por Santo Inácio de Loyola e seus primeiros sucessores e colaboradores, como os padres Jerónimo Nadal, Diogo Ledesma e Cláudio Aquaviva, uma série de estudiosos extremamente sábios, eruditos e piedosos se empenharam em compor um plano pedagógico que incorporou o pensamento clássico de Grécia e Roma, com destaque à filosofia e à retórica, a filosofia medieval, particularmente a escolástica e o método disputatio da Universidade de Paris, e a cultura renascentista alinhando essa magnífica herança com a revelação e a tradição cristã emanadas das Sagradas Escrituras.

          A seleção não era aleatória e baseada unicamente na experiência pois, como afirmado, ela se fundamentava na fé católica e de seus valores derivados. A pedagogia visava o desenvolvimento integral dos alunos, valorizando primeiramente a linguagem e a capacidade de expressão, ao exemplo do estudo dos gramáticos e retóricos da Antiguidade – literatos pagãos não apenas eram utilizados como também muito bem-vindos nos estudos devido à eficácia de seus ensinamentos e o bem que resultava para o crescimento pessoal -, seguido por todo o conhecimento histórico, cultural e mesmo de ciências experimentais. Cumprida essa longa e paulatina trajetória, o aluno possuía pleno domínio da linguagem e estava apto a se empenhar na Filosofia e na Teologia, consideradas as ciências mais elevadas no mundo ocidental.

          A concepção de desenvolvimento integral da pessoa transcendia, e muito, a definição limitada de homem para os pagãos ou de cidadão para a sociedade moderna, pois sua visão se baseava no homem como filho de Deus, cuja origem e destino são a eternidade. Isso implicava que o conhecimento e a reta educação fossem meios de contemplação da Criação divina e uso dos dons por Ele inculcados em cada um de nós. Como lembra o Pe. Leonel Franca, citando o Papa Pio XI, a pedagogia cristã visa o “homem sobrenatural que pensa, julga e opera constante e coerentemente, segundo a reta razão iluminada pela luz sobrenatural dos exemplos e da doutrina de Cristo; ou, por outras palavras, é o verdadeiro e o perfeito homem de caráter”.

          A impressionante disseminação das escolas jesuítas pela Europa e o mundo mostra não apenas o empenho, mas a validade e a eficiência do que se propunha. Quando promulgada a Ratio Studiorum em 1599, a Companhia de Jesus possuía 245 colégios; em 1773, ano que a Igreja Católica suprimiu a Ordem por pressão política, eram 865 estabelecimentos de ensino em todo o mundo, a maioria colégios, com milhares de alunos e uma tradição educacional consolidada e reconhecida, inclusive pelos críticos dos jesuítas e da Igreja.

          Talvez alguns dissessem que a pedagogia jesuíta fora por demais “humanista” ou “contaminada” pela mentalidade moderna com a chegada dos século XIX, XX e XXI particularmente pela ascensão da ciência moderna e a ingerência dos Estados-nacionais em seus currículos. Santo Inácio já previa que os colégios da Companhia deveriam se adaptar às regionalidades e necessidades, práticas e legais, onde atuassem. Apesar dos percalços e mesmo perseguições, a simples existência de um legado histórico e cultural, principalmente em regiões em que a cristianização e a educação jesuítas foram determinantes na formação e coesão de sociedades inteiras, como no Brasil, mostra que esse empreendimento não é apenas valoroso como concretamente verdadeiro. Em algum grau, os jesuítas alcançaram o ideal almejado. 

          Se hoje notamos a destruição do que há de mais elevado, certamente uma das razões foi o esquecimento, por parte da esmagadora maioria dos educadores e professores, desse pó de ouro depositado no fundo do baú que é a Ratio Studiorum. O que foi válido no passado também o é para o presente e o futuro, pois o fundamento sobre o qual se fincou esse grande empreendimento pedagógico da Companhia é eterno. Suas propostas visavam o homem sobrenatural, que não muda com a mudança dos tempos.

 

Fonte:

FRANCA, Leonel S. J. O Método Pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum. Edições Hugo de São Vítor. Porto Alegre, 2019.   


As origens pouco glamorosas do Leste de Londres

 

(Leytonstone Road em Stratford, Leste de Londres. Agosto de 2022.)


(Trecho inicial do capítulo The stinkin pile do livro London. The Concise Biography
de Peter Ackroyd.) 

          Tem sido frequentemente sugerido que o East End é uma criação do século XIX; certamente a frase em si não foi inventada até a década de 1880. Mas na verdade o East End sempre existiu como uma entidade distinta e separada. A área de Tower Hamlets, Limehouse e Bow se localiza numa faixa separada de cascalho, a dos cascalhos de Flood Plain que foi criada durante a última erupção glacial em torno de 15.000 anos atrás. Se essa longevidade desempenhou algum papel na criação da atmosfera única do East End talvez esteja em aberto, mas a importância simbólica do leste versus oeste não deve ser ignorada em qualquer análise do que se tornou conhecido no final do século XIX como "o abismo".

          Há uma característica interessante e significativa da zona leste que sugere uma tradição viva que remonta ao tempo dos romanos. No final do século XIX e início do XX foi encontrado evidência de uma grande "muralha" que corre ao longo da porção oriental do Tâmisa, descendo a margem do rio e ao longo das margens do Essex, para proteger as terras das depredações dos rios de maré; era constituído de bancos de madeira e terraplanagem. No fim do muro em Essex, próximo à área conhecida hoje como Bradwell Waterside - que pode plausivelmente ser traduzido, mesmo após dois mil anos de mudanças, como Broad Wall - foram descobertas terraplanagens de uma fortaleza romana bem como as ruínas de uma capela posterior, St. Peter-on-the-Wall, que se tornou um celeiro. Outros antiquários locais também encontraram pequenas igrejas ou capelas ao lado do que poderia ser chamada esta grande muralha oriental. Mantendo a água na baía e ajudando a drenar o pântano das áreas ao leste, se criou o East End ou o lado negro de Londres. Toda cidade deve ter um. 

          E onde começa o "East"? De acordo com certas autoridades urbanas o ponto de transição é marcado pelo Aldgate Pump, uma fonte de pedra construída ao lado do poço na confluência da Fenchurch Street com a Leadenhall Street; a bomba existente se localiza a poucos metros a oeste da original. Outros antiquários argumentam que o verdadeiro East End começa no ponto onde a Whitechapel Road e a Commercial Road se encontram. A mancha de pobreza, já aparente no fim do período medieval, de qualquer forma se estendeu gradualmente. Stow (1) observou que entre 1550 e 1590 havia "uma rua ou passagem estreita imunda contínua com becos de pequenos cortiços ou cabanas construídos... quase até Ratcliffe." Um relato de 1665 descrevia a superlotação criada por "pobres indigentes e pessoas ociosas e relaxadas". Portanto, as "cabanas imundas" do relato de Stow estavam cheias de pessoas "imundas". É a história de Londres.

          As indústrias do bairro leste gradualmente se tornaram imundas também. Muito de seu tráfico e comércio vinha do rio, mas no curso do século XVII a região se tornou cada vez mais industrializada. O "Easterly Pyle" (2) se tornou lar do que ficou conhecido como "as indústrias de fedor"; representava o foco do medo de Londres à corrupção e à doença. Portanto, o voo para o oeste continuou. A partir do século XVII o traçado das ruas e praças se moveu inexoravelmente naquela direção; os ricos, os bem-nascidos e os elegantes insistiram em morar no que Nash (2) chamou "as respeitáveis ruas do extremo oeste da cidade". 

          Tem sido observado que o West End tem o dinheiro e o East End tem a sujeira; há lazer para o Oeste e trabalho no Leste (3). Ainda nas primeiras décadas do século XIX, o East End não era apontado como sendo a mais terrível fonte de pobreza e violência. Era conhecido principalmente como o centro da navegação e da indústria e, portanto, lar dos trabalhadores pobres. Mas a indústria e a pobreza se intensificaram constantemente; tinturarias e químicas, fábricas de adubo e fábricas de fumo negro, fabricantes de cola e de parafina, produtores de tinta e farinha de osso, todos agrupados em Bow, Old Ford e Stratford. O Rio Lea foi por séculos o local da indústria e do transporte, mas ao longo do século XIX foi ainda mais explorado e degradado. Uma fábrica de fósforos na sua margem dava à água um gosto e aparência de urina, enquanto que o cheiro em toda a área se tornava desagradável. Toda a sujeira de Londres rastejou para o leste.  

     Mas então, em algum ponto da década de 1880, alcançou o que poderia ser chamado de massa crítica. Ele implodiu. O East End se tornou "o abismo" ou "o mundo inferior" de estranhos segredos e desejos. Era a área de Londres na qual se amontoavam mais pessoas pobres do que qualquer outra, e dessa congregação de pobreza surgiram relatos de maldade e imoralidade, selvageria e vício inominável.

(Atual marco da Aldgate Pump. Fenchurch St ao fundo e Leadenhall St no primeiro plano. Setembro de 2022. )

(1) John Stow (1525-1605), historiador e antiquário de Londres. 

(2) Um dos nomes dado ao East End. "Pyle" faz referência a um amontoado em grande quantidade.

(3) O autor utiliza os nomes "West" e "East" como trocadilhos dos pontos cardeais.



 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Bispo ortodoxo e sua diocese na Ucrânia se unem à Igreja Católica

          Segue abaixo a tradução livre de uma reportagem da mídia digital católica The Pillar que conta como foi o processo de conversão de um bispo ortodoxo da Ucrânia à Igreja Católica e sua diocese, e também as causas dessa mudança.

          Boa leitura!


Na Ucrânia, um bispo entra na Igreja

Como um bispo ortodoxo ucraniano levou sua diocese à comunhão com Roma

(por Anatolii Babynskyi, 6 de setembro de 2022)

(Ihor Isichenko, ao centro.)

          O arcebispo Ihor Isichenlko é um bispo incomum. Ele é um intelectual formidável e um estudioso literário sério. Tem sido um líder entre os fiéis ortodoxos ucranianos por mais de duas décadas. E sete anos atrás, iniciou um caminho que levou sua diocese ortodoxa à plena comunhão com a Igreja Católica, mesmo em meio a cismas e fraturas entre os fiéis ortodoxos ucranianos e durante uma guerra que mudou dramaticamente a vida em seu país. 

          O arcebispo Isichenko entrou em plena comunhão com a Igreja Greco-Católica Ucraniana no início desse ano; as paróquias da diocese que ele liderou são agora parte do Exarcado Católico Ucraniano de Kharkiv e da Arqueparquia de Kiev. Com o status de um arcebispo emérito, Isichenko liderará agora uma filial da Universidade Católica Ucraniana.

          A notável história do arcebispo começou décadas atrás, quando a Ucrânia declarou sua independência, a União Soviética caiu e o Patriarcado de Moscou perdeu seu monopólio sobre a religião no país. 

          Em 1989, a Igreja Grego-Católica Ucraniana, que havia sido destituída de seu stratus legal em 1946, foi legalmente autorizada a existir novamente na Ucrânia. A maior das 23 Igrejas Católicas Orientais em plena comunhão com Roma saiu da clandestinidade.

          Ao mesmo tempo, alguns fiéis ortodoxos ucranianos começaram a pressionar por um tipo de autocefalia - por uma Igreja Ortodoxa separada de jurisdição e supervisão do patriarca ortodoxo russo em Moscou.

          O movimento não foi homogêneo. Ao invés disso, duas estruturas surgiram no início dos anos 1990 reivindicando jurisdição autocéfala no país: a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana (IOAU) e a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev (IOU-PK).

          Ambas as estruturas possuíam problemas internos. Mas em meados dos anos 1990, a IOU-PK ficou sob liderança do Patriarca Filaret, que durante a era soviética serviu como exarca da Igreja Russa na Ucrânia e foi um dos principais candidatos ao trono do Patriarca de Moscou em 1990.

          Com Filaret no comando, a IOC-PK conseguiu estabilizar sua estrutura. Com o tempo, a instituição começou a reivindicar o papel de igreja "estatal" ucraniana.

          A IOAU foi menos bem-sucedida na Ucrânia. Em vez disso, concentrou-se nas igrejas ortodoxas ucranianas na diáspora, nos EUA e no Canadá, que com o tempo se retiraram dos assuntos ucranianos. Muitas paróquias se afastaram gradualmente da IOAU e entram na jurisdição de Constantinopla.

          Dentro de uma década, a IOAU começou a se fragmentar. Desde o início dos anos 2000, ela existe como uma coleção de dioceses quase independentes unidas apenas por um nome comum.

          Em 2018, a recém criada Igreja Ortodoxa da Ucrânia absorveu a maioria das igrejas, clérigos e recursos da IOU-PK e da IOAU. Como a maior estrutura que reivindica jurisdição ortodoxa autocéfala na Ucrânia, ela recebeu um reconhecimento de autocefalia do Patriarcado de Constantinopla em 2019.

          Mas nem todos seguiram esse caminho.

          A diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU, que cobria o nordeste da Ucrânia, estava se movendo numa direção bem diferente.

          A diocese se tornou um importante centro para o movimento autocéfalo logo depois de sua fundação em 1992. Sua catedral, São Demétrio, em Kharkiv, se tornou ao longo dos anos um centro cultural e educacional que forneceu treinamento teológico para os futuros padres da IOAU.

          E sete anos atrás, o arcebispo Isichenko e a diocese Kharkiv-Poltava da IOAU decidiram que as divisões entre as facções ortodoxas ucranianas haviam se tornado muito profundas, e a unidade entre as Igrejas Ortodoxas da Ucrânia era improvável.

          A diocese decidiu tornar-se católica - unir-se à Igreja Greco-Católica Ucraniana (IGCU).

          Em primeiro de abril de 2015, uma assembleia eparquial declarou que estava "convencida da impossibilidade de unificação canônica com as igrejas ortodoxas ucranianas na diáspora, rejeita[va] formas não canônicas de unificação de igrejas e acredita[va] na perspectiva de uma comunhão da Igreja Ucraniana com as igrejas da antiga e da nova Roma."

          Numa requisição formal, a diocese pediu ao sínodo dos bispos da Igreja Greco-Católica Ucraniana "por conselho fraternal para alcançar a comunhão eucarística e a unidade administrativa da diocese de Kharkiv-Poltava da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia com a Igreja Grego-Católica Ucraniana."

          O processo para alcançar a unidade não foi fácil; levou quase sete anos. E de acordo com o arcebispo Isichenko, que liderava a diocese desde 1993, nem todos nela aderiram ao plano de unir sua diocese local para a Igreja Católica - em vez disso, algumas paróquias se juntaram a outras comunhões ortodoxas. 

"Devo dizer que a maioria dos padres se assustou. Por várias razões: seja pelo medo de perder o apoio do rebanho, devido à falta de compreensão dos fiéis de tal passo, porque estavam sobrecarregados de vários tipos de mitos anticatólicos, ou devido ao conservadorismo humano comum, de medo algo novo," disse ao The Pillar.

          Mas "as congregações mais maduras apoiaram a ideia, e agora se juntaram ao exarcado de Kharkiv e a arquidiocese de Kiev da IGCU."

          Embora as paróquias tenham sido totalmente incorporadas à estrutura da Igreja Católica ucraniana nos últimos dois anos, o status do arcebispo não era claro até esta primavera, após o início da invasão em larga escala da Rússia na Ucrânia.

          "Eu me aposentei e agora sou arcebispo-emérito com a manutenção de minha autoridade como chefe do Collegium do Patriarca Mstyslav, que este ano adquire o stratus de um projeto da Universidade Católica em Kharkiv," explicou o arcebispo.

          Desde seus primeiros dias, o arcebispo Isichenko era um figura um tanto atípica na ortodoxia ucraniana. Na época de sua tonsura monástica e ordenação como sacerdote, era professor de história literária na Universidade Estatal de Kharkiv.

          Ele liderou uma diocese por 27 anos sem parar suas atividades acadêmicas e docentes. É o autor de tratados acadêmicos sobre a história da literatura medieval e barroca ucraniana, literatura ascética, e a polêmica ortodoxa-católica dos séculos XVI-XVII. Na verdade, ele é um dos maiores especialistas do mundo no seu campo.

          Mas para explicar a decisão que sua eparquia tomou - a decisão de se tornar católica - o arcebispo olhou para a história mais recente.

          Ele disse que a sabedoria de seus planos não pode ser compreendida sem entender a experiência dos ucranianos ortodoxos durante o século XX e o colapso da União Soviética.

          "A restauração da independência da Ucrânia também possibilitou a restauração da IOAU, cujas estruturas na época sobreviveram apenas na diáspora. Mas as igrejas nos EUA e no Canadá estavam bastante esgotadas e não poderiam prover assistência efetiva à igreja reavivada em sua terra natal. Por outro lado, a comunidade ortodoxa autocéfala ucraniana precisava reconstruir a identidade da ortodoxia de Kiev como era antes de sua subordinação a Moscou no século XVII. A tarefa não era reviver, mas reconstruir," disse o arcebispo.

          "Ainda assim, as fraquezas nessa tarefa foram imediatamente evidentes: uma base espiritual fraca, uma falta de durabilidade da tradição monástica, etc. A IOAU nunca foi capaz de criar um único monastério ou uma única escola acadêmica séria. E havia vários cismas infames que a igreja sofreu e, o mais importante, esforços constantes dos funcionários do Estado e de algumas forças da igreja para formar uma igreja "estatal". Tudo isso levou à decepção na perspectiva desse caminho."

          O arcebispo Isichenko afirmou que se tornou evidente com o tempo que uma tendência permaneceu constante na Igreja Ortodoxa desde os tempos bizantinos, a saber, a inclinação à governamentalização da Igreja e uma maior cooperação entre a Igreja e o Estado.

          "Servi como bispo governante na IOAU de 1993 a 2020, quando renunciei. Me convenci de que a ideia da Ortodoxia como uma alternativa ao catolicismo leva à formação de Russkiy mirs - mundos russos em miniatura, ou no sentido pleno da palavra.

          "Seja na Sérvia ou na Rússia... Infelizmente, essa tendência também existe na Ucrânia. Tal particularismo suspende a natureza universal da Igreja, sua catolicidade."

          O arcebispo disse que sua diocese começou a considerar a perspectiva de unidade com a Igreja Católica quando a agressão russa contra a Ucrânia começou em 2014; afirmou que assistiu ao uso da Igreja Ortodoxa Russa para promover o imperialismo russo.

          "O que está sendo feito com a ortodoxia de Moscou é o grande drama do mundo inteiro. A ideologia da 'Russkyi mir' mostra a todas as igrejas ortodoxas o perigo de inverter o sistema de prioridades - a perda de prioridade dos valores cristãos sobre as prioridades nacionais, estatais, políticas ou partidárias," disse ao The Pillar.

          Os padres da antiga diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU, que entraram na Igreja Católica Ucraniana com suas congregação este ano, disseram ao The Pillar que se sentiam seguros de suas escolhas devido à sua confiança no arcebispo Isichenko. 

          Padre Ihor Lytvyn, que comandou uma paróquia da IOAU em Polatava, explicou que mesmo antes de 2015 as relações entre a IGCU e sua diocese eram amigáveis. Os greco-católicos frequentemente ensinavam no Collegium do Patriarca Mstylav, onde ele recebeu sua educação teológica.

          E em sua paróquias, os paroquianos sentiam uma afinidade em relação aos católicos ucranianos, afirmou.

          "Não foi surpresa para os meus paroquianos. Então, quando nossa diocese estava em crise, eles se solidarizaram com o caminho escolhido pelo arcebispo. A maioria votou pela transição, embora alguns tenham se afastado da paróquia. Pessoalmente, sempre estive convencido de que se você não é ortodoxo, é um herege, e se você não é católico, é um cismático. Portanto, para mim, nunca houve oposição entre os conceitos 'ortodoxo' e 'católico'," disse o padre Lytvyn.

          O padre Oleh Bondaruk, que agora serve na arquidiocese de Kiev da IGCU, foi ordenado sacerdote em 2016, quando a diocese de Kharkiv-Poltava já havia começado seu diálogo de reunião com a IGCU. Em 2018, sua paróquia optou por se transferir para a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, mas Bondurak decidiu se tornar católico. 

          Padre Bondaruk disse ao The Pillar que seu caminho foi um pouco diferente do de outros clérigos da diocese, o que tornou mais fácil para ele se tornar um padre católico.

          "A maioria dos padres que não se juntaram à IGCU foram ordenados anos atrás. E penso que a fronteira mais difícil para uma pessoa cruzar na vida é a fronteira interconfessional. Fui ordenado na época em que a diocese de Kharkiv-Poltava já havia começado seu movimento para se unir à IGCU. Foi minha escolha consciente."

          "Por outro lado, embora tenha sido batizado na Igreja Ortodoxa, cresci num ambiente católico romano na região de Khmelnytskyi, e tenho muitos poloneses na minha família. Desde a oitava série, frequentei uma igreja católica romana. Até fui para um seminário católico romano por um ano. Mas depois me mudei para Bovarka, próximo de Kiev, e me afastei um pouco da igreja. Um dia me pediram para dar uma carona para o arcebispo Ihor para Kaniv, e nosso contato deixou uma grande impressão em mim. Assim, me tornei um padre ortodoxo."

          O padre Viacheslav Trush de Lozova, na região de Kharkiv, disse ao The Pillar que, diante de uma questão tão difícil, ele e sua congregação buscaram acima de tudo discernir a vontade de Deus sobre qual caminho deveriam seguir.

          "Um fator importante que influenciou minha decisão foi também estudar e compreender a experiência da Igreja Católica, me familiarizar com sua doutrina, dogma e história, tanto globalmente quanto na Ucrânia. Portanto, nossa decisão se baseou não apenas na confiança em nosso bispo, mas também no aprofundamento de nosso conhecimento da Igreja Católica," explicou.

          Na paróquia, discutimos muitas questões e estudando a história da Igreja. Tudo isso deu frutos. Temos uma atmosfera bastante familiar em nossa comunidade, com o padre e os fiéis discutindo tudo entre si, então não há segredos. Assim, quando anunciei a decisão do conselho diocesano, os fiéis a enfrentaram com confiança em mim e no arcebispo Ihor."

          Ksenia Pidopryhora, da Igreja São Demétrio em Kharkiv, foi forçada e deixar a cidade em março de 2022 devido à guerra e agora vive em Lviv.

          Ela disse ao The Pillar que sonhava em retornar à sua cidade natal e sua paróquia, à qual pertence desde os seis anos de idade. Pidopryhora afirmou que ela começou com perguntas sobre a nova unidade da paróquia com Roma, mas disse que agora estava favoravelmente inclinada à mudança.

          "Em primeiro lugar, foi a familiarização pessoal com o clero e os paroquianos da IGCU em Kharkiv, bem como a observação de figuras bem conhecidas que representam a IGCU no mundo, como o ex-líder da IGCU Lumobyr Husar, de abençoada memória, ou o extraordinário intelectual bispo Borys Gudziak. Suas palavras e ações correspondiam à minha ideia do que deveria ser a vida de um cristão num mundo moderno, vida na unidade. Consequentemente, o desejo de fazer parte dessa unidade era natural."   

          "Além disso, a própria IGCU como instituição tinha - e tem - uma reputação excepcionalmente positiva pela consistência e unidade, em contraste com a comunidade da Igreja Ortodoxa na Ucrânia, cujas divisões e brigas experimentamos como paróquia. Também, a transparência em responder quaisquer questões do clero de nossa diocese e a própria possibilidade de ver, conversar e fazer perguntas durante o processo contribuíram para uma conscientização da conveniência e lógica dessa 'transição'," disse Pidopryhora.

          Apesar de sua tradição litúrgica bizantina comum, existem algumas diferenças litúrgicas entre a Igreja Greco-Católica Ucraniana e a ortodoxia ucraniana. Pidopryhora disse estar grata que as paróquias da antiga diocese de Kharkiv-Poltava mantiveram alguns costumes específicos de culto, mesmo quando se tornaram católicos.

          "Felizmente, a ausência de mudanças na ordem do culto e o direito de observar o calendário da Igreja como era antes da 'transição' ajudaram os paroquianos de nossa Igreja a se integrarem suavemente na vida paroquial como membros plenos da IGCU," explicou ela.

          O bispo Vasyl Tuchapets, exarca de Kharkiv da IGCU, disse ao The Pillar que as diferenças litúrgicas entre as paróquias da IGCU e as antigas comunidades da diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU não eram fundamentais, mas diziam respeito a nuances rituais.

          Mas em todos os outros aspectos, as comunidades estão plenamente integradas na vida do exarcado. Seus pastores participam em retiros e encontros conjuntas, cursos de formação do exarcado e outros projetos da Igreja.

          De sua vez, o padre Trush disse que a "integração" tem sido uma experiência positiva para ele e sua paróquia.

          Sua vida paroquial antes parecia isolada - cercada pelas divisões e políticas das Igrejas Ortodoxas na Ucrânia. Mas agora, disse, as coisas haviam mudado.

          "Agora sentimos que pertencemos a uma comunidade global - a Igreja Greco-Católica e a Igreja Católica espalhadas pelo mundo, há um sentimento de apoio. Para mim pessoalmente, como um sacerdote, isso é muito importante," concluiu o padre.


* tradução livre



segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Londres. O nascimento da Babilônia imperial


(Edifícios neoclássicos da Era Vitoriana na Regent Street. Agosto de 2022.)

(Trecho inicial do capítulo How many miles do Babylon? do livro London. The Concise Biography, de Peter Ackroyd.)

          Em torno da metade da década de 1840, Londres tinha se tornado conhecida como a maior cidade da Terra, a capital do império, o centro internacional de comércio e finanças, um vasto mercado mundial dentro do qual o mundo se derramava. Em fotografias e desenhos contemporâneos as imagens mais marcantes são as do trabalho e sofrimento. Mulheres sentadas e curvadas com seus braços cruzados; uma família de mendigos dorme sobre bancos de pedra debaixo de uma ponte com o contorno escuro da Catedral de São Paulo aparecendo detrás deles. Como Blanchard Jerrold (1) colocou: "Os velhos, os órfãos, os coxos e os cegos de Londres encheriam uma cidade comum." Essa é uma concepção estranha, uma cidade inteiramente composta por mutilados e feridos. Mas isso é, em parte, o que Londres era. Também o número de crianças e vagabundos sentados resignadamente na rua é infinito; infinitos são também os vendedores de rua, geralmente retratados contra um fundo maçante de tijolo ou pedra.

          Os interiores pobres da cidade vitoriana geralmente são crepusculares e imundos com trapos pendurados entre lâmpadas de sebo fétidas; muitos dos habitantes parecem não ter rostos, uma vez que estão voltados para a sombra, e em torno deles vigas de madeira dilapidadas e escadarias numa confusão maluca. Muitos, ao ar livre e dentro de casa, parecem encurvados e pequenos como se o próprio peso da cidade os tivesse esmagado. Há ainda um outro aspecto da cidade vitoriana que as fotografias e imagens evocam: de vastas inumeráveis multidões, as ruas cheias de vida fervilhante e combatente, a grande inspiração para o trabalho de mitógrafos do século XIX como Marx e Darwin. Há também lampejos de sentimentos - piedade, raiva e ternura - a serem observados ao passar dos rostos. E ao redor deles pode ser imaginado um ruído forte e permanente como um grito interminável. Essa é a Londres vitoriana.  

          "Londres vitoriana" é, obviamente, um termo genérico para uma sequência de mudanças de padrão de vida urbana. Nas primeiras décadas do século XIX, por exemplo, ainda se mantiveram muitas das características dos últimos anos do século anterior. Ainda era uma cidade compactada. Ainda era apenas parcialmente iluminada por gás, e a maioria das ruas eram clareadas por poucas lamparinas de óleo com garotos de tocha carregando luzes para escoltar os últimos pedestres para casa; havia mais "Charleys" (2) do que policiais fazendo suas rondas. Ainda era perigoso. Havia plantações de morango em Hammersmith e em Hackney, e as carroças ainda percorriam seu caminho em meio a outro tráfego puxado a cavalo para o Haymarket. Os grandes edifícios públicos, com os quais a base do império logo seria decorada, ainda não tinham surgidos. Os entretenimentos típico também eram aqueles do final do século XVIII com as brigas de cães, as rinhas de galo, o pelourinho e as execuções públicas. Todas as ruas e casas possuíam janelas rebocadas e pintadas como se fossem parte de uma pantomima. Havia ainda mascates ambulantes vendendo literatura popular barata, e cantores de bailes com a última novidade; havia teatros baratos e gráficas exibindo em suas janelas caricaturas que poderiam sempre segurar uma multidão; havia jardins de delícias e cavernas de harmonia (3), salões de bebidas e salões informais e de dança. Era uma cidade excêntrica. Ainda não havia sido padronizada ou submetida às agências vitorianas de uniformidade e propriedade.

          É impossível calcular quando essa transformação ocorreu. Certamente Londres tomou um outro aspecto quando continuou a crescer e se estender por Islington e St. John's Wood no norte; então por Peddington, Bayswater, South Kesington, Lambeth, Clerckenwell, Peckham e todos os pontos da bússola. Se tornou a maior cidade do mundo justamente no momento em que a própria Inglaterra se tornou a primeira sociedade urbanizada do mundo.

          Ela se tornou a cidade do relógio e da velocidade por si só. Se tornou o lar dos motores e da indústria movida a vapor; se tornou a cidade onde as forças eletromagnéticas foram descobertas e divulgadas. Também se tornou o centro da produção em massa, com as forças impessoais de oferta e demanda, lucros e perdas, intervindo entre fornecedor e cliente. No mesmo período negócios e governos eram supervisionados por um vasto exército de funcionários e escriturários que costumavam usar trajes escuros uniformes.

          Era a cidade do nevoeiro e da escuridão mas, também em outro sentido, estava cheia de escuridão. Uma população de um milhão no início do século cresceu para aproximadamente cinco milhões no seu fim. Em 1911, havia crescido para sete milhões. Tudo estava se tornando mais sombrio. Os trajes do homem londrino, como aqueles dos funcionários, mudou de cores variadas e brilhantes para o preto solene da sobrecasaca e da cartola. Se foi, também, a particular graciosidade e cores da cidade do início do século XIX; a simetria decorosa de sua arquitetura georgiana foi substituída pela forma neogótica ou neoclássica imperialista dos edifícios públicos vitorianos. Eles incorporavam o domínio do tempo bem como do espaço. Também nesse contexto emergiu uma Londres que era mais massiva, mais cautelosamente controlada e mais cuidadosamente organizada. A metrópole era muito maior, mas também se tornou mais anônima; era uma cidade mais pública e esplêndida, mas também menos humana. 

          Desse modo, se tornou o clímax, ou a epítome, de todas as cidades imperialistas anteriores. Se tornou Babilônia.


(1) Autor e jornalista inglês. Viveu entre 1826 e 1884.

(2) O termo "Charley" é, possivelmente, uma referência a pessoas solitárias.

(3) Locais públicos, como bares, onde intelectuais londrinos se reuniam.