terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A crença em Deus: por que nunca me tornei um marxista


Em 1999 ingressei na faculdade de Geografia da UFRGS. Como muitas outras pessoas que conheci, foi lá que entrei em contato com a política, de esquerda, claro, que é o espectro quase hegemônico no meio universitário. Meu interesse pelo tema surgira pouco tempo antes, nas eleições presidenciais de 1998.

A mentalidade não era meramente de esquerda, e sim especificamente marxista. Nas discussões e estudos em aula, que variavam da epistemologia da ciência à geografia econômica, o marxismo era a visão mais comum, bem como a preferência política de parte dos colegas (pelo menos os mais ativos, já que muitos apenas consentiam com essas preferências ou não se envolviam publicamente nas discussões). Com o passar do tempo, fui me moldando às mesmas opiniões correntes, não por convicção real a elas, mas no fundo pela necessidade de integrar-me à turma.

Sempre fui meio excêntrico em sala de aula. Primeiro porque fazia o estereótipo do burguês, dada minha condição de vida, e sempre fui muito imaturo e, confesso, de comportamento por vezes inconveniente. Mas nunca abracei totalmente o marxismo. Primeiro porque eu não era o tipo social, propagado pelo chamado "marxismo vulgar", do proletário, do pobre, das classes dominadas. Eu estava do outro lado, vivia num bairro nobre ao lado de um shopping center. Como poderia eu ter a consciência de classe que só era possível em meio à classe a qual eu não pertencia? O máximo que consegui foi declarar-me socialista e anticapitalista, sempre de forma forçosa ou ilusória, e numa ocasião estive numa reunião do PCdoB (sim, cometi este disparate) onde minha única intervenção na discussão versou sobre... o livre-arbítrio. De fato não era o meu lugar.

(Por muito tempo nunca soube dizer porque, mas sempre tomei como absurda a ideia de que tudo o que existe é determinado pelas forças materiais, inclusive o comportamento humano.)

Mas a minha grande resistência ao marxismo não estava na minha condição social em conflito com seu discurso. Estava na minha crença em Deus. Era comum eu mencionar Deus em sala de aula e mesmo em alguns trabalhos, e me tornava excêntrico por isto também (certamente muitos colegas compartilhavam da mesma crença, mas não expunham isto em público). Era estranho que eu reunisse ao mesmo tempo a condição de membro da burguesia (segundo seu estereótipo) e a preferência pelo marxismo, mas era insuportável que a vida se resumisse ao materialismo. Quando lia os textos que explicavam a emergência da consciência humana a partir das questões socioeconômicas o que eu via não era uma explicação dos fatos, e sim o fechamento de toda a dimensão existencial no processo histórico materialista. Meu sentimento não era de desconforto. Era de loucura. Jamais aceitei que a vida se resumisse à dimensão material. O processo histórico contido na dialética materialista soava completamente absurdo. Eu não era uma simples peça numa engrenagem muito maior, e sabia disso. Minha grande resistência estava na incompatibilidade entre a cosmovisão materialista e minha dimensão interior, não material e insondável por excelência. Refletia sobre o tema com frequência e me perguntava: seria a minha vida familiar um jogo das forças econômicas? Meu pai e minha mãe são meu pai e minha mãe única e exclusivamente devido ao sistema, ou seja, não me amam? Estão ali por interesse de classe? E meus pensamentos, vêm de onde? Seriam eles uma ilusão abstrata criada pela química cerebral, e esta submetida (sabe-se lá como) à minha condição socioeconômica? Sendo assim, qual era a relação entre as forças econômicas com meu corpo físico e meu cérebro? E como poderia a matéria gerar abstrações? Eu tinha que ser completamente louco para abraçar isto, e dada a minha personalidade eu teria de mergulhar fundo na "mística" marxista. E esta mística é loucura. Não me dedico a nada que não seja de coração: ou eu seria marxista verdadeiro, com todas as convicções que este pensamento exige, ou teria de buscar outro caminho

(Olavo de Carvalho em sua casa na Virgína, EUA.)

Comecei a sair deste imbróglio no ano 2000. Tudo começou quando eu estava numa academia de musculação no clube da Sogipa aquecendo na bicicleta ergométrica e conversando com um de meus colegas de faculdade que também frequentava o local.  Na ocasião ele me indicou a leitura de um colunista da revista Época. Me mostrou a revista e apontou para o texto. "Leia esse cara", disse mais ou menos com essas palavras. O nome dele era Olavo de Carvalho. O mais curioso é que o texto do Olavo falava justamente sobre o marxismo, e no canto inferior esquerdo da página havia uma imagem de Karl Marx portando uma vistosa flor. Ambos eram referências da hipocrisia marxista: os críticos do capital seriam os seus adoradores mais apaixonados. Passou um tempo para que eu começasse a ler suas colunas no jornal Zero Hora, e o que mais chamou minha atenção nos primeiros textos foram suas análises críticas do ensino universitário brasileiro dominado pelos marxistas. Havia muito de verdade ali. O que eu lia do Olavo eu via no dia-a-dia, e desde então passei a ser seu assíduo leitor.

A maior prova de que Olavo estava certo na sua crítica veio em 2003, quando escrevi meu trabalho de conclusão. Eu quis utilizar seus artigos como parte da discussão, mas meu orientador o censurou. Duas vezes. Não me recordo da primeira rejeição, apenas que ele justificou sua atitude de maneira formal, mas quando insisti em usa-lo na monografia meu orientador o proibiu definitivamente e justificou dizendo que o Olavo fazia seu trabalho "por dinheiro". Ó raios, se ele quisesse dinheiro não seria melhor que ele abrisse uma padaria ao invés de ser filósofo? Na época eu não percebi a estupidez do argumento, mas a atitude do orientador era a encarnação daquilo que Olavo criticava na academia. Poucas vezes o jargão "Olavo tem razão" foi tão verdadeiro como naquela ocasião.

Há inúmeros relatos de pessoas que abandonaram o marxismo e as ideias da esquerda por influência do Olavo de Carvalho. Outras se converteram ou retornaram ao catolicismo. Este foi meu caso. Olavo é um dos principais responsáveis pelo meu retorno à Igreja Católica, que ocorreu em 2008, graças aos seus trabalhos e estudos sobre o que chamamos de "religião". Desde então voltei a frequentar as missas e ingressei num grupo de oração, de onde nunca mais saí. Um dia contarei esta virada com calma.

Em meados de 2002 minha simpatia pelo marxismo foi embora definitivamente. Para nunca mais voltar.

p.s.: não me recordo exatamente o texto do Olavo de Carvalho que li em 2000. Está nesta lista.

domingo, 4 de dezembro de 2016

O desafio da solidão: por que não segui a vida religiosa

(Vida monástica: intimidade com Deus, solidão pessoal. Na foto o Mosteiro de Claraval, em Minas Gerais)

          Há não muito tempo atrás eu tinha dúvida vocacional: entrar ou não na vida religiosa. Caso entrasse, seria para a vida monástica.

          Em outro momento vou contar esta caminhada. Nunca vivi num mosteiro, nem planejei seriamente esta vida, mas hoje vejo que, caso tentasse, iria lidar com um problema que não posso vencer: a solidão.

          A vida religiosa não é de isolamento das pessoas: monges e monjas possuem uma vida em comunidade, trabalham juntos, dividem tarefas, estão sempre rodeados de pessoas que podem perfeitamente ser íntimas dentro, é claro, das limitações impostas pelo superior ou a Regra de São Bento. 

          Os religiosos são muito ativos e geralmente muito alegres. Mas o religioso não tem alguém ao seu lado com o qual possa compartilhar uma vida, muito menos um toque. O religioso é só porque apenas estando só é possível falar a Deus, e esta solidão, que depende muito mais de uma atitude interior, é reforçada pela solidão pessoal, pelo tempo necessário para recolher-se interiormente. Ademais, o religioso é casado com a Igreja: as mulheres com Jesus, os homens com Nossa Senhora. É, sim, um casamento, e muito mais profundo do que o casamento entre duas pessoas comuns. A união é consumada com pessoas perfeitas e que jamais te trairão. Neste sentido, a traição do religioso para com sua união é mais grave do que num casamento a dois.

          Eu não apenas sentiria a solidão pela falta de intimidade a dois como ficaria muito limitado na minha necessidade de expressão. Sempre que fico muito tempo sozinho (e confesso que tenho essa tendência) me deprimo. E muito. Gosto de pessoas, luz, um pouco de sol, a liberdade de estar em certos lugares, com certas pessoas e em certas situações; de ver a mudança no tempo, os ares das estações, de observar detalhes do cotidiano. As distrações me fazem muito mais bem do que eu mesmo imagino, e estas liberdades ficam severamente limitadas na vida religiosa. 

          Assim como o casamento com a Igreja, para o religioso o diálogo prioritário é com Deus. Ele é sua companhia, Ele é seu ouvido, Ele é seu "lugar". Claro, isto vale para as pessoas do mundo inteiro, mas o religioso mortifica-se de forma especial para que, com sua morte, brote o Deus que ele busca. "Não sou eu mais que vivo, é Cristo que vive em mim", diz São Paulo, o Apóstolo.

          O desafio de estar no mundo é morrer para o mundo sem sair dele. Isto não é isolar-se do mundo, à exceção dos vocacionados para a vida religiosa. É para vivermos como se não estivéssemos nele. E se mesmo estando no mundo você não tem alguém para tocar ou um amigo para conversar? Não se preocupe. Seja paciente. Deus proverá.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Sem fronteiras, sem distâncias, sem nações: o vínculo que nos une através dos tempos

(Budapeste, arrasada ao fim da Segunda Guerra: efeitos de um conflito que afetam a humanidade inteira.)

Estou lendo o livro "O fim do Século XX", do historiador húngaro-americano John Lukacs. No capítulo "Entre dois Mundos", Lukacs inicia relatando seu retorno à Hungria 44 anos depois. Ele fora convidado, junto com seu amigo e sacerdote Béla Varga, a comparecer na sessão de abertura do Parlamento Húngaro em 2 de maio de 1990. Ambos eram amigos e parentes próximos de alguns membros do novo governo húngaro. Béla faria o discurso, e Lukacs, seu amigo famoso, iria junto acompanha-lo.  No relato segue-se o testemunho de um homem que, fugindo da opressão comunista, voltava à sua terra natal e refletia sobre sua vida nos EUA e seu passado na Europa. Daí os "dois mundos" de seu livro.

Imediatamente minha mente me projetou na mesma situação. E se fosse eu, e não Lukacs (ou Béla) a ter de falar em público num evento desta importância? E com alguma autoridade dada pelos acontecimentos? O que eu diria? Não pretendo detalhar aqui um discurso ou todo o meu pensamento, mas não foge à minha memória o pouco conhecimento de que tenho da matança que se abateu sobre a Europa na Segunda Guerra e a repressão comunista que veio em seguida.
 
(Edifício do Parlamento Húngaro, em Budapeste, onde passa parte do relato de John Lukacs.)

Logo me pus a pensar no universo de almas lançadas ao purgatório. Pelo menos 60 milhões na Guerra e 2 milhões dos regimes comunistas do Leste Europeu (nem falo da Rússia e da China, que jogam esta cifra aos cem). É um universo de almas a clamar por ajuda. Quando pedimos pela vida de alguém que se foi, anjos e santos de movem para resgata-las para um estágio superior, um estado da alma mais luminoso.

Cá eu com meus pensamentos: todos esses acontecimento históricos separam a todos nós. Fora um período de 1999 quando recebi em minha casa um húngaro de intercâmbio, muito provavelmente não vou conhecer na intimidade alguém que viva na Hungria, menos ainda seus antepassados. Assim será com a esmagadora maioria das pessoas da face da Terra.

(O plano da eternidade vincula todos de todos os lugares e todas as épocas.)

Mas na eternidade não há tempo, como não há lugar. Não há nação. Por isto mesmo nós, aqui no Brasil, não estamos magicamente imunes aos acontecimentos de outro continente. As almas que clamam nossa ajuda não são apenas as de nossos familiares: são os que pereceram na guerra e na repressão, nos hospitais de cidades distantes, nas cabanas do interior da Ásia. Todos nós, pela comunhão dos santos, estamos vinculados uns aos outros num plano onde não há distância. O Brasil está, sim, ligado a todos os que se foram. Eu e você também. E este clamor nos "pesa", nos faz responsáveis por aqueles que podemos ajudar, mesmo que com uma simples oração. Por isso mesmo quando alguém reza para Nossa Senhora Ela não se ausenta das almas que resgata, nem de outros que chamam Seu nome em outro lugar do mundo. Ela está, por graça divina, em todos estes lugares simultaneamente. Na eternidade não há lugar, distâncias ou fronteiras. Não há espaço, no sentido físico e geográfico: há apenas uma figura onde todos os lugares se apresentam de forma plena e simultânea. Nossa Senhora ouve minhas orações assim como aquelas que ressoam dos confins do universo ou das casas de Budapeste.

Fazemos parte da mesma História, plano único dividido pelas contingências do Cosmo e do mundo, mas unidos pela raiz criadora. Por isso mesmo somos responsáveis por todos os que aqui estão ou um dia estiveram. Estamos vinculados uns aos outros pelo amor divino e pela identidade única, a Pátria Celeste, a Casa do Pai. A História um dia passará. O amor de Deus jamais.

Dilema da leitura: saber os detalhes, compreender o conjunto


Confesso que tenho uma certa dificuldade com leitura. Sim, gosto muito de ler, mas o que eu mais gosto é do conhecimento. Saber, saber, saber e, acima de tudo, entender. Dito isto, enfrento um grave dilema nas leituras: ler corrido e compreender o conjunto ou ler devagar, riscando, sublinhando, e perder o conjunto.

Recentemente comecei a perceber que a leitura detalhada sublinhando muita coisa fragmenta o conjunto da obra. A leitura corrida é muito mais agradável e proveitosa. Ainda que percamos detalhes, temos o conteúdo, a estrutura e o pensamento do autor que passa a ser referência para compreendermos o assunto. O autor pode dizer um monte de bobagens, mas seu conteúdo será a baliza para o tema em discussão. E não importa se o autor está errado ou que não concorde com ele, você terá em mãos o exemplo do que considera errado. E por quê. Importante é ter referência no assunto, caso contrário você terá apenas opinião (não falo aqui de testemunhos pessoais, mas de temas que exigem estudo).

Por outro lado tenho a forte tendência de achar tudo importante. Na verdade, uma certa obsessão em não deixar escapar qualquer detalhe que seja. Tendo a sublinhar e destacar cada ideia em cada parágrafo. Isso pode até ajudar na erudição, mas o conhecimento torna-se fragmentado, e depois é difícil reintroduzir o mar de informações no conjunto da obra. Para resgatar o conjunto da obra seria necessário relê-la ou ao menos estudar alguns pontos-chave. Quando temos a obra em mente, fica mais fácil encontrar os detalhes, as referências menos importantes.  

Este é meio desafio de agora em diante: mergulhar no oceano das ideias, compreender o conjunto da obra e deixar brotar os detalhes como se estivessem sublinhados em minha mente. Compreender é mais simples do que saber. Quem tenta saber demais corre o risco de submergir a compreensão da realidade. E a própria sabedoria.