domingo, 31 de outubro de 2021

Dia 31 de outubro de 2021

 

          Na grande maioria dos locais afetados pelas altas temperaturas, o calor vem acompanhado de umidade e ambos criam o mais conhecido e vital dos fenômenos atmosféricos: a chuva. 

         Primeiro brotam aqueles pequenos algodãozinhos no fundo azul que sinalizam os efeitos do sol forte e do calor. Em seguida, seu volume cresce, e se pudéssemos gravar com os olhos o que as técnicas modernas de filmagem permitem contemplar, veríamos múltiplos borbulhamentos de vapor como se as bolhas de algodão crescessem e se multiplicassem dando enorme volume à pequena almofada flutuante.

          Um olhar atento por debaixo dessas nuvens - que os meteorologistas batizaram de cumulus - permite notar, com a devida calma e paciência, o movimento do vapor d'água, lento à distância mas turbulento nas alturas. Estirar o corpo sobre a grama e fixar o olhar na vertical as nuvens que anunciam a chegada da chuva são uma boa forma para captar o que uma rápida olhada jamais poderá notar.

          Quando a nuvem ganha o corpo de uma couve-flor - que os meteorologias classificam como cumulus congestus -, está pronta a receita para seu próprio peso se derramar em água e liberar os primeiros raios devolvendo à terra o que o calor lhe tirou sem pedir licença. Mas quando o pequeno algodãozinho não pode mais crescer e se esparrama num teto invisível - e é nesse momento que os meteorologistas dão à nuvem sua classificação mais famosa, cumulonimbus - então temos o pacote completo de surpresas atmosféricas: água em abundância, luzes por vezes ativas como um estroboscópio ligado na alta voltagem, sons que anunciam a chegada de uma autoridade importante e até mesmo o rufar dos ventos que, em alguns momentos, ultrapassam o mero conceito de "beleza" e se transforma em beleza destruidora.  

          Existe um diálogo divino entre a nuvem que cresce e a pessoa que a admira. Certa vez, em dezembro do ano 2000, eu estava no campus de minha faculdade, e pude presenciar, com ânimo e admiração, o momento em que uma chuva de verão desabou sobre o local. Andei entusiasmado pelo do corredor coberto que abria espaço por entre os baixos edifícios e me acheguei ao corrimão de metal pintado de amarelo que dava fim ao meu trajeto e início à vastidão verde morro acima. Olhava claramente os pingos grossos caindo de forma intensa em contraste com o fundo recheado por uma densa mata nativa. Era bonito demais notar a beleza, a ordem e a dinâmica viva de um céu que desaguava suas bênçãos para quem era capaz de enxergá-las. Expressei meu maravilhamento como uma amiga que me acompanhava e que também admirava a chuva como se compartilhasse do mesmo diálogo que o meu.

          O maravilhamento tem a capacidade de imprimir na alma uma marca inexpugnável, mais impactante e profunda do que a marca de ferro em brasa. É a atitude de se deixar impregnar, mas não de se deixar levar pelo mundo, porque é a chuva que passa, mas experiência nos desperta e se integra à nossa personalidade. Por isso se engana quem pensa que o primeiro Evangelho escrito está na Bíblia. Não, ele se encontra na própria Criação, que forneceu os elementos necessários para que a alma fosse preparada para receber a Palavra de fato. 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Dia 27 de outubro de 2021

          Três horas da tarde. O céu estava praticamente limpo. Apenas uma ou outra nuvenzinha aparecia perdida na imensidão azul, mas nem de longe prometia uma sombra muito menos um refresco dos céus. Fazia trinta e quatro graus e um vento, até então ausente, apareceu vindo das plagas do oceano parecendo prometer um alívio. Mero engano.

          Nada mais opressor de quem se sente mal física e psicologicamente no calor do que os dias de muito calor. Mas a cena que viria a presenciar me faria lembrar o terror de mais de sete anos atrás.

          Devidamente blindado por vidro e aço, parti de casa em meu carro com o ar-condicionado ligado no frio. Bastaram cinco minutos para andar não mais do que dois quilômetros até o destino em um bairro vizinho. No banco detrás, um velho aparelho de som me recordava de sua presença com a leve batida da tampa do disco, e debaixo dela um vinil coberto de poeira esquecido há muito tempo.

          O destino era um estabelecimento de esquina, que lembrava mais um barraco de alvenaria milimetricamente construído num terreno exíguo. Com a devida atenção, lia-se que se tratava de um local de assistência técnica, e com um pouco mais de atenção era possível ver empilhados e colocados um ao lado do outro televisores, ares-condicionados, micro-ondas, ventiladores e o que quer que fosse de eletroeletrônico. Parecia que todo o material viria a transbordar através da grade que separava o chão de concreto da calçada tão estreito era o espaço entre o balcão e a rua.

        Do lado de dentro notava-se que não mais que um metro e tanto separava o balcão da calçada. Dois passos e eu já estava quase de barriga sobre o tablado. Graças ao sol da tarde, a luz direta incidia sobre os produtos aparentemente consertados, e o calor que emanava da calçada de basalto e do asfalto não encontrava nenhum obstáculo para se projetar ambiente adentro. O local lembrava muito mais o abrigo de um filme distópico do que realmente um estabelecimento comercial.

          Imaginem o que é estar num dia muito quente sem qualquer refresco e conforto cercado de aparelhos, poeira e radiação, apreciar como vista as maravilhas do urbanismo brasileiro e ter a sensação de cozinhar no agradável calorzinho do verão. De fato, não era verão no calendário, e sim final de outubro, mas isso pouco importava, pois o dia era de fato como no verão - o que chamaríamos de verão climático - salvo o ar estar mais seco do que o normal e a sensação de abafamento não ter nada terrível. 

          Logo me recordei da única vez em que estive no mesmo local. Foi no verão de 2014, ano da maior onda de calor de nossa história, quando a temperatura oscilou por dias a fio entre trinta e cinco e quarenta e um graus, num terror aparentemente infindável que só viria a ser sepultado depois de quase trinta dias. Quem dera fosse o calor seco de um deserto, mas, ao contrário, era um sufocante e opressor calor úmido importado do Chaco que fez a sensação térmica tocar os cinquenta graus nos dias mais bizarros. 

          Na visita de então tive o mesmo impacto termo-estético: pilhas de eletroeletrônicos, poeira, calor irradiando da calçada e do asfalto para dentro do estabelecimento, solzinho maravilhoso piorando a situação. Não acreditava que um local assim poderia existir, menos ainda que alguém pudesse ganhar e a vida nessas condições. Descobri que existiam homens de aço, e aço incapaz de derreter

          Hoje, ao menos, não estava tão quente nem tão úmido quanto o terror de mais de sete anos atrás. Mas para mim pouco importa: trinta e quatro ou quarenta graus, a diferença é entre ser torturado com um choque ou com pauladas nas costas. Meu lema nessa época do ano continua o mesmo: se você não tem ar-condicionado, fuja para a praia ou para as montanhas. Lá ao menos o ar é mais fresquinho.          

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Quando a ideologia enlouquece as pessoas

 

          Há poucas semanas li um chocante trecho da obra O fim do homem soviético, da laureada escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, onde um entrevistado confessa ter denunciado o tio para os bolcheviques quando adolescente ainda no período da Revolução Russa. O homem bastante idoso era um comunista irredutível. Não pude deixar de pensar como a ideologia pode enlouquecer uma pessoa.

          A primeira vez que associei conscientemente loucura com ideologia foi a publicação de uma postagem do empreendedor Ícaro de Carvalho no Facebook sobre as complicações que Daniel Fraga, um dos pioneiros da divulgação do bitcoin no Brasil, teve com a justiça. Segundo Ícaro, Fraga, um adepto do libertarianismo, defendia ideias totalmente sem cabimento e foi processado por xingar políticos e juízes na internet sendo condenado a pagar uma multa. E o que Fraga fez? Colocou todas as suas riquezas em criptomoedas e desapareceu comprando um briga contra seu declarado inimigo, o Estado.

          Ícaro sentencia: "Tanto o esquerdista quanto o libertário, ao longo do tempo, passam a enxergar inimigos em todos os lados; cada esquina existe algo que quer só te fazer mal... e isso destrói a sua cabeça." A diferença é que os esquerdistas causam muito mais estragos a si e aos outros do que os libertários, pois sua história de erros é bem mais extensa e seus adeptos bem mais numerosos do que o os últimos.

          A ideologia não busca explicar a realidade, mas adaptá-la às suas premissas, moldar o redondo à sua forma quadrada. É o que afirma a filósofa Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo. Em sua face mais extrema, ela tudo subjuga invertendo a lógica do tempo ao reler o passado conforme sua lente presente e definir o futuro como algo superior à Providência. São nesses casos que princípios abstratos como "igualdade", "revolução", "liberdade" ou seja lá o que a ideologia em questão enuncie, estão acima das coisas concretas ou, pior ainda, das pessoas, as mesmas que você encontra ao seu lado ao se virar na cama depois de uma noite bem dormida.

          Svetlana entrevistou Ivan Petróvich N., então membro do Partido Comunista desde 1922. O velho homem passou a totalidade da história soviética - a União foi criada oficialmente naquele ano - até os anos 1990 como comunista convicto, mesmo após ter sido preso arbitrariamente pela NKVD de Stálin no final dos anos 1930 após delação de um vizinho, ter também sua mulher presa, ficar numa solitária por um mês, testemunhar diversas prisões arbitrárias e tomar conhecimento diversas torturas e execuções.

          Constrangido pela consciência ardente, Ivan relatou a mais dolorosa de suas lembranças depois que a escritora que o entrevistava desligou o gravador.

          "Sem gravador... Que bom... Eu preciso contar isto para alguém...

          Eu tinha quinze anos. Os soldados vermelhos chegaram na nossa aldeia. Montados. Bêbados. Era o destacamento de aprovisionamento. Dormiram o dia inteiro e à noite reuniram todos os membros do Konsomol. O comandante discursou: 'O Exército Vermelho está faminto. Lênin está faminto. E os kulaks escondem o trigo. Colocam fogo'. Eu sabia que o irmão de minha mãe... o tio Semion, tinha levado para a floresta uns sacos de grão e enterrado. Eu era do Konsomol. Tinha feito o juramento. De madrugada, fui até o destacamento e levei todos eles até aquele lugar. Eles encheram um carro inteiro. O comandante apertou a minha mão: 'Cresça depressa, irmão'. De manhã, eu acordei com os gritos da minha mãe: 'A casa do Semion está pegando fogo!'. O tio Semion foi encontrado na floresta... ele foi feito em pedaços pelos sabres dos soldados vermelhos... Eu tinha quinze anos. O Exército Vermelho está faminto... Lênin... Tinha medo de sair na rua. Fiquei em casa, chorando. Minha mãe adivinhou tudo. De madrugada, ela colocou uma trouxinha nas minhas mãos: 'Vá embora, filhinho! Que Deus perdoe você, seu infeliz'. (Cobre os olhos com a mão. Mas meu mesmo assim vejo que ele está chorando.)

          Quero morrer como comunista. É meu último desejo..."

          Levada como princípio de todas as coisas, a ideologia não só enlouquece, como destrói a vida. É a negação da Verdade e por isso mesmo a realização da morte.

Dia 26 de outubro de 2021

 

          Final de outubro, primavera, céu completamente azul. A pouco menos de dois meses do solstício de verão o sol brilha inclemente sobre a latitude trinta graus sul. Em termos de Brasil, onde grande parte do território está na zona tropical da Terra, estar nessa faixa é uma exceção, o sol é menos intenso em grande parte do ano em comparação às praias do Nordeste ou à vastidão do cerrado. Mas é possível notar claramente a força da radiação que desce sobre nossas cabeças. Bastam cinco minutos sob o sol do final da manhã para notarmos a condição de pré-assado de uma pessoa, que possivelmente mostrará em sua feição o quão desagradável é estar nessa situação, principalmente se sob algum tipo de obrigação.

          Esse relato se torna mais trágico ainda quando quem o divulga é alguém que não só gosta do inverno mas que nos últimos anos pegou aversão ao verão, tanto pelos efeitos físicos que provoca sobre o corpo e a mente quanto pela "cultura" da época, uma mistura de loucura com arruaça, desrespeito e música ruim. Quando vejo o céu absolutamente limpo nesta extensa faixa de tempo que cobre o período de outubro a meados de março a primeira palavra que vem à minha cabeça é um palavrão, salvo os poucos momentos em que, mesmo estando ao nível do mar, a temperatura não ousa passar dos vinte e cinco graus. E também quando não sou obrigado a ficar ao ar livre mais do que cinco minutos.

          A radiação inclemente do astro-rei é ainda pior nos locais de serra, onde a atmosfera menos espessa permite a radiação solar chegar à superfície com mais força. Mas radiação por radiação, basta uma boa sombra ou algumas nuvens para notar que essa mesma camada de ar mais fina permite que o calor emanado da superfície se retenha em menor intensidade deixando o ar mais fresco mesmo com a luz na voltagem máxima. Eu, que acompanho as condições do tempo na região onde moro, invejo os dias frescos e mesmos frios da primavera nas cidades que estão no local que forçosamente chamamos de "serra"- diga isso a um europeu e ele dará risada de nossas montanhas, miúdas perto dos Alpes.

          Não posso deixar de notar, porém, que esse sol na cabeça não é de todo mal. Luz é vida, tanto que o próprio Deus é associado à luz, esse enigmático elemento da natureza que permite a tudo definir e reluzir frente aos nossos olhos exatamente como fez o Criador com sua Criação. Se a primavera traz a radiação inclemente, ela traz também a renovação, que explode em energia na época mais quente do ano até amortecer sua força e hibernar na metade do ano seguinte.

          Como brasileiro sou muito feliz em poder testemunhar esse ciclo natural. Desgraça minha seria estar numa região onde o sol se faz inclemente todas as épocas do ano, seja no verão, por vezes aliviado pela estação chuvosa da região tropical, seja no inverno, época maldita onde todos os dias são igualmente radioativos e secos numa monotonia opressora capaz de deprimir um amante do frio só com a expectativa de sua chegada. 

          Apesar de abominar este sol na cabeça, vivo como o canadense da costa da Colúmbia Britânica ou o russo junto ao Mar Negro. Sou exceção. Não me peça para ficar na expectativa do "vem verão" ou me alegrar com o carnaval. Fico na expectativa da época que vem e que passa. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Dia 24 de outubro de 2021

          Há tempo não participava de um encontro de família. Domingo, dia de tempo bom e temperatura muito agradável, algumas pessoas, todas elas conhecidas, receberam uma moradora expatriada para o outro hemisfério da Terra. Estávamos em um pequeno salão de festas encravado nos fundos de um pequeno condomínio. Um refúgio que apenas olhares um pouco atentos poderiam notar.

          Havia pouca luz natural, e mesmo com amplas janelas do lado do sol que descia ao oeste, o grande e novo edifício vizinho fazia sombra no salão. No lado oposto, a leste, quatro janelas davam acesso ao corredor de pedestres que, se estendendo da entrada do condomínio até o fundo do comprido terreno, tinha parte de sua extensão coberta pelos apartamentos e outra parte com vista ao céu por entre tijolos avermelhados. Ao norte, apenas uma parede com uma uma mesa e sobre ela a comida da tarde, como pizza de sardinha - delícia, há tempo não me deparava com uma -, cuca, cachorrinhos e algumas bebidas, e do outro lado, ao sul, a porta de entrada do salão, através da qual era possível ver a escada que dava acesso aos andares acima.

          Notava que a parede que nos separava do corredor parecia ter um revestimento de madeira e em alguns momentos prendia minha atenção. Bati no material, como alguém que bate levemente em uma porta, que parecia estar oco. Bati noutra porção do lado oposto da coluna de concreto, mas o som confirmava a solidez do objeto. A fugaz curiosidade da estrutura interna da parede mostrava que havia, sim, um ponto oco, questão que não valia à pena a atenção, senão sua textura e cor.

          A madeira tem uma capacidade de nos remeter a uma residência, um lar, local de convívio entre pessoas e membros da família. É ela mesma parte da vida, extraída de um ser que doou um pouco de si - não necessariamente de forma consensual, claro - para acolher outros seres que se doam uns aos outros. Um material perfeito para se sentir o aconchego de um ambiente discreto e privado.

          Por outro lado, o salão tinha o paradoxo de ter seu único período de sol coberto por um edifício com aquelas linhas retilíneas típicas da arquitetura moderna, fazendo o local perder boa parte de sua luz natural. Mas estar ali, debaixo de dois andares de tijolos avermelhados e escondido detrás de um monstro de concreto, não parecia ser algo tão ruim assim. Pouca luz, poucas janelas vizinhas capazes de notarem o murmúrio e as risadas das conversas em família, pouco som das raras pessoas que transitavam pelo corredor ao lado, algumas camadas de tijolos entre a mesa coberta com bebidas, doces e salgados e os moradores acima e ao lado e muitos metros da distante rua onde alguns automóveis deslizavam sobre o asfalto novinho. O salão, que era de festas, também era ideal para ler um livro, relaxar ou dormir.

          Em dado momento de aperto, pedi a chave ao meu primo morador do local e subi ao apartamento, onde também satisfiz minha curiosidade visual após anos de ausência. Ao entrar na sala, deparei-me com um dos presentes assistindo a um jogo de futebol deitado no sofá, um tablet à sua frente e com a cabeça mais para lá do que para cá, como denunciavam as pálpebras que oscilavam entre uma débil atenção ao jogo e um fechamento da consciência para o inexplorado mundo interior. Ambiente escuro, janela quase totalmente fechada e ainda o edifício com sua imponente sombra do lado de fora. Madeira e tijolos em muitos detalhes e, finalmente, o pequeno banheiro, alvo de minha rápida visita. Ao lado esquerdo do vaso acima de quem está em suas necessidades - não era meu caso - havia uma janela de vidro fosco com molde em madeira dividida em duas porções, uma delas aberta com uma estreita vista para o vão livre do corredor. Olhei celeremente para fora e pensei: ninguém jamais imaginaria que eu poderia espionar os transeuntes daqui. Me sentia como se estivesse em um esconderijo com acesso exclusivo para mim, meu local secreto com vistas para o mundo, o pequeno mundo dos vizinhos desconhecidos e das luzes refletidas nas paredes

          Se estivesse de posse do apartamento ou do salão teria a oportunidade diária de gozar da privacidade e da reclusão tão caros aos leitores e estudiosos e do aconchego ideal para noites frias ou de chuva - já que raramente poderia contar com a neve em minha cidade. Me sentiria em casa ou, na pior das hipóteses, no local perfeito para um trabalho perfeito.

          Não cheguei a ponderar se moraria em local como esse, que exigira uma mudança radical de rotina. É difícil sintetizar a complexidade de uma vida cotidiana numa equação simplificada em tão pouco tempo. Mas certamente teria momentos de felicidade se pudesse mergulhar num espaço onde o mundo exterior fosse suspenso por algumas horas e estivesse protegido das loucuras alheias. Seria possível realizar, quem sabe, um pouco da felicidade que, para mim, sustentam-se em momentos de paz duradoura. Um monasticismo urbano voltado às atividades do mundo.

          Findo o encontro, voltei para casa já com minha cidade mergulhada na metade escura do mundo. Mas foi comigo a lembrança, há tempos hibernada em minha memória, de um desejo juvenil de ter um local só para mim onde pudesse ter uma vida à parte do constante transição das coisas, onde o tempo pudesse ser suspenso para que eu pudesse ser eu. 

          Às vezes temos esta nostalgia de sangue, queremos reproduzir nas coisas da vida o aconchego uterino, como se fora de nosso ambiente ideal tudo fosse um parto. Mas a vida é isso mesmo: um parto.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Dia 20 de outubro de 2021

          A pior que pode acontecer para quem está frustrado com as coisas em geral e principalmente sua vida particular é julgar que o mundo é uma merda. Nesse cenário desestimulante para o bem e estimulante para a morte ou a revolução, para que ter um plano de vida? Para que ser bom? Enfim, para que viver?

          A desesperança é um veneno que mancha o olhar sobre o mundo. No fundo, a desesperança não é o resultado de um mundo mau, mas um escurecimento da alma, elemento que mancha, ao gosto do diabo, a visão sobre o mundo como se este fosse mau. Não por acaso a Divina Comédia, de Dante Alighieri, apresenta na porta de entrada do inferno a seguinte inscrição: "Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança". Quem desesperançado é acaba por perder a fé.

          Mas como o mundo é essencialmente bom, sobre ele também brota a virtude, e seu cultivo é o melhor combate ao escotoma diabólico que nos cega à bondade do mundo. Não basta ser apenas bom, temos de querer se bom para provar, ante si e em consonância com o mundo ao redor, que a esperança não só existe como vive, se sustenta e cresce mediante um ato de decisão. É este o primeiro despertador da manhã, o real motivador para saltar da cama e começar mais um dia ordinário. Não fosse a esperança e já acordaríamos mortos. 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Dia 18 de outubro de 2021

 

          Uma coisa aprendi no Facebook: sempre, sempre, sempre e sempre que uma pessoa vem lhe atacar no seu próprio perfil, é você que vai se dar mal caso resolva tentar engatar uma conversa diplomática ou colocar panos quentes. No final da contas, você será o ofendido e ainda parecerá culpado perante os outros, que lhe julgarão ser o vilão, acabando você mesmo por pagar a conta de toda a confusão, desde a irritação à perda de "amizades". Sei disso por experiência própria.

          As redes sociais têm esse problema por duas razões: primeiro, elas são uma arena pública onde diversos "espaços" se cruzam e se sobrepõem numa forma única, sendo eles extensões dos espaços reais. Por exemplo: dar opinião sobre política revela sua posição não apenas para os amigos, mas também para o chefe do trabalho. É como se você estivesse revelando o que você pensa ao mesmo tempo numa roda de amizade e no seu escritório e arcando as devidas consequências do ato.

          Segundo, a palavra escrita tem mais impacto do que a palavra falada. O que é escrito é pensado, e se alguém lhe ofende, salvo grande ignorância ou uma infeliz combinação de significados mal compreendidos, provavelmente é de caso pensado. Falar de cabeça quente é como correr contra o tempo para vomitar o que a adrenalina ansiosamente impulsiona para fora, mas escrever de cabeça quente é imprimir a raiva visualmente nas palavras, que necessitam de raciocínio para serem impressas e que não desaparecem na expansão de ondas invisíveis. É a figura que emana, para utilizar a linguagem moderninha, "energia negativa", é o signo que não deixa dúvidas quanto ao significado. Nesse caso, a coisa é mais séria.

          Esta materialização através de um texto pensado é o peso definitivo. Se alguém lhe critica no seu próprio espaço e lhe ofende, pormenorizar com essa conduta é sinal de que a agressividade tem permissão para perdurar chancelando para que outros que pensam assim façam o mesmo ou aprovem a conduta. Em outras palavras, você não apenas é ofendido como se torna público, deliberado e materializado o coro dos que lhe repudiam, transformando-o na vítima não apenas de uma, mas de muitas pessoas. O diálogo nessas condições equivale a luta no ringue na proporção de dez contra um, cuja vitória tem um final previsível.  

          Além de vítima, você ainda leva a culpa pela opressão no número, que se auto legitima pela simples quantidade numérica, e nenhum dos presentes no ringue virtual lhe verá na rua, esse espaço real composto por coisas substantivas, como o sujeito que foi assaltado e acabou com o olho roxo, mas como o filho da mãe que ousou dar uma opinião que foi interpretada como "ofensiva". Na vida real, você se torna pária, e seus "amigos" - ou mesmo sua família e colega profissionais - deixam de ser os mesmos de dois dias atrás. O virtual tem consequência muito mais reais ou duradouras do que se imagina.

          Não surpreende, portanto, que na era das tais redes sociais o rancor e a divisão tomem proporções nunca antes vistas, porque tanto o rancor quanto a divisão se tornam concretas impregnam todos os espaços reais que no mundo virtual estão sobrepostos simultaneamente. 

          Existem apenas dois remédios para isso: ou se abster de falar qualquer coisa que os jornalistas tacham, no alto de seu QI 12, de "polêmica", ou perdoar solenemente o próximo, esse pobre coitado que lhe aponta o dedo na cara ao mesmo tempo em que arrota "empatia" e "diversidade". Mas quem não opta pelo silêncio embasado desde o Artigo 5º da Constituição até o princípio do livre-arbítrio humano enunciado no Gênesis e não está disposto a tomar porrada de graça, existem dois recursos bastante diretos. Um é o firme desmascaramento público da pessoa que acredita que a discussão pública se dá na ponta do fuzil e que distância física lhe confere salvo-conduto para ataques sem consequências cara a cara; outro é uma simples ferramenta que ditadores sempre lançaram contra pessoas reais, mas que no ataque verbal não fere ninguém e ainda lhe dá um escudo invisível e eficaz contra ameaças à sua integridade e caráter: o bloqueio.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Dia 16 de outubro de 2021

          Tenho o hábito - não muito recomendado - de encontrar um filme passando na TV a cabo e começar a ver pela metade. 

          Durante o almoço de sábado, trocando de canal, me deparei com o nostálgico Independence Day, o filme de 1996 que relançou o cinema-catástrofe como uma das franquias de Hollywood e que marcou memória com as cenas da destruição da Casa Branca e do Empire States por naves alienígenas que cobriam cidades inteiras. Virou uma das referência cinematográficas da geração que viveu no anos 1990, inclusive para mim, particularmente porque sou fã desta modalidade de filme - mas não posso me furtar de dizer que, à exceção desta obra, os demais filmes de Roland Emmerich são uma merda.

          Ao longo do enredo, fui relembrando da época em que o filme foi lançado, as boas pessoas com quem convivi e as situações que deixaram em minha memória boas recordações. O cinema tem este efeito de recriar, tal como na música mas ao seu próprio jeito, o sentimento de nostalgia, de saudades do passado, reaviar o vínculo afetivo de lembranças carinhosamente guardadas e suspensas no tempo.

          Demorei para notar que esse sentimento, recheado de conforto emocional e aparentemente agradável ao coração, pode não ser exatamente algo bom como parece à primeira vista. O conforto é uma sutil sedução da inércia que a situação sugere, um aburguesamento da alma sobre recordações do passado. A nostalgia transforma-se numa prisão confortável sobre a qual desejamos erguer um nova vida, arremessar lá do passado para o futuro uma época que não pode voltar jamais. Fixamos nosso olhar no tempo e passamos a acreditar que, motivados pela força do desejo, alguma força mágica reproduzirá no porvir o sonhado paraíso perdido. Nos tornamos escravos do próprio ideal cegos e seduzidos pelo seu efeito mais evidente mas enganador, o conforto, cuja consequência é outro sentimento, mas ainda mais enganador, o de aparente felicidade. No inferno, jaz a esperança.

          Na época eu era incrivelmente ingênuo, acreditava realmente na natureza essencialmente boa das pessoas e me refugiava em sonhos e pensamentos íntimos. Este traço pessoal se aguçou com o tempo, mas acabou por criar uma barreira quase intransponível entre o eu ideal e o eu real. Enquanto via o filme e lembrava da época em que fora lançado, do que mesmo eu sentia saudades e queria reviver?

          Dessa dúvida surge outra pergunta mais profunda: quando eu sonhava com algo do passado queria algo real ou algo que imaginava ser real? Se eu voltasse aos quinze anos, idade que eu tinha quando Independence Day foi lançado, gostaria de resgatar um pouco da pureza e, claro, de minha ingenuidade da época. Seria de enorme frustação e tristeza ser aquele garoto e me deparar com o irrealismo de meus sonhos e desejos tendo consciência do que aquilo resultaria no futuro e do hiato entre o garoto sonhador de ontem com o homem real de hoje.

          Assim como as sequências cinematográficas nunca são iguais à primeira - Independence Day: Ressurgimento é uma bela porcaria digna de ser ignorada - nós jamais seremos como éramos antes. A tentativa de restauração de um sonho nostálgico é fadado à frustração e à infelicidade futuras. Mesmo que sejamos puros como crianças e vivamos algumas das coisas que passaram, nossa astúcia não é mais a mesma. Ela é, inclusive, necessária para que demos fim às frustrações de desejos não realizados e realizemos planos dignos de deixar um legado.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Dia 15 de outubro de 2021

          Dia do Professor e dia de celebrar a grande doutora da Igreja, Santa Teresa d'Ávila. Confesso que não sou um grande professor e, claro, estou bem longe de ser santo, ainda mais se considerar as extraordinárias experiências da santa espanhola que levitava, recebia visita de santos bilocados, via anjos, demônios, almas do purgatório e lutou, com a típica fé de uma alma iluminada por Deus, para revitalizar a maior religião da Terra. Quem dera ter essa força e motivação para ao menos levantar da cama todos os dias.

          Apesar de tudo, meu humor estava renovado, mas o tempo havia reservado uma chuva no amanhecer e um calorzinho fora de hora, deixando a tarde mais fresca do que a madrugada. Mais uma vez Porto Alegre ficou sem sol, e do vento cada vez mais frio que soprava ao longo da tarde um vapor branco tocava de leve os morros mais altos da cidade. Regressávamos mais de um mês no padrão climático do ano, como se um suspiro do inverno quisesse dizer, "Olá! Voltei!". É comum termos esses encontros com os ventos meridionais que volta e meia irrompem na estação das flores.

           O aluno que tive o privilégio de encontrar em seu edifício parecia estar no ânimo das nuvens baixas quando o puxava de volta ao estudo compenetrado. Confesso que ensinar História em tópicos não é a coisa mais divertida a se fazer, mas como apresentar o plano geral da História da Humanidade apelando às invencionices pedagógicas tão sonhadas pelas escolas modernas? Fui testemunha desse desastre cognitivo há alguns anos, e não vejo, em minha pobreza pedagógica, como prezar pela riqueza da ciência driblando o sacrifício necessário para levar o estudo a sério.  

          Ao contrário do que possa parecer, alguns momentos maçantes não são a regra nesses encontros semanais. Bastam alguns minutos de concentração sobre a escrivaninha para que o sol volte a brilhar dentro do quarto e, pah!, surgir da empolgação de meu aluno o tão envolvente assunto do futebol. Para minha surpresa - que nem deveria ser surpresa, pois todas as semanas sou mergulhado no mesmo assunto, que ignoro em grande parte - meu jovem camarada discorreu sobre os jogos de bola, mais especificamente sobre sua história recente, lembrando lances e placares impressionantes. E eu, um tanto interessado mas pouco disposto a  passar vergonha, fazia afirmações vagas e errava datas e confrontos acreditando contribuir à conversa. Só tomava 7 a 1.

          Talvez a discussão sobre futebol não mostre a relevância de conhecer a história dos hebreus ou do Império Carolíngio, mas é inegável que a memória, essa conhecida muito desconhecida nossa, é um poço incrivelmente vasto e obscuro que volta e meia entra em erupção afetiva e revela um pouco a real pessoa que somos. Temos tachinhas mentais cravadas na linha do tempo que reavivam em nossa memória e em nosso coração momentos relevantes da vida, nosso vínculo com a existência e as pessoas. É mais importante saber aquilo que nos diz respeito diretamente, por mais banais que as coisas sejam, do que abstrações e coisas distantes. Fora apaixonados pelo assunto, ninguém vai ao mercado pensando na importância histórica de Carlos Magno, a não ser que ele seja aquele velho cobrador do caixa que todos os dias lhe dá bom dia e deixa em sua passagem pelo mundo um pouco de si dentro de nós.

          Revivendo este momento, eu parecia um ser impotente frente ao meu aluno que encontrava-se seguidamente empolgado a contar para alguém alguma coisa que não podia contar a ninguém mais. Nos tempos de restrições civis das mais absurdas, a convivência da escola havia sido cortada, e a mão decidiu pela prática do ensino domiciliar. No círculo mais restrito de contatos, eu era um dos poucos a permitir vazão aos seus gostos juvenis. Minha aula acabou sendo mais um encontro recheado de memórias pessoais algumas vezes pontilhadas por conhecimento de coisas distantes do período medieval da Europa. De certa forma, o aluno era eu.

          Quase duas horas, ao sair do edifício em que me encontrava, fui surpreendido pela chuva fina e o vento que soprava mais forte. Um breve momento de calor durante a atividade foi substituído pelo vento úmido e frio, e o morro que se erguia para o lado sul agora estava coberto por uma neblina cinzenta.

          No futuro talvez eu não recorde do que foi falado dentro de quatro paredes, mas certamente lembrarei de quem estava comigo e da surpresa de estar com a roupa errada perante o vento frio. Foi a enésima aula em dia de chuva, como se já fosse de praxe puxar o material do dia para a água precipitar do céu, como se os anjos armassem para mim uma surpresa bem no dia de minha atividade. Ali se instalava mais uma tachinha, dessa vez no tripé lugar-aluno-chuva, como marca de minha memória e afeição. Vivemos de realidades, e não de abstrações e sonhos distantes.   

O que estamos fazendo com nossas vidas? - 14 de outubro de 2021

(Reprodução da escultura The Gates of Hell, de Auguste Rodin. O Pensador ao centro.)

          A afirmação de que o banheiro é lugar para filosofar faz parte do típico humor brasileiro, cujo repertório está preenchido com as piadas mais criativas possíveis. Mas há também a possibilidade de, na atividade intestinal combinada com a inatividade física dos membros do corpo, se realizar uma série de ações, como ouvir música, ler trechos de um bom livro, rótulos de produtos - certa vez um amigo meu confessou que fazia isso - ou, por que não, filosofar de verdade.

          A quente tarde desta quinta-feira não era das mais convidativas à filosofia. De qualquer forma, aproveitei o momento para revirar algumas páginas de O último homem soviético, da escritora bielorrusa Svetlana Aleksiévitch. O tema? O novo e inesperado amor de um homem cujo pai, ex-comandante político de uma divisão da Aeronáutica soviética, só tinha uma coisa em mente: tornar o filho um herói das Forças Armadas. O entrevistado detestava a vida militar, vivia "hipnotizado" pela ideia de morte, mas subitamente se viu apaixonado por uma moça, situação que virou sua vida completamente do avesso no melhor sentido da palavra. Uma das consequências de estar apaixonado, disse ele, era ver a realidade de forma mais viva. "Tudo parece muito, muito próximo" dizia o entrevistado, tentando definir o que parecia indefinível. "O mundo... se revela em infinitos detalhes". Tudo fica mais evidente e colorido.

          Enquanto minha cabeça absorvia este momento marcante, pude notar a distância em que eu estava deste momento. O relato do homem vivo e realizado contrastava com o peso do meu dia. O ambiente estava relativamente abafado, e mesmo com sol lá fora parecia haver pouca luz. A penumbra das janelas pequenas cobertas por finas cortinas e a porta do corredor - aberta, não havia ninguém em casa naquele instante - não davam conta de uma luminosidade natural. Ao contrário do homem apaixonado, que vê a realidade mais viva que "se revela em infinitos detalhes", notei algo em mim que estava fora de lugar.

          O que eu estava fazendo com minha vida? Não deveria estar vivo, apaixonado pela vida mesma? Em verdade, não era o ambiente abafado e pouco iluminado que me oprimia, mas minha própria alma que se tornara mais escura e sufocada. É notória a ideia de que projetamos nossos pensamentos e sentimentos no mundo, e era inevitável que uma atitude de rejeição quanto à minha vocação de ser alguém transbordasse para uma rejeição ao mundo exterior, essa realidade maldita recheada de hostilidade, agressividade, maldade e controle. Um excelente subterfúgio para negar minha caminhada de vida e sabotar minha própria realização enquanto pessoa. 

          Frustrado, pensava que meses de orações e súplicas haviam resultado em resvalos e paralisação. Mas Deus é sábio e amoroso. Ele não faz por nós o que podemos fazer, mas aponta o caminho, dá o toque, o sinal de por onde seguir e, mais importante de tudo, na hora certa. O homem, esse ser livre por excelência, deve pegar os remos e trilhar o desafio mar a dentro. Em situações de sofrimento a alma reage como num terremoto: na fenda aberta penetra a luz, que ilumina as camadas mais profundas num misto de revelação pessoal com fotossíntese interior. E numa dessas camadas penetrou o relato do homem vivo eternizado na literatura em contraste com o eu em letargia com os remos atirado a alto-mar. De repente, de forma quase súbita, fui pego com as calças nas mãos - ou sem elas, e notei que minha orações, que definhavam aos poucos, acabaram por não serem vãs, cumuladas de perseverança.

        As coisas são assim mesmo, da inesperada combinação entre um inapropriado ambiente filosófico e o testemunho de um desconhecido escrito por outra pessoa desconhecida, pode surgir a resposta de que precisamos. Todos nós precisamos dessa misteriosa pedagogia de vida que são os terremotos pessoais que, apesar de potencialmente trágicas, não são fim do mundo.        

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Dia 12 de outubro de 2021

          Minhas mais recentes postagens neste blog foram inspiradas em dois livros da escritora bielorrusa e Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Aleksiévitch, Meninos de zinco e O fim do homem soviético (que estou acabando de ler). A autora vale-se de testemunhos de pessoas que viveram momentos decisivos da história da União Soviética e da Rússia, respectivamente a Guerra do Afeganistão entre 1979 e 1989 e o fim do regime soviético.

          Svetlana aposta na história oral, no registro vivo na memória das pessoas, buscando delas experiências (e traumas) dos eventos por ela perscrutados. Para a autora, importa saber não o que aconteceu no âmbito da macro-história implicada na decisão dos grandes líderes e personalidades do mundo, mas na micro-história, no dia-a-dia de quem viveu as consequências e participou, de alguma forma, do fluxo geral dos eventos. Na introdução de O fim do homem soviético, Svetlana declara: "Não me canso de me surpreender com o quão interessante é a vida humana comum." 

          Ela tem razão, pois em cada pessoa vive um acontecimento, uma memória latente que está integrada na personalidade do indivíduo, fornecendo à História seu "H" maiúsculo, pois o transcorrer do tempo está preenchido pela substância ativa da personalidade viva, que é a essência da História mesma.

          Se a famosa escritora de uma nação distante foi inspiração para mudar o modelo de relatos deste blog, é minha vida pessoal, essa interessante vida humana comum, o motivo real dos recentes textos.

          Na minha adolescência mantive um diário com acontecimentos triviais do cotidiano, mais como uma marca de época do que um desabafo ou uma elaborada anamnese de meus dramas pessoais. Não me agradava lembranças negativas, que por vezes eram descritas com alguns palavrões, mas a simples memória carregada com algum grau de nostalgia e bom-humor, que gerava algumas risadas daqueles para os quais eu relembrava os fatos.

          A trivialidade de meus relatos acabaram por compor uma forma visível e acabada de um período da vida, que em muito pouco lembra o autor de hoje, principalmente em seus pensamentos e imaginação ocultos. Mas ainda assim esta é minha história, composta de elementos fundamentais integrados e sedimentados em minha personalidade no transcorrer do tempo. É uma vida comum que caminha dentro do quadro geral da História formando um pequeno fio que, emaranhado com milhões de milhões de outros fios compõem a História da Humanidade. E lá me encontro com todos, de você à nossa habilidosa escritora, de suas traumatizadas testemunhas às pessoas mais improváveis e desconhecidas que já pisaram neste mundo.

          Quando medito sobre a questão em alguns momentos fico deslumbrado ou mesmo assustado ao notar que faço parte de um plano infinitamente maior do que meu tempo de vida. Deslumbrado porque me sinto participante de algo superior, e isto é muito belo; mas também assustador porque a dimensão da existência me coloca necessariamente o problema do mistério da eternidade, que está acima do tempo e por isso mesmo não é percebido diretamente na vida cotidiana. A pergunta que fica é: o que devo fazer sabendo que vou me deparar com um mistério humanamente insolúvel e potencialmente intolerável? 

          Esta é a pergunta fundamental. Não por acaso, quase a totalidade dos testemunhos colhidos por Svetlana em seus dois livros são de pessoas que acreditam em "algo" maior (Deus ou seja lá o que for) mesmo vivendo num regime oficialmente ateu. Por mais que se force ou se "convença" de que tudo não passa de uma trivialidade sem sentido, de um diário composto apenas por relatos cotidianos sem um conteúdo mais profundo, a História exige respostas, porque ela necessariamente acaba, e não queremos de forma alguma que nosso testemunho morra para sempre.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Dia 10 de outubro de 2021

          Ninguém é digno de elogio. No Evangelho, quando o jovem rico chama a Jesus de "Bom Mestre", Jesus lhe responde que só Deus é bom. Por que, então, haveria alguém de receber elogio igual ou melhor do que o atributo atribuído unicamente a Deus?

          Não podemos nos furtar, porém, de aceitar elogios, pois se Deus é bom e mais ninguém, o que quer que seja elogioso a Ele pertence. E a boa educação nos ensina a sermos generosos com ofertas, porque receber uma oferta é aceitar que o outro lhe faça o que você faria se estivesse no lugar dele guiado por uma boa intenção.

          Assim foi comigo neste domingo, quando alguém disse a mim que eu era uma pessoa "justa". Antes de mais nada, cabe lembrar que o que aqui escrevo não é uma autoexaltação ou bajulação, mas o relato de um fato que deu o que pensar. Quando vi que receberia um comentário amigável e amoroso esperava receber outra resposta que volta que se tornou, digamos, como em momentos pontuais de minha vida, como "inteligente" ou "bom" - sim, o atributo divino de novo - mas nunca "justo".

          O que me surpreende neste adjetivo é a grandeza do justo, a busca por aquilo que é certo e sua luta para evitar o errado. Só pessoas podem ser atribuídas como justas, no máximo um grupo de pessoas que lute de forma organizada por aquilo que é certo, jamais uma sociedade, pois sociedade enquanto agente não existe, e "sociedade justa" é apenas figura de linguagem usada ao longo dos últimos duzentos anos para justificar tiranias e genocídios.

          Mas nem mesmo a busca de alguém por aquilo que é certo faz dela uma pessoa justa. No emaranhado de decisões e pensamentos - muitas vezes injustos, basta meditar sobre nosso catálogo de ideias e imagens desejadas interiormente em diversas situações -, buscar a justiça é como embrenhar-se num denso matagal à noite guiado mal e porcamente por uma bússola desobediente e estrelas que insistem e se esconder por detrás das nuvens, chegando a resultados muitas vezes não esperados.

          De qualquer forma, é justo aquele que adentra o matagal na reta intenção em meio à tortuosa trilha. A justiça depende justamente da sabedoria, essa mescla de amor com inteligência, que guia as ações num mundo complexo e contraditório, mas que toma uma forma coerente - e justa - com o auxílio do Espírito. A caminhada do justo só é bem sucedida porque sabe de sua incapacidade de vencer o mundo, mas tem consciência de sua capacidade decisória de escolher o que é bom.

          Assim como no Evangelho, só Deus é justo. Ninguém tem a capacidade de, dentre emaranhados de obstáculos e contradições, vencer o mundo, mas tem o mérito - o único, diga-se - de escolher a coisa certa. Qualquer elogio além disso é atributo divino.  

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Dia 7 de outubro de 2021

          Hoje pela manhã levantei e pude observar, na limitada vista do meu quarto, uns poucos eucaliptos que ainda restavam no lugar de uma nova obra a ser erguida. Horas depois, eles haviam sumido deixando em seu lugar um horizonte indefinido emoldurado parcialmente por duas construções tão belas e harmônicas quanto os produtos fresquinhos do meu gato mais gordinho.

          Depois de trinta e cinco anos de contemplação diária, o conjunto de enormes eucaliptos de mais de quarenta metros de altura foi finalmente posto a baixo. Todos os dias eles estavam lá, denunciando a direção do vento e a intensidade da chuva, quando esta, caindo de forma intensa, embaçava sua visão.

          Sempre tive apreço às coisas naturais, muito mais pela beleza e intensidade com que seus elementos se manifestam do que pela ideologia, louca e fanática, que nivela ou mesmo inverte o homem na sua relação com o mundo natural. 

          O verde não é só bonito como agradável. Desde criança fui fascinado pelas mudanças no tempo e, seja por ter nascido num dos dias mais quentes do verão de 1981 ou por influência distante de algum antepassado, sempre tive predileção pelo inverno. Mais verde significa, para mim, não só mais beleza, como menos calor. O sol inclemente torna-se tolerável pelo manto natural, assim com o frio do inverno mais sensível, diferentemente de quando estamos sob o solzinho a penetrar seus raios sobre a capa de um belo asfalto. Mal sabem os citadinos que é justamente a cidade que cria a ilusão de que "nos tempos dos avós os invernos eram mais frios". O concreto não é convidativo para a geada, que torna visível, pelo tênue manto de cristal, o campo de verde abundante horas antes. 

          Como bem afirmei e friso novamente, meu apreço pelo natural não está na ideologia. Não demonizo o que chamamos de "progresso" quando limitado à sua dimensão material, pois é de se esperar que na era do movimento haja mudanças não só permanentes como inevitáveis em certas situações. A expansão e transformação das cidades são os exemplos mais explícitos. Ao contrário do que gostariam os ideólogos do ambientalismo, árvores não são gente (e os defensores dos animais, é bom frisar, já estão no limiar deste nível de psicose), e não há crime, nem imoralidade, em derrubar um conjunto de grandes eucaliptos para erguer um edifício. 

          Mas a feiura é imoral quando deliberada, e mais perigosa quando tomada por beleza. Na visão dentro da qual se erguiam as majestosas árvores, há dois obstáculos que formam metade da moldura de um quadro: um edifício coberto de vidros espelhados azuis-esverdeados e uma residência com formato de loja de móveis. O primeiro no chamado estilo internacional (nome pomposo para a uniformidade horrorosa que não distingue os centros financeiros um dos outros em todo o globo); o segundo de arquitetura minimalista que lembra o velho e totalitário brutalismo, mas como toques de modernidade clean, um sovietismo light erguido com muito dinheiro e muito mau gosto.

          Da minha frustração com as árvores desaparecidas surge o medo: será que o conteúdo do quadro será tão horroroso quanto sua moldura? O que será que colocarão no lugar do enorme volume de troncos e folhas esvoaçantes? Na propaganda em frente ao terreno, o anúncio apresenta um edifício residencial de altíssimo padrão, definição socioeconômica que passa anos-luz de qualquer padrão estético definido. 

          Na competição de quem faz pior, surgem torres residenciais luxuosas destacadas pela má e nova arquitetura de estilo internacional. Estranho imaginar que detrás de uma parede de vidro esverdeada haja uma família jantando ou pessoas dormindo; mas como a própria visão pós-moderna que acompanha esse estilo sugere, não há parâmetros, não há regras fixas para o ordenamento da sociedade e todas suas expressões que chamamos de "cultura", pois os valores também passam, mudam conforme o vento. E assim é com nossos espelhos. A estética "evolui" conforme a originalidade de quem inventa a nova moda. Se tornou símbolo de status morar num pequeno apartamento que os arquitetos imaginam ser escritórios em Manhattan. É o progresso da alma.

          Minha única certeza é de que a sombra e a beleza das árvores se foram para sempre. Quisera eu que erguessem uma modesta residência portuguesa ou o Edifício Martinelli. Não é só a temperatura que vai aumentar. Provavelmente a feiura também. 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Dia 5 de outubro de 2021

          Chego a este dia dando o título que ele merece: sua data mesma. Eu, porém, mereceria muito mais. Deveria nomear este dia de outra forma para que fosse possível apreender seu real sentido para mim, para todo o meu ser plasmado e integrado na totalidade do real. 

          É aí que está o problema. Como seria possível compreender o real sentido deste dia para minha vida se não sou capaz de apreendê-lo de forma plena e verdadeira em minha consciência? Isto exigira uma reflexão profunda e um autoconhecimento completo de minha pessoa de forma que, combinados, dessem a resposta em meu coração sobre o real sentido do dia de hoje.

          Como esse mérito (ou melhor, graça) cabe ao sábios e santos, deixo o título desse texto apenas com o dia de hoje, 5 de outubro de 2021. E assim será em muitos textos subsequentes que pretendo desenvolver aqui.

          Ainda assim, a presente data tem algo a me dizer, o que significa tomar consciência de alguns acontecimentos pedagógicos na minha caminhada nesta vida. Nenhum dia é totalmente vão, e caso algum seja, seu vazio já é algo que incorporamos em nossa personalidade e gravamos no Livro da Vida. Um ensinamento para a eternidade.