quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Praia da Armação, 15 de dezembro de 2021

          Nos seis dias em que fiquei em Florianópolis nesse mês de dezembro, a quarta-feira foi o mais movimentado. Conheci dois locais diferentes do município - Armação e Pântano do Sul - e ainda transitei brevemente por aqueles becos tipicamente nacionais, que na ilha são chamados de servidão.

          Cabe destacar que Floripa tem seis rodovias só para si, as SC's 401, 402, 403, 404, 405 e 406, sendo que a penúltima liga o Campeche ao Pântano do Sul. Se por vezes a pista é estreita e a velocidade é limitada, imagina o que não é num servidão, onde o espelho do carro quase bate nos muros das casas.

          A primeira parada foi na Armação, bairro criado em 1772 com o nome de Armação da Lagoinha, uma referência aos locais de beneficiamento de produtos vindos da pesca da baleia, prática que se espalhou na região a partir de 1730. Chegando ao seu minúsculo centro, damos de cara com uma igreja, a Sant'Ana e São Joaquim, com a inscrição "1772" sobre a porta de entrada. 

          Fiquei um tanto contrariado ao me deparar com a cor vibrante do amarelo recém pintado e a data estampada na fachada. O conjunto não combinava, havia algo de não-espontâneo naquilo. E sua torre, acrescentada ao prédio em 1953, parecia um pouco deslocada para um edifício religioso do século XVIII. Só depois descobri que, apesar de antiga, a tradicional igrejinha não é mais a mesma que fora no passado e nunca fora tombada tendo sofrido diversas intervenções. 

          Na sua frente, outro contraste, o asfalto largo que se abre até a beira da praia e os fios de alta tensão que recortam o limitado visual da igreja. A área aberta, disputada por alguns motoristas ansiosos para estacionar um automóvel - ou largá-lo sem muito critério num momento de emergência - também é arena de manobras ousadas de uma linha de ônibus que, para cumprir a rota, realiza um habilidoso retorno sem deixar marcas nos arredores. 

          A praia larga ao longo da rodovia pela qual havíamos passado uns minutos antes se torna mais estreita na medida em que se aproxima do conjunto de casas do bairro. A areia, farta e macia, se torna mais exígua entre o novo calçadão do bairro e a passarela que dá acesso a Ponta das Campanhas; as águas calmas mantém os vários barcos de pesca flutuando livremente sob a proteção da Ponta; as casas, que ainda lembram suas origens portuguesas, se mesclam com algumas construções mais modernas perfiladas ao longo da linha da praia; e o verdejante Morro do Matadeiro, ao fundo, comprime as construções junto ao oceano fechando o conjunto da obra com sua onipresença. Está formado o cenário perfeito para um refúgio de tranquilidade e paz.

         O dia abafado, depois transformado num cinza mais agradável que começava a tomar o topo do morro com uma neblina, parecia ideal para uma praia - até um grupo de três gurias se colocarem atrás de nós e uma delas, sem o menor pudor, resolver abrir sua vida privada para meia humanidade ouvir. 

          Passando pela passarela que dá acesso a Ponta das Campanhas, encontramos no alto uma imagem que, para minha frustração, não era de Nossa Senhora, mas de Iemanjá. É evidente que a expectativa para alguém apegado à Mãe de Deus era de que uma figura feminina, visível ainda na subida da Ponta, fosse Maria, mas logo percebi, pelo perfil da imagem, o cabelo negro e o tipo de vestimenta que a pessoa representada era alguém parecida com Ela, e não deu outra. Passando ao lado da imagem à beira do rochedo, me deparei com uma oferenda a Iemanjá de alguém que teve o bom senso de deixá-lo numa caixa protegido do vento. No alto do rochedo, a belíssima vista da Praia do Matadeiro, com a enseada arenosa, o pontilhado de surfistas - a praia está voltada ao mar aberto - e a foz do Rio Quincas (ou Rio da Armação) que recebe as águas do Rio Sangradouro e deságua para o mar num leito raso, travessia de acesso à praia vizinha. Se na areia reina - ou deveria reinar - a paz e a tranquilidade, no alto da Ponta das Campanhas a atmosfera é mais profunda, há um convite à contemplação, típica das paisagens amplas que transmitem, por sua vastidão, o senso de eternidade.

          A Armação continuava tranquila ao longo da tarde. Com o horário de almoço totalmente desregulado, com pastéis e caipirinhas aleatórias, entramos num café cuja rua dá acesso à frente da igreja, com o detalhe de que já eram quase quatro horas. O tempo carregado com a umidade vinda do mar desaguou num chuvisqueiro reforçando a percepção de que estávamos num local frio, apesar do ambiente, da cidade e da temperatura dizerem o contrário. E detrás da janela ampla que dava para a rua estreita passaram as escandalosas, ao menos expansivas do que na praia. Seria realmente estranho chamar a atenção no meio da rua. Até mesmo nas praias brasileiras as coisas têm limite.

          Com os bancos molhados e sujos pela areia deixados para trás, seguimos aos extremo-sul da ilha, na Praia do Pântano do Sul.

           

            

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Dia 13 de dezembro de 2021

 

          Sem dúvida, Santa Catarina é um dos estados geograficamente mais interessantes do Brasil, principalmente porque a porção leste de seu território tem a audácia de concentrar, num espaço muito pequeno, alguns dos extremos climáticos de um país de dimensões continentais.

          Subindo pelas veredas da costa atlântica, a BR-116 presenteia os motoristas com as paisagens das mais diversas numa sequência de morros, planícies, rios e cidades e, cedo ou tarde, se encontra com o oceano. E as nuvens, formadas pelo obstáculo do barlavento, crescem na medida em que os cumes apontam para o alto, contrastando o denso verde da Mata Atlântica com o cinza escurecido do vapor d'água que anuncia a chuva que há de vir.

          Pude reviver esta experiência no primeiro dia de semana útil numa viagem de família de Porto Alegre a Florianópolis. Na medida em que adentrávamos as terras de nossos vizinhos catarinos, a serra se elevava e voltava a se aproximar da estrada. Há quem quisesse nos corrigir dizendo que era a estrada que resolvera se aproximar da serra, mas da perspectiva de quem se deslocava em velocidade, a geografia se modelava e remodelava como se o automóvel estivesse parado. Sim, a estrada se voltava aos paredões verdes, e os vales encravados entre os morros abriam espaço para que o fio da estrada desse vida àqueles que corriam em busca de outros mares.

          Entrando em Santa Catarina, mudava também as condições do tempo. A atmosfera, apesar de arrefecida pela proximidade com o oceano e menos quente do que as terras que abandonamos ao sul, se tornava muito mais carregada, e o topo de alguns morros encontrava a base das nuvens, que de tão espessas e baixas tornavam visíveis as rendas de vapor d'água.

          Nesse momento recordei-me de um episódio de dezembro de 2013, também na mesma região. Eu estava em Garopaba, o dia era quente e úmido e uma chuva de verão se aproximava. Em poucos minutos a enxurrada cobriu a pequena cidade costeira, e intensos clarões dos raios que caíam por perto iluminavam mais do que a própria luz do dia. Tão intensos e rápidos quanto os relâmpagos eram os trovões, que evidenciavam a dinâmica explosiva do fenômeno. Ainda que temeroso pelos barulhos repentinos, fiquei fascinado com o evento, porque não só vivia como compreendia o que estava acontecendo, sabia que aquela bomba caída do céu resultava daquelas nuvens reprimidas nos morros e do caldeirão sufocante que se elevava dos vales detrás das praias.

          A memória era reativada nos dias de hoje por aquele cinza escuro engolindo as montanhas e cobrindo os vales, reproduzindo a situação ideal para desaguar no festival de oito anos atrás. Quanto mais avançávamos para Florianópolis, mais carregadas ficavam as nuvens junto à borda da serra e mais minha expectativa era instigada na espera pelo presente dos Céus. 

          Mas tudo não passara de alarme falso. Pude notar, com o passar das horas, que a suposta ameaça era apenas uma estética do perigo. O tempo estava abafado, mas não ao ponto de ebulir em tormentas; a atmosfera não estava convidativa a sequer uma chuvinha decente, quem diria a uma enxurrada com raios lançados como se viesse do alto dos montes. Soube não só pela observação, mas também pela internet - na era da técnica, enfiamos a meteorologia inteira no bolso da bermuda - de que toda aquela umidade e abafamento no final das contas era apenas isso: umidade e abafamento. O vento úmido do mar apenas enchia os morros com vapor d'água como alguém que tentasse, por irracional insistência, acumular travesseiros na parte de cima do roupeiro. E ficava nisso, num frustrante acúmulo de material sem finalidade alguma.

          Chegando nas proximidades da cidade de São José, a estrada se voltou para a costa, a serra ficou para trás e o sol voltou, ainda que vencendo com alguma dificuldade os ares úmidos da região. A atmosfera abafada e a claridade misturadas à agressiva feiura da cidade, que se adensava em bloquinhos de concreto, vias expressas e cabos de energia lados, anunciavam a proximidade da Ilha de Florianópolis. 

          A chamada "Ilha da Magia" ficou apenas no nome, não trouxe o festival de luz, sombras, raios e estrondos que pudesse justificar, pelas peripécias vindas do ares, o apelido da ilha. Muito pelo contrário. Aqui, sob o teto quase sempre cinzento, as nuvens passam e continuam a se perder para as bandas do interior. E sem as loucuras sobre minha cabeça, sinto momentos de paz.

                    

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Dia 7 de dezembro de 2021

          Há tempo notei a existência de um paradoxo: quanto menos tempo temos para fazer as coisas, mais disposição temos para realizar outras coisas; e quanto mais tempo temos, menos disposição temos para outras iniciativas. Pela lógica, deveria ser o contrário: se temos tempo livre, oras, então deveríamos ter mais disposição para agir. Minha afirmação surgiu basicamente por experiência pessoal, depois confirmada com outras pessoas.

          Olhar o tempo livre é contemplar o potencial que temos para ir além daquilo que somos. Em outras palavras, é a oportunidade de crescer, de realizar aquilo que os gregos chamavam de "ócio": o cultivo da alma e do corpo para melhorarmos enquanto pessoa, o que inclui nos aprimorarmos intelectual, moral e fisicamente através dos estudos, do cultivo das artes, do esporte, da oração, e assim por diante. Quem dera essa disposição surgisse automaticamente no contemplar do tempo livre, como se o cair de um gota de água límpida fizesse imediatamente a semente se transformar numa árvore de copa larga.

          Essa observação diz respeito às pessoas com rotina definida e que, após o trabalho, têm algum momento em que podem cultivar a si mesmas ou a vida em família ou com amigos.

          Quando fiz uma breve busca na internet na tarde de hoje para ver os concursos públicos disponíveis, me deparei com um "azar": um deles havia encerrado as inscrições vinte e cinco minutos antes de eu acessar o site; outro anunciava o dia do pagamento da inscrição no mesmo dia em que eu descobria o edital. Azar entre aspas, pois as coisas dependem da providência e de nossa iniciativa; no meu caso, da falta dela.

          Onde eu estava na falta da busca? Se estou com um problema a resolver, a questão é simples: dê o primeiro passo, vá atrás. Uma longa viagem da casa até a fazenda, do Brasil à China, do desemprego ao emprego começa com o primeiro passo. Se a casa se erguesse antes do primeiro tijolo, bastaria o desejo de conseguir um trabalho para que parte do caminho já estivesse trilhado antes mesmo de ser conhecido. Deus faz muito por nós, mas não o que cabe a nós fazer, pois somos os remadores que só encontram o rumo certo na vida ao remar guiados por aquilo que confiamos de coração.

          O tempo que sobra torna-se um fardo como num trabalho exaustivo quando o tempo do ócio confunde-se com o do negócio, para utilizar outro termo dos gregos antigos, agora referente à prática de nossas necessidades cotidianas. Por isso costumo dizer que o desempregado não tem férias, mas um problema a resolver que contrasta vivamente quando seu amigo ou vizinho, cansado mas realizado, despacha o próprio corpo à beira de uma praia. 

          Na ausência do primeiro passo o fosso só se alarga e aprofunda, engolfando ócio e negócio, lazer a trabalho, vida particular e pública numa grande sopa que apodrece à falta de luz do sol.  

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A Rússia me persegue

 

          Existe um país que me persegue. Ele é conhecido, entre bebidas destiladas e frio extremo, pela ostensiva prática de espionagem. Não que seja o único a praticar isso, obviamente, mas se convencionou a vê-lo do Ocidente como um mistério indecifrável, e o Brasil, fortemente influenciado por aquilo que dizem os americanos e europeus, entrou no roldão no carnaval desses estereótipos.

          A Rússia me persegue, ou talvez eu persiga a Rússia. E mais uma vez fui pego por uma espécie de espião invisível que, na hora "H", resolveu dar o ar da graça.

          O mais recente fato curioso foi neste último dia de novembro, quando estive mais uma vez no Centro de Porto Alegre para os afazeres burocráticos e aproveitei para dar uma esticadinha num sebo, na famosa ladeira que liga a Rua da Praia com a Praça da Matriz.

          Espremido entre elevadas paredes de livros, uma espécie de paraíso estreito, ao fundo do corredor mexi de forma um tanto aleatória nos livros sobre religião quando, de repente, um pequeno cartão de promoção da cultura soviética caiu ao chão. Não havia pensado em nada sobre a Rússia no momento, mas o cartãozinho comunista estava lá entre os livros quando, ao puxar um deles, veio num leve tombo ávido a se apresentar.

          O material comemorava os oitenta anos da Revolução Russa com a inscrição "1917 1987", e por entre os números se erguia a Torre Spasskaya, a principalmente do Kremlin de Moscou, com a sua famosa estrela vermelha ao topo, tendo do lado direito outras duas torres de seus muros avermelhados e do esquerdo a cúpula do Senado do Kremlin com a bandeira soviética tremulando. Ao centro, um exemplar de uma revista comunista em português e abaixo a chamada "Não se esqueça de assinar a tempo jornais e revistas soviéticas!".

          Não me furtei de pensar, no mesmo instante, que aquilo só poderia ser para mim. Não me refiro à propaganda comunista, mas à referência à Rússia, enorme nação imperial que, apesar de minha insignificância, volta e meia aparece para me dar um alô.

          Não sei quando comecei com o fascínio por esse país ao mesmo tempo tão distante e tão presente, mas algumas coisas dão o que pensar. Na juventude, sempre achei Moscou fascinante por sua arquitetura grandiosa e ruas largas, cujos projetos visavam remodelar a cidade como exemplo da cidade comunista ideal e uma portentosa capital imperial. Tanto as peculiares igrejas - com a emblemática figura da Catedral de São Basílio, símbolo máximo da Rússia - quanto as chamadas Sete Irmãs de Stálin, em parte inspirada na própria arquitetura russa com bordas e torres pontiagudas, apresentam Moscou como centro de um império. 

          Certamente fui atraído pelo imaginário popular ou, diria melhor, pela figura estereotipada e militante da "grandiosidade" comunista, que infundia nas consciências juvenis o sonho de transformação da humanidade em todas as suas dimensões. Grandiosidade, universalidade, ideal, uma sedução sem fim de um universo inteiramente novo representado pela Terceira Roma, agora sob vestimentas materialistas. Por detrás da imensidão material e espiritual da Rússia, pulsava o ímpeto revolucionário que fizera da nação hospedeira seu Cavalo de Tróia. Amarga ilusão regada a muito sangue.

          Recordo-me de um ex-professor de pós-graduação lendo um texto a respeito do cosmismo, ideologia tão exótica e misteriosa quanto o país que lhe dera origem, que propunha uma nova evolução da humanidade em sua exploração do espaço, cujo resultado seria - pasmem! - a vida eterna! Uma loucura tipicamente russa e sedutora para um país com mania de grandeza. No artigo, um integrante do governo declarava, abertamente, sobre "o caráter nacional do povo russo, acostumado a pensar em categorias globais e pronto a sacrificar a vida por uma ideia". Ora, ora, quão fascinado sou por ideias amplas, arrebatadoras e reveladoras a respeito da vida, do homem, da História humana, do Universo inteiro! 

          Este foi o principal motivo pelo qual sempre me senti atraído pela mensagem de Fátima. Uma atração que por muito tempo foi muito mais mental do que espiritual. Seduzido pela temática impactante e abrangente, via as revelações sobre a História como muito mais interessantes do que o plano divino de salvação das almas e de paz no mundo, suas verdadeiras razões de existir. E nessa história tão incrível quem estava lá com uma menção toda especial? A Rússia, como pivô de uma época, a minha época, chave para a paz no mundo. A mensagem se encaixava muito bem nas "categorias globais" como forma de pensar o mundo. Minha atração pelo conteúdo era inevitável, mas até então boiava em divagações ao estilo History Channel.

          Apenas recentemente, em 2019, entrei de roldão na mensagem de Fátima graças a uma paróquia próxima de casa que realizava a Devoção dos Cinco Primeiros Sábados, e só depois disso entendi claramente, lendo as memórias da Irmã Lúcia, que a Consagração da Rússia não era o único fator da paz mundial, mas um de seus pilares junto com a Comunhão Reparadora. Fisgado pelo interesse pessoal pela Rússia, fui parar na frente de Nossa Senhora de Fátima como que um participante não só da História humana, mas do tempo de Deus, que não se mede por padrões humanos nem se limita a fronteiras nacionais. 

          Estar com Fátima é estar na Rússia. Basta menos do que um passo e menos do que o pulsar do ponteiro do relógio para atravessar mais de meio mundo. Quando me dobro frente à Nossa Senhora de Fátima, sei que um pouco de meu espírito repousa no distante país, da foz do Rio Neva à tundra siberiana, pois foi de meu interesse pela imensa nação que descobri, para conforto interior, a real dimensão da devoção a que me vinculava.

          A revelação pessoal não pára por aí. Em fins de 2019, descobri o repositório digital do jornal Voz de Fátima, dedicado à difusão da mensagem e publicado todo o dia treze de cada mês desde outubro de 1922. 

          Este que voz escreve veio ao mundo em 12 de fevereiro de 1981, e dada as "coincidências" que surgem naqueles que buscam uma vida espiritual, resolvi investigar o que se publicava a edição do dia seguinte. A situação não poderia ser mais reveladora. Dizia o título da capa: "Fátima e a Consagração ao Imaculado Coração de Maria". Chamada chocante para quem se dispôs, há dez anos, realizar a Consagração Total pelo método de São Luís Montfort, uma devoção de entrega à Maria Santíssima. Mas as coisas não pararam por aí; o subtítulo continuava: "Em diversas manifestações, Nossa Senhora pediu a consagração ao Seu Coração Imaculado: Consagração do Mundo e Consagração da Rússia.", e no pé da capa, outra reportagem anunciava seu título: "O Coração de Maria e os Primeiros Sábados". 

          De boca aberta, fiquei a imaginar o por que da impressão desse jornal exatamente com esse conteúdo menos de vinte e quatro horas depois de sair do delicioso aconchego materno. Saído de um aconchego, já se preparava outro com material feito especialmente para mim no futuro. Sim, essa edição foi impressa para que eu pudesse lê-la trinta e oito anos anos mais tarde. Ninguém imaginava minha existência, mas Alguém desde antes do princípio das coisas não só imaginava como já havia decidido tudo.

          Outra impressionante "coincidência" é o salto no tempo e no espaço que me fez olhar para uma distante terra gelada no passado. Explico. Na Renovação Carismática, bem como em certos grupos de oração, realiza-se a cura da árvore genealógica, procedimento que é, pelas palavras do falecido exorcista Gabrielle Amorth, ponto de discussão na Igreja Católica dadas suas sensíveis implicações teológicas. Como nunca fui autoridade tarimbada no assunto, pude conhecer dessa árvore pelos frutos quando tive experiências com orações de libertação.

          Em meados de 2009, tive o enorme privilégio de receber umas dessas orações que penetram nas gerações passadas. Na ocasião, queria descobrir a origem das dificuldades de relacionamento com meu pai, algo que perpassou toda minha vida. 

          Fui colocado sentado no centro de um sala em frente a uma imagem de Jesus, que expressava um olhar simplesmente irresistível a causar um desarme da alma. Ao meu redor, um grupo de mulheres introduziam orações católicas e invocação a Santíssima Trindade, anjos e santos, e impunham docilmente as mãos sobre mim. Buscando responder à minha ansiosa dúvida, uma das mulheres presentes me informou que visualizava um cossaco, e este tentava impor ao seu filho modos de agir e até mesmo o que ele deveria ou não pensar. Isso mesmo, um cossaco, e na Rússia. O homem, distante no tempo e no espaço, era antepassado da linhagem paterna, coisa que jamais imaginei nem por desejo. Como não possuía dons e sensibilidades afloradas, muito menos tinha o conhecimento teológico de um Adolphe Tanqueray ou as experiências de Santa Teresa d'Ávila, tive de me contentar com a descrição do local: havia neve. E como poderia ser a Rússia? Pois era a Rússia, respondeu a mulher, e o homem era um cossaco, o que me faz concluir que a libertação retornava pela minha linha familiar até meados dos séculos XVII-XVIII.

          Outro laço com a Rússia foi mais indireto, mas não menos surpreendente. Ingressei no mencionado grupo de oração em 2012, e uma das mais marcantes experiências ocorreram com canções religiosas, mais especificamente uma versão específica da Ave Maria atribuída ao compositor italiano do século XVI Giulio Caccini.

          Todas as vezes em que ouvia o som pela voz de um dos coordenadores do grupo, meu peito borbulhava como se produzisse vapor a explodir pela garganta, e que subitamente transbordava como a caneca com leite fervilhante. Não era o curto Neva, mas o vasto Volga que vinha à tona. A combinação de sutileza, profundidade e força da melodia tiveram em mim efeito avassalador. Não só a melodia em si, mas quem a cantava foi determinante. Richard Emunds era cantor profissional e se tornou meu padrinho de crisma, instrumento providencial decisivo para minha volta à Igreja. Através da canção a Nossa Senhora, eu vivia aquilo que costumei chamar de "experiência de Deus", o "sentir", como diz a banal linguagem popular. As cicatrizes abertas pela canção eram como que buracos por onde penetrava e jorrava a graça. Nunca mais quis me curar. 

          Mas que raios esse episódio tem a ver com a Rússia? Nessa última semana de novembro descobri que a mencionada canção da Ave Maria não era de autoria de Caccini, mas de Vladimir Vavilov, compositor russo que criou a música em meados de 1970 na então Leningrado publicando-a de forma anônima. Um duplo sopro providencial que fez brotar uma canção profundamente espiritual num regime antirreligioso e a fez alcançar essa alma então desnorteada por sonhos ilusórios e sentimentos desequilibrados que pululavam em lágrimas. 

          Não sei se Vavilov pensava em conversões ou possuía alguma devoção mariana especial, mas por seu valiosíssimo instrumento Nossa Senhora fez comigo o que ainda pretende fazer - e fará - com a Rússia.

          Mas enquanto a conversão da Rússia prometida em Fátima e Garabandal não chega, a Santa Sé e o Patriarcado de Moscou trabalham sutilmente nos bastidores por uma aproximação. Um passo ousado foi dado após vinte anos de discussão quando ocorreu o primeiro encontro da história entre um Papa e um Patriarca russo, Francisco e Kirill. O encontro teve direto abraços, sorrisos e uma Declaração Conjunta com temas muito delicados O ano era 2016, e o dia - sim, acreditem - 12 de fevereiro. De tão pessoalmente representativa, a data soava quase como uma ironia. Era dia do meu aniversário, praticamente um presente pessoal. 

          Na época não pude esconder minha alegria, que brotou discretamente quando soube da novidade pela internet, como se eu tivesse colocado a mão na sensibilíssima diplomacia Santa Sé-Moscou e participado de algo tão surpreendente. Obviamente seria ingenuidade pensar que disso pudesse vir a definitiva união das igrejas, algo tão improvável como o Papa e o Patriarca acenderem velas num bolo de aniversário e cantarem "Parabéns pra você" para um habitante desconhecido nas plagas do Sul do Brasil.

          Voltando ao 30 de novembro, uma pequena coincidência se revelaria pouco menos de seis horas depois do cartãozinho soviético me dar um alô. Eu havia começado a escrever esse texto comentando da misteriosa perseguição que o mencionado misterioso país vem promovendo à minha pessoa quando interrompi a escrita, fui à missa e soube, pela voz do padre, que estávamos comemorando o dia de Santo André. 

          Um dos apóstolos de Cristo, André é considerado ninguém menos do que fundador do cristianismo no Oriente e o santo mais venerado na Ortodoxia. Coincidência? E no mesmo dia, o Papa exortava, junto ao Patriarca de Constantinopla, que os ortodoxos buscassem a unidade de ambas as igrejas. Este texto tinha de ser escrito. 

          Todos os dias somos pegos com as calças na mão ou com o cartãozinho que cai ao nossos pés. Se há algo providencial entre minha relação com a Rússia ou se ela é mais um instrumento da providência que Deus dispôs para minha conversão, só o futuro dirá. E o futuro a Deus pertence.   

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Dia 29 de novembro de 2021

 

          O primeiro dia útil da semana começou com aquela ventania típica de inverno, com a diferença de que a temperatura estava dez graus mais alta do que no período mais frio do ano. O uivo do ar a penetrar pelo vão das janelas tão mal vedadas e por debaixo do vão da porta do quarto lembrava, mais uma vez, o quão porco é o isolamento de nossas casas, more você num barraco ou numa mansão. 

          Não por acaso, quando esteve na cidade em agosto de 1942, o francês Albert Camus caracterizou Porto Alegre como fria - e feia, além de cinzenta -, e registrava no seu diário de viagem que fora recebido no aeroporto por homens vestidos com capotes, nossos famosos ponchos. Ficou em minha imaginação sua experiência com o típico sofrimento porto-alegrense, para provável surpresa do escritor laureado, cujo inverno não se compara ao de sua terra natal, mesmo visitando a cidade justamente durante a maior onda de frio daquele ano.

          Ao olhar para a paisagem limitada de minha residência, observei as nuvens "correndo" por sobre a cidade. As árvores, acostumadas aos temporais e aos dias ventosos do meio do ano, vergavam seus galhos, e um grupo de jerivás na residência à frente à minha ora punham seus galhos na horizontal, ora caídos na vertical, lembrando a passagem das rajadas de vento com a sonoridade de suas folhas alongadas.

          Como devem ter percebido, gosto das coisas do tempo, e nada melhor pelo apaixonado por suas loucuras do que a mudança constante. Nunca, jamais, de modo algum os ares são iguais de um dia ao outro, e aí está a beleza e a atração da coisa - com o devido parênteses aos dias de calor, esses, sim, dispensáveis na quase totalidade deles.

          Não fosse a incomum ventania para fins de novembro e seria mais um início de semana sem atrativos especiais. Não pela rotina, mas pela falta dela ou pela insatisfação, talvez um tanto juvenil, de encontrar alguma novidade num mundo que, apesar de estar em constante mudança, possui a estabilidade da ordem sem a qual a mudança não poderia fazer referência. 

          Há uma paradoxo entre se chatear pela mesmice e contemplar que é a ordem que traz beleza ao mundo. É a alma que cansa. Deus nunca dorme.

sábado, 20 de novembro de 2021

Dia 17 de novembro de 2021

          Para alívio dos que sofrem com o calor, foi uma alegria acordar pela manhã e ver o termômetro abaixo dos vinte graus na metade de novembro. No dia anterior, o calor seco havia feito o termômetro bater os trinta e dois, mas felizmente a chuva, essa entidade tão distante nesse seco mês, resolveu dar as caras e propiciar, entre uma ou outra trovoada, um pequeno alívio tanto para meu corpo quanto à vegetação agora sedenta de água.

          Aqueles que moram distantes do Rio Grande do Sul tem uma imagem romantizada do clima local, essa senhora de humores instáveis. Muitos acreditam piamente na permanência do frio ao longo de todo o ano com verão bem ameno e neve sempre presente no inverno. Essa realidade é distante ao ponto de vermos certos constrangimentos fashion para os desavisados dos extremos dessa porção meridional do Brasil.

          Há muito tempo atrás, nos primeiro dias de janeiro de 1999, encontrei um carioca perdido em Porto Alegre durante uma forte chuva de verão. Descendo do ônibus, o pobre homem firmou os pés na calçada com seu corpo desengonçado e todo encharcado, suado e reclamando do calor. "Não imaginava que aqui fosse tão quente", disse mais ou menos com essas palavras. E eu, abrigado na parada de ônibus em meio à chuva inesperada, tive de responder, com a franqueza que tanto incomoda o tão ensaboado jeito brasileiro de não querer desagradar o próximo, de que as coisas aqui não eram como o estereótipo nacional imaginava.

          Mas esse dia de frio incomum para o mês de novembro foi uma das poucas confirmações do imaginário carioca. Numa data em que o sol já faz arder a pele dos desavisados e a temperatura já não é tão agradável como no mês interior, o céu carrancudo e o vento úmido e frio retiveram o termômetro o dia todo abaixo dos vinte graus. Cumprindo o único compromisso do dia, estive no aeroporto da cidade. Encostei meu carro, caminhei pelo canteiro da avenida próxima, cruzei para o estacionamento; senti o ar incomum para o mês com o vento que soprava canalizado por um prédio ao lado. Uma atmosfera de campo aberto em meio ao asfalto, de um mês de maio no mês de novembro. Um garoa leve aqui, outra acolá; volta e meia uma branda cortina esbranquiçada passava pela cidade, e o vento reforçava sensação de ter recuado alguns meses no calendário.

          Os ares do inverno, acrescentado pelo fato de ocuparem o período em que o verão já dá seu primeiros sinais, foram para mim o brotamento de outra memória, o de sentir o aconchego do envolvente ar frio e de saber, para a realização de minha vingança particular, que o desconforto do calor ficou para outras bandas distantes deste país tropical. Talvez haja algum evento em meu passado que tenha encrustado em minha alma essa satisfação, quiçá mesmo um antepassado que tenha legado esta alegria ou nostalgia como a geada que se propaga pela árvore genealógica, que faça minha alegria crescer na medida em que a temperatura diminui. Nessa época, meus descendentes vindos da Itália já estariam se preparando para a chegado do inverno como manda o sábio e velho hábito de obedecer aos ciclos naturais. 

          O envolvimento emocional engendrado pelas mudanças no tempo pode ser a memória viva de um passado que se foi mas que ficou como parte de minha personalidade. Porque somos o extremo de uma árvore viva que fincou suas raízes em tempos imemoriáveis. Alguns de meus galhos estão cobertos pela neve que cobre toda a paisagem.

domingo, 14 de novembro de 2021

Dia 14 de novembro de 2021

 

          Ó, infelicidade essa de ter de se levantar todas as manhãs. Não importa o horário, se seis horas ou onze, meu corpo parece três vezes mais pesado do que realmente é. Não um cansaço, mas uma falta de energia, um desligamento da voltagem que percorre todo o ser de forma simultânea que induz à inércia de ficar estirado sobre o colchão aquecido e já marcado por longas horas de sono. E a vontade, essa potência da alma que não cessa de decidir, luta num jogo de empurra-empurra para ver se vence mais uma maçante batalha contra seu teimoso insubordinado biológico.

          Nesse domingo não foi diferente. Para evitar prolongar demais o sono, despertei às nove e quarenta, mas mesmo com quase oito horas dormidas sentia-me enferrujado e com o peso triplicado. Poderia ter deitado mais cedo na noite anterior, mas a má e velha procrastinação me fez perder mais uma vez a oportunidade de alongar o tempo de descanso e amenizar, mesmo que um pouco, a perda de energia no despertar.

          É claro que a culpa não é do corpo. Nem sou eu um vagabundo. Todas as manhãs há uma motivação: viver. Quando perdida por qualquer motivo que seja, essa motivação, a motivação base de todas as demais motivações - cumprir compromissos diários, trabalhar, ganhar dinheiro, realizar um desejo, cumprir mais uma tarefa no plano de longo prazo, cuidar das crianças, fazer o café da manhã para a família, ir ao banheiro para as necessidades básicas - sucumbem como que numa implosão silenciosa, um edifício feito de isopor mas com peso de chumbo que desaba sobre si mesmo.

          O despertar é a consciência que toma seu lugar no homem que decide sobre si e que tem em seu horizonte o limite de suas decisões. Mas às vezes parece que não queremos decidir por si, esperando supostamente que alguém ou alguma força oculta virá nos socorrer e, magicamente, injetar a força necessária para vitalizar o corpo triplamente pesado. Se não queremos decidir, quem decidirá por nós? Aí está o erro. Na manhã desmotivada jaz o homem que decidiu não viver.

          Todos têm sua luta diária, que se subdivide em vários rounds de socos e pontapés nos contratempos da vida ou por dribles dos mais despertos e audazes quando se está cheio de energia. Há um tempo essa tem sido a minha luta, revirar o corpo para que todos os demais rounds possam ser vencidos.

          Felizmente a alma não se sustenta por si mesma e o sol nasce para todos. 

Dia 13 de novembro de 2021

 

          Eu estou com quarenta anos e durante mais da metade de meu tempo de vida realizei uma busca, sem clareza do objetivo almejado, de minha vocação enquanto pessoa. A situação foi ainda mais complicada porque essa busca se confundiu muito com a ideia, profundamente arraigada na sociedade moderna, de vocação profissional, algo muito distinto mas alguma forma integrado à realização plena da personalidade. 

          Por vezes nossa alma recebe como que lampejos de consciência que nos situam nessa busca. São momentos que permitem ver, em instantes bastante precisos, onde estamos na caminhada de nossa realização, um estar no mundo onde vemos a integração de nossa pessoa com tudo o que há, um espécie de mapa cósmico e histórico que nos situa em nossa trajetória de vida. 

          Na obra Retrato de um artista quando jovem, o escritor irlandês James Joyce descreve, com o prolongamento e os detalhes que lhe são característicos, o processo de descoberta de vocação do jovem personagem Stephen Dedalus. Ao ler hoje o trecho a seguir notei o êxtase do personagem e pude lembrar de situações da minha vida que eram análogas à sua experiência:

O seu coração tremeu; a sua respiração tornou-se mais apressada; e um espírito selvagem passou por sobre os seus membros como se ele fosse escalar o sol. O seu coração tremia num êxtase de medo e a sua alma estava num voo. A sua alma estava se alando ar acima para lá do mundo, e o corpo, sabia ele, estava purificado, libertado da incerteza, e se tornara radiante, diluído no elemento mesmo do espírito. Um êxtase deslumbrado de voo tornava radiantes os seus olhos, desordenada a sua respiração, e trêmulos, selvagens e radiantes os seus membros arrebatados pelo vento. (p. 173)

          A experiência de Stephen é a tomada de consciência de quem era e quem queria ser enquanto pessoa. Ele acabara de ser questionado por dois padres jesuítas se não gostaria ser sacerdote, e vagando pelas praias próximas a Dublin foi descobrindo seu verdadeiro caminho através de um turbilhão de emoções, recordações e iluminações.

          Gostaria de dizer muito mais aqui, mas apenas sei que, enquanto estava à rede absorvendo esse momento especial da obra, notava que não estava tão consciente de meu caminho quanto o jovem Stephen com mais ou menos metade de minha idade. Ou como uma então amiga minha que, em 2003, descrevia num e-mail seu momento de êxtase e felicidade profunda enquanto caminhava nas ruas de uma cidade na costa leste do Canadá. Era um anúncio, à vista de todos, de como era feliz, e como aquele momento era revelador de sua bem sucedida caminhada de vida.

          A descrição da iluminação interior do personagem pode identificar muitas experiências reais nesse universo infinito que dimensiona a alma humana, ao exemplo da amiga no Canadá. A iluminação tem como alvo a consciência e se traduz num acontecimento secreto, mas profundamente real e palpável para quem o vivencia. É a sensação fulgurante de estar fazendo a coisa certa no momento certo, de ver a própria vida em sua totalidade onde tudo passa a fazer sentido, e se tem plena consciência de que a caminhada percorrida era a que deveria ter sido percorrida como se houvesse algo de providencial a guiar toda a trajetória de vida.

          A distância entre o momento em que lia James Joyce e a experiência que o escritor narrava no seu livro parecia infinita. Como ontem, o vento soprava de leste, a temperatura estava um pouco amena, e não havia nada de novo nos ares, tanto em seu plano físico quanto existencial. Mas talvez essa seja a grande surpresa: por detrás do dia a dia um universo inteiro vai se revelando, e se caminhamos conscientes de nossa busca, tateando aqui e ali, andando na beira da praia ou perdido numa rua, de repente somos arrebatados e nos vemos com o Livro da Vida em nossas mãos.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Dia 10 de novembro de 2021

 

          Para quem gosta de meteorologia como eu e tem como um dos entretenimentos observar as condições do tempo nada mais chato do que dias e dias na mesma condição.

          Este é o padrão do tempo desde fins de outubro, e hoje não foi diferente: manhã fresca, tarde agradável; tempo bom com sol e nuvens, vento soprando de sudeste ou leste devido a um centro de alta pressão no oceano; ao final do dia as nuvens diminuem, o vento continua mas um pouco mais fraco, e a sensação de frio leve aumenta. Enfim, um enfado atmosférico que parece não ter fim e que faz esquecer o agitado mês de setembro, quando tivemos pelo menos quatro episódios de temporais aqui em Porto Alegre, um deles durando mais de dois dias, para minha empolgação e alegria.

          Essa eternidade coincidiu com um assustador e impressionante trecho da obra Retrato de um artista quando jovem, do escritor irlandês James Joyce. Sentado na rede e sentindo o vento leve que soprava trazendo as nuvens algodoadas típicas desta época, fiquei impactado com a longa descrição do que seria o inferno pela fala de um dos personagens do enredo. 

          Seu nome é Pe. Arnall, que realizava um impactante sermão durante um retiro em que participava o personagem principal, o introspectivo Stephen Dedalus, com seus colegas do Belvedere College. Vivendo uma vida cinzenta e atormentado na consciência por ter se entregue aos prazeres de uma prostituta, os ouvidos de Stephen estavam atentos a toda a explanação do que era o inferno.

          A descrição de Joyce é incrivelmente bem construída, didática e muito profunda. O leitor consegue imaginar as cenas do que seria o inferno, com as almas esmagadas umas sobre as outras e sofrendo por tormentos interiores e exteriores dos mais diversos tipos, imersas na escuridão que não se vê mas se sente e, acima de tudo, que dura para sempre. O sofrimento é tão vasto e absoluto quanto a eternidade, apresentada na analogia que o Pe. Arnall faz com o trabalho de um pássaro que, de grão em grão, vai retirando a areia de muitos milhões de milhões de montes de areia amontoados uns sobre os outros. Assim é a indizível duração da eternidade, cravadas a fogo na consciência das almas condenadas, que sabem, agora e para sempre, quão duradouro é o seu sofrimento.

          Obviamente o tédio do tempo não muda não se compara ao sofrimento que não passa. Mas há algo de infernal nisso: para quem tem apreço pela mudança, se anima ao ver as radicais transformações do tempo com bigornas de vapor d'água a ejetar raios, clarões e estrondos, se agita com a chuva que cai com força e faz vibrar o telhado, se anima ao ver o efeito do ar gelado sobre a relva que congela, fica na expectativa de alguma neve num local próximo, e se impressiona - mas reclama - com o calor que parece fazer tudo derreter, nada pior do que o marasmo. Felizmente isso não é tudo, mas apenas um aspecto, um detalhe da vida cotidiana. Se o tempo não era atrativo, a obra de Joyce, que aos poucos revelava sua impressionante profundidade, o era. 

          No dia anterior, enquanto dava prosseguimento ao livro, meu gato se aproximou e se jogou aos meus pés como se quisesse me acompanhar, mesmo que fisicamente, na aventura ficcional ambientada na Irlanda de cem anos atrás. Na expectativa de que meus dedos, cobertos pela fina camada da meia azul que eu usava, lhe acariciassem o pescoço e massageassem o profundo das orelhas, ele rolou no chão, e meus membros inferiores não tardaram a lhe preencher os sentidos de conforto e alegria. 

          Se eu estivesse totalmente preso a um único desejo, a um único afazer, se minha vida se resumisse a um único prazer que é observar e analisar o tempo, sim, a vida seria um inferno, e o tédio, mesmo que durando alguns dias, se tornaria quase tão insuportável quanto a consciência de uma eternidade dolorosa. Mas a vida não é assim. Mesmo num momento de poucos afazeres, sempre há algo diferente ou uma agradável surpresa a brotar do mundo que nos rodeia ronronando aos nossos pés e ouvidos. Enquanto estivermos vivos teremos a chance de sermos salvos.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Dia 8 de novembro de 2021

          Após anos de participação em um grupo de oração aqui de Porto Alegre, comecei a notar que certas intuições em momentos de concentração eram, na verdade, indicativos de coisas que estavam acontecendo. 

          Mas é preciso não confundir as coisas. Tais intuições dependem de duas condições: oração e silêncio interior. Nada de dirigismos mentais, pois o que eu "vejo" é, na verdade, meus próprios pensamentos e não visões místicas que podem ocorrer em algumas pessoas, mas que não são tão banais quanto a intuição que brota através da mente.

          Minha mente fica como que suspensa com a devida paz e concentração, e surgem pensamentos que, se bem notados, fluem livremente ao sabor do momento meditativo e espiritual que pouco ou nada tem a ver com alguma intenção pessoal. Em outras palavras, os pensamentos surgem e se desenvolvem em mim sem que eu os dirija deliberadamente confirmando, momentos depois, que aquilo que vinha à mente dizia respeito a algo ou alguém próximo.

          E mais uma vez notei um insistente apelo da Mãe de Deus, dessa vez ao mundo. Era noite de segunda-feira, momento tradicional de um dos encontros do grupo, e as canções à Nossa Senhora, embaladas ao vivo pelo coordenador do encontro, também ele um devoto mariano e cantor profissional, enchiam a nave da igreja. Como que transportados para outra dimensão, o som do teclado e a voz ungida faziam o Céu descer, e sentíamos como que envolvidos por uma nova atmosfera, invisível aos olhos mas perceptível aos órgãos da alma.

          Apesar do momento ser para lembrar todas as pessoas próximas que necessitavam do auxílio de Nossa Senhora, pensei também, cá comigo, na situação do mundo, e me concentrei deliberadamente na mensagem de Fátima para a humanidade, mensagem que há tempo me atraía, mas que só recentemente resolvi conhecer de forma verdadeira. 

          Recordei-me do Anjo com a espada de fogo, que os três pastorinhos haviam visto na terceira parte da mensagem, descrita pela irmã Lúcia em suas memórias. Nessa passagem, o Anjo aponta sua espada com a mão esquerda em direção à Terra para incendiá-la, mas seu fogo é apagado pela luz que emana da mão direita de Nossa Senhora. Com a outra mão, o Anjo aponta para a Terra e diz com voz forte "Penitência! Penitência! Penitência!" Enquanto Deus, pela boca do Anjo, pede urgentemente que o homem se redima de seus pecados praticando sacrifícios, Nossa Senhora segura a ira divina com sua intercessão, dando algum tempo à humanidade para sua remissão.

          Por algum motivo, essa imagem em pensamento buscava tomar vida própria. Não havia mais Nossa Senhora, e o Anjo ficou apenas em minha lembrança. Notava que o fogo, agora tomando proporções mastodônticas, descia sobre a Terra não como labaredas, mas imensas bolas de fogo, tão grandes que pareciam quase não se mover em relação às enormes dimensões de terra que engolia. Cidades inteiras eram cobertas pelo fogo, que calcinava absolutamente tudo ao seu alcance.

          Eu tentava imaginar que locais poderiam ser esses, mas as especulações eram puramente artificiais. A importância não estava nos locais em si, e sim no fato de que Nossa Senhora já não poderia mais intervir para impedir o sofrimento que viria ao mundo por seus vastos e contínuos pecados. Passaram-se mais de cem anos, e a humanidade, após um início aparentemente promissor, deu as costas à mensagem de Fátima, e agora parece não haver mais tempo para evitar as catástrofes vindouras, a tão necessária purificação do mundo pela via dolorosa. E no meio da dor, haverá guerra.

          Escrevo isso porque é pelo menos a quarta vez que percebo em mim um forte apelo de Nossa Senhora para que rezemos, urgentemente, pela paz no mundo. Particularmente não creio ser mais possível evitar o fogo da espada do Anjo, cujo contexto se dá em meio a uma cidade parcialmente destruída, mas ao menos podemos evitar o pior ou amenizar as dores do parto que serão necessárias para o surgimento de uma nova humanidade, o triunfo do Imaculado Coração de Maria. 

sábado, 6 de novembro de 2021

Dia 4 de novembro de 2021

 

          Nesse dia comecei a leitura da livro Retrato do artista quando jovem, do escritor irlandês James Joyce. Logo fui pego um pouco com as calças na mão pela dificuldade na leitura, talvez devido à tradução da obra, porém o estilo de Joyce não me era familiar.

          Mas clássicos são clássicos, e como tais eles trazem no enredo um pouco da realidade que diz respeito a todas as pessoas na face na Terra. Do contrário, ficariam confinados à cultura local, muito mais significativos ao seu folclore do que à condição humana universal.

          Logo no início de Retrato, o personagem principal, o pequeno Stephen Dedalus, reflete sobre sua situação física no vasto mundo desconhecido. Após ler um lista que o situava geograficamente na vastidão indeterminada do Universo a partir de sua condição pessoal, o garoto salta ao seguinte pensamento (narrado por Joyce em terceira pessoa):

"Que é que haveria depois do universo? Nada. Mas haveria qualquer coisa em volta do universo para mostrar onde ele parava antes de começar o lugar do nada? Não poderia ser uma parede; mas bem que poderia ser uma linha fininha, bem fininha, lá bem em volta de tudo. Era uma coisa muito grande para poder pensar em todas aquelas coisas e em todos aqueles lugares. Só Deus podia fazer isso. Tentou imaginar que enorme pensamento poderia ser esse, mas só conseguia pensar em Deus." (p. 30)

          Joyce mostra a efusiva imaginação do garoto, mergulhada no universo da cultura irlandesa católica do início do século XX, mas ainda assim aberta ao mistério, esse grande mistério que ultrapassa os limites de qualquer cultura e que é preenchido não pela simples crença em si, mas pela confiante abertura espiritual. E continua: 

"Deus era o nome de Deus, assim como o nome dele era Stephen. Dieu era o nome francês para Deus, e era também o nome de Deus; e quando alguém rezava a Deus e dizia Dieu, então Deus imediatamente ficava sabendo que era uma pessoa francesa que estava rezando. Mas embora houvesse nomes diferentes para Deus em todas as diferentes línguas do mundo, e Deus compreendesse o que era que todas as pessoas que rezavam diziam em suas línguas diferentes, ainda assim Deus permanecia sempre o mesmo Deus e o nome verdadeiro de Deus era Deus." (p. 30)

          Fica bastante claro o apelo universal, não apenas da fé católica de Stephen, mas do amor à Verdade. Pois há só uma Verdade, e mesmo que haja vários prismas que a filtre e veja, essa Verdade continua sendo só uma. 

          Quando li essa passagem não apenas me identifiquei como me apaixonei por ela, pois são nesses momentos de mergulho em nós mesmos que encontramos o misterioso microcosmo que reflete o macrocosmo, uma espécie de ordem interior que tenta caminhar em consonância com a ordem exterior, e vemos que em nós há uma infinitude que também é reflexo da infinitude - ou pelo menos a indeterminação - do que há fora. Estamos no mistério e dele não podemos sair ou, como dizia São Paulo Apóstolo, "nele nos movemos, somos e existimos".

          Sentado na rede do lado de fora de casa, fui pego subitamente, mas de forma muito sutil, como que em oração, num momento de iluminação ignizado pela maravilha da obra. Por isso clássicos são clássicos. Cada um de nós traz em si um pouco da pureza de Stephen e da genialidade de Joyce.           

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Dia 3 de novembro de 2021

 

          Depois de vários meses, pisei novamente nas ruas do Centro de Porto Alegre. Sorte minha, justamente num dia de tempo nublado com nuvens cada vez mais espessas a bloquear a ardente luz do sol do miolo da primavera, capaz de tornar desagradável um dia de ar agradável. Bastaram alguns minutos em deslocamento para que uma chuva leve começasse a molhar a superfície. Meu guarda-chuva fora bastante útil.

          Cheguei ao destino numa travessa de nome curioso - Mario Três Paus, ó raios! - e me deparei com o edifício do lado contrário: um monstro de concreto em formato da letra "H", cujas paredes mais visíveis estão viradas ao norte e ao sul com janelas encravadas entre faixas retilíneas que bloqueiam as luzes laterais, formando o horrendo paredão típico da arquitetura moderna.

          Pude notar o quão insignificante eu era frente ao monstro de concreto, aço e vidro. A faixa central do "H", escondida pelas estrutura principais, era melhor notada na travessa de nome esquisito, ela mesma de design altamente duvidoso, formando o eixo a partir do qual irradiava toda sua estrutura. Ao seus pés, uma pequena fila de pessoas para o atendimento do INSS, tão insignificante quanto eu, mas incrivelmente desproporcional ao gigante que se destacava para quem o observava junto a Mario Três Paus ou ao Mercado Público logo ao lado.

          Impactado com as dimensões do edifício - que já conhecia há tempos mas nunca notara com atenção - resolvi investigar qual era sua identidade. Tão oculto quanto o seu estilo insosso e burocrático é o seu nome, pois demorei tempo para descobrir que o famoso "edifício do INSS" chama-se Edifício Getúlio Vargas, sede do então IPASE, construído na onda modernista que arrasou os belos estilos português e neoclássico das grandes cidades brasileiras entre os anos 1950 e 1970. Robusto, retilíneo e de bordas bem delimitadas, o gigante enquadrava-se perfeitamente nos cânones da arquitetura moderna, num estilo que um artigo escrito em 1990 classificou como miesiano, adjetivo derivado do nome do arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe. Uma olhada rápida no perfil da famosa personalidade evidencia as características do edifício: estilo racional, funcionalista e minimalista, uma obra voltada para fins utilitários.

          Grandes construções como a que encarei com espanto em minha breve visita ao Centro são opressoras, não pelo tamanho em si, mas por aquilo que significam. Quando estive pela primeira vez em Londres, em setembro de 2015, fiquei espantado com o tamanho do Big Ben, mas igualmente maravilhado com a riqueza de seus traços e a relevância de sua simbologia. O mesmo poderia ser dito com relação a muitas outras construções da cidade, que remetiam constantemente o visitante às glórias do Império Britânico.

          Em Porto Alegre, fiquei apenas espantado, e nada mais do que espantado, pois a racionalidade monumental da construção se impôs sobre mim como se eu estivesse submetido a uma força invisível e impessoal. Este é o efeito de uma obra gigantesca, que comunica, como que pela força da presença, a ordem à qual se refere. Ninguém estava ali a passeio e nem estaria caso fosse um dia de descanso, pois não há nada a admirar a não ser o inevitável fato de, ao olhar para alguma direção, se deparar inevitavelmente com um enorme objeto pura e simplesmente por sua dimensão. Em momento nada divertido, eu também estava lá cumprindo meu dever financeiro-burocrático, bem ao estilo da paisagem cinzenta e deprimente.

        A opressão desse estilo arquitetônico não poderia causar outro efeito senão a opressão de seu próprio fim. Grande parte do Edifício Getúlio Vargas ficou vários anos abandonado - e parece que ainda está - porque, no fundo, como dizia o filósofo Roger Scruton, ele é feio, e as pessoas não gostam de coisas feias. Se uma obra possui fins racionais e utilitários, ela perde sua razão de existir tão logo sua funcionalidade perca o sentido, transformando-se em uma obra morta. Salvo o discreto movimento do térreo, o trambolho do Centro da cidade era um ser quase morto respirando por aparelhos.

          Cumprido meu compromisso, saí do prédio em frente com a chuva agora moderada e, surpreendentemente, presenciei dois relâmpagos seguidos de trovoadas. O céu bradava contra a opressão da feiura sem alma. Bastou alguns minutos para que a revolta contra a beleza desabasse numa chuvarada. Eu estava de alma lavada.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Dia 1º de novembro de 2021

 

           Certo dia, quando estava na séries iniciais do colégio, eu e meus colegas realizamos um jogo onde apostávamos nossos desejos futuros. Citávamos a profissão que teríamos, com quem casaríamos e com que idade. Me recordo da idade do meu casamento - 25 anos - e o nome de uma futura pretendente.

          Quase três décadas depois, não só a pretendente sumiu do meu horizonte de relacionamentos como o casamento não veio, bem como a esquecida profissão que havia mencionado. O sonho do ingênuo garoto, construído sobre os dois ideais mais cobiçados da sociedade moderna - o sucesso no trabalho e o casamento feliz -, simplesmente não se tornaram realidade.

          Há algo de frustrante nisso, mas também de altamente pedagógico. Pois o casamento pode simplesmente não ser a vocação de uma pessoa ou seu tempo não ser o tempo imaginado, e o trabalho, necessário a todos que têm um mínimo de sanidade mental e capacidade de caminhar com as próprias pernas, pode ser qualquer um, na grande maioria das vezes diferente do que foi sonhado na infância. E mesmo na faculdade.

          A frustração está na entronização do sonho. O problema é muito simples: sonhos humanos são apenas isso, sonhos humanos, e não decretos divinos. Eles têm a fugacidade do vento, não a estabilidade indeterminada da sucessão de dias e noites. Somos muito mais limitados do que nosso vão desejo e as ficções grotescas de Hollywood - com naves espaciais super avançadas criadas num espaço de vinte anos - nos fazem imaginar. O mundo é o ensinamento do I Ching: tudo está em permanente mutação, menos a mutação mesma, ainda mais se consideramos uma época que aposta no princípio de que as coisas têm fins utilitários, até mesmo a vida humana, e que a essência de sua dinâmica é o movimento frenético e permanente. Os sonhos de uma vida feliz dentro dos cânones modernos é não apenas difícil, como artificial e questionável. Afinal, felicidade seria ter uma carreira bem sucedida e um casamento feliz, mas quem realmente sobe este monte? E alcançada a almejada conquista, o que fazer?

          A pedagogia está na destruição dos ídolos, pois o homem é um ser essencialmente religioso, condição que Peter Berger bem afirmou quando, em sua longa carreira acadêmica, notou que mesmo em sociedades altamente desenvolvidas a religiosidade - mais especificamente a espiritualidade - sobrevive, mesmo que em formas bastante distintas das sociedade tradicionais. O anseio pelo eterno está traduzido nesse perfil religioso. Dê carreira bem-sucedida e casamento feliz a todos e verá se instaurar o caos, a vida sem sentido que é contemplar o tempo que passa sem novas conquistas no limitado tempo de vida. Sem a perspectiva do plano transcendente, a caminhada é vã e a conquista morta no momento de sua concretização, um troféu que acumula pó num canto da prateleira. É a morte e, portanto, a esperança de uma eternidade, a medida de nossas ações.

          Assim como sonhos pessoais facilmente caem na idolatria e na inevitável frustação, impérios inteiros também são arrastados pelo vento, mesmo os aparentemente poderosos. Nesse primeiro dia de novembro, repassei alguns trechos do recém lido O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévich, e encontrei o depoimento de uma cidadã da antiga União Soviética declarando o seguinte:

"O poder soviético parecia eterno. Iria durar até os nossos filhos e os nossos netos! Foi inesperado para todo mundo quando ele acabou. Hoje já ficou claro que nem o próprio Gorbatchóv esperava por isso, ele queria mudar alguma coisa, mas não sabia como. Ninguém estava pronto. Ninguém!" (p. 82)

          Muitas vezes não estamos preparados para uma crise de relacionamento, uma demissão sem aviso prévio e muito menos para o desaparecimento de um império porque perdemos a visão daquilo que fixa as estrelas no alto e sustenta as civilizações. Felicidade mesmo, só no Céu. 

domingo, 31 de outubro de 2021

Dia 31 de outubro de 2021

 

          Na grande maioria dos locais afetados pelas altas temperaturas, o calor vem acompanhado de umidade e ambos criam o mais conhecido e vital dos fenômenos atmosféricos: a chuva. 

         Primeiro brotam aqueles pequenos algodãozinhos no fundo azul que sinalizam os efeitos do sol forte e do calor. Em seguida, seu volume cresce, e se pudéssemos gravar com os olhos o que as técnicas modernas de filmagem permitem contemplar, veríamos múltiplos borbulhamentos de vapor como se as bolhas de algodão crescessem e se multiplicassem dando enorme volume à pequena almofada flutuante.

          Um olhar atento por debaixo dessas nuvens - que os meteorologistas batizaram de cumulus - permite notar, com a devida calma e paciência, o movimento do vapor d'água, lento à distância mas turbulento nas alturas. Estirar o corpo sobre a grama e fixar o olhar na vertical as nuvens que anunciam a chegada da chuva são uma boa forma para captar o que uma rápida olhada jamais poderá notar.

          Quando a nuvem ganha o corpo de uma couve-flor - que os meteorologias classificam como cumulus congestus -, está pronta a receita para seu próprio peso se derramar em água e liberar os primeiros raios devolvendo à terra o que o calor lhe tirou sem pedir licença. Mas quando o pequeno algodãozinho não pode mais crescer e se esparrama num teto invisível - e é nesse momento que os meteorologistas dão à nuvem sua classificação mais famosa, cumulonimbus - então temos o pacote completo de surpresas atmosféricas: água em abundância, luzes por vezes ativas como um estroboscópio ligado na alta voltagem, sons que anunciam a chegada de uma autoridade importante e até mesmo o rufar dos ventos que, em alguns momentos, ultrapassam o mero conceito de "beleza" e se transforma em beleza destruidora.  

          Existe um diálogo divino entre a nuvem que cresce e a pessoa que a admira. Certa vez, em dezembro do ano 2000, eu estava no campus de minha faculdade, e pude presenciar, com ânimo e admiração, o momento em que uma chuva de verão desabou sobre o local. Andei entusiasmado pelo do corredor coberto que abria espaço por entre os baixos edifícios e me acheguei ao corrimão de metal pintado de amarelo que dava fim ao meu trajeto e início à vastidão verde morro acima. Olhava claramente os pingos grossos caindo de forma intensa em contraste com o fundo recheado por uma densa mata nativa. Era bonito demais notar a beleza, a ordem e a dinâmica viva de um céu que desaguava suas bênçãos para quem era capaz de enxergá-las. Expressei meu maravilhamento como uma amiga que me acompanhava e que também admirava a chuva como se compartilhasse do mesmo diálogo que o meu.

          O maravilhamento tem a capacidade de imprimir na alma uma marca inexpugnável, mais impactante e profunda do que a marca de ferro em brasa. É a atitude de se deixar impregnar, mas não de se deixar levar pelo mundo, porque é a chuva que passa, mas experiência nos desperta e se integra à nossa personalidade. Por isso se engana quem pensa que o primeiro Evangelho escrito está na Bíblia. Não, ele se encontra na própria Criação, que forneceu os elementos necessários para que a alma fosse preparada para receber a Palavra de fato. 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Dia 27 de outubro de 2021

          Três horas da tarde. O céu estava praticamente limpo. Apenas uma ou outra nuvenzinha aparecia perdida na imensidão azul, mas nem de longe prometia uma sombra muito menos um refresco dos céus. Fazia trinta e quatro graus e um vento, até então ausente, apareceu vindo das plagas do oceano parecendo prometer um alívio. Mero engano.

          Nada mais opressor de quem se sente mal física e psicologicamente no calor do que os dias de muito calor. Mas a cena que viria a presenciar me faria lembrar o terror de mais de sete anos atrás.

          Devidamente blindado por vidro e aço, parti de casa em meu carro com o ar-condicionado ligado no frio. Bastaram cinco minutos para andar não mais do que dois quilômetros até o destino em um bairro vizinho. No banco detrás, um velho aparelho de som me recordava de sua presença com a leve batida da tampa do disco, e debaixo dela um vinil coberto de poeira esquecido há muito tempo.

          O destino era um estabelecimento de esquina, que lembrava mais um barraco de alvenaria milimetricamente construído num terreno exíguo. Com a devida atenção, lia-se que se tratava de um local de assistência técnica, e com um pouco mais de atenção era possível ver empilhados e colocados um ao lado do outro televisores, ares-condicionados, micro-ondas, ventiladores e o que quer que fosse de eletroeletrônico. Parecia que todo o material viria a transbordar através da grade que separava o chão de concreto da calçada tão estreito era o espaço entre o balcão e a rua.

        Do lado de dentro notava-se que não mais que um metro e tanto separava o balcão da calçada. Dois passos e eu já estava quase de barriga sobre o tablado. Graças ao sol da tarde, a luz direta incidia sobre os produtos aparentemente consertados, e o calor que emanava da calçada de basalto e do asfalto não encontrava nenhum obstáculo para se projetar ambiente adentro. O local lembrava muito mais o abrigo de um filme distópico do que realmente um estabelecimento comercial.

          Imaginem o que é estar num dia muito quente sem qualquer refresco e conforto cercado de aparelhos, poeira e radiação, apreciar como vista as maravilhas do urbanismo brasileiro e ter a sensação de cozinhar no agradável calorzinho do verão. De fato, não era verão no calendário, e sim final de outubro, mas isso pouco importava, pois o dia era de fato como no verão - o que chamaríamos de verão climático - salvo o ar estar mais seco do que o normal e a sensação de abafamento não ter nada terrível. 

          Logo me recordei da única vez em que estive no mesmo local. Foi no verão de 2014, ano da maior onda de calor de nossa história, quando a temperatura oscilou por dias a fio entre trinta e cinco e quarenta e um graus, num terror aparentemente infindável que só viria a ser sepultado depois de quase trinta dias. Quem dera fosse o calor seco de um deserto, mas, ao contrário, era um sufocante e opressor calor úmido importado do Chaco que fez a sensação térmica tocar os cinquenta graus nos dias mais bizarros. 

          Na visita de então tive o mesmo impacto termo-estético: pilhas de eletroeletrônicos, poeira, calor irradiando da calçada e do asfalto para dentro do estabelecimento, solzinho maravilhoso piorando a situação. Não acreditava que um local assim poderia existir, menos ainda que alguém pudesse ganhar e a vida nessas condições. Descobri que existiam homens de aço, e aço incapaz de derreter

          Hoje, ao menos, não estava tão quente nem tão úmido quanto o terror de mais de sete anos atrás. Mas para mim pouco importa: trinta e quatro ou quarenta graus, a diferença é entre ser torturado com um choque ou com pauladas nas costas. Meu lema nessa época do ano continua o mesmo: se você não tem ar-condicionado, fuja para a praia ou para as montanhas. Lá ao menos o ar é mais fresquinho.          

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Quando a ideologia enlouquece as pessoas

 

          Há poucas semanas li um chocante trecho da obra O fim do homem soviético, da laureada escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, onde um entrevistado confessa ter denunciado o tio para os bolcheviques quando adolescente ainda no período da Revolução Russa. O homem bastante idoso era um comunista irredutível. Não pude deixar de pensar como a ideologia pode enlouquecer uma pessoa.

          A primeira vez que associei conscientemente loucura com ideologia foi a publicação de uma postagem do empreendedor Ícaro de Carvalho no Facebook sobre as complicações que Daniel Fraga, um dos pioneiros da divulgação do bitcoin no Brasil, teve com a justiça. Segundo Ícaro, Fraga, um adepto do libertarianismo, defendia ideias totalmente sem cabimento e foi processado por xingar políticos e juízes na internet sendo condenado a pagar uma multa. E o que Fraga fez? Colocou todas as suas riquezas em criptomoedas e desapareceu comprando um briga contra seu declarado inimigo, o Estado.

          Ícaro sentencia: "Tanto o esquerdista quanto o libertário, ao longo do tempo, passam a enxergar inimigos em todos os lados; cada esquina existe algo que quer só te fazer mal... e isso destrói a sua cabeça." A diferença é que os esquerdistas causam muito mais estragos a si e aos outros do que os libertários, pois sua história de erros é bem mais extensa e seus adeptos bem mais numerosos do que o os últimos.

          A ideologia não busca explicar a realidade, mas adaptá-la às suas premissas, moldar o redondo à sua forma quadrada. É o que afirma a filósofa Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo. Em sua face mais extrema, ela tudo subjuga invertendo a lógica do tempo ao reler o passado conforme sua lente presente e definir o futuro como algo superior à Providência. São nesses casos que princípios abstratos como "igualdade", "revolução", "liberdade" ou seja lá o que a ideologia em questão enuncie, estão acima das coisas concretas ou, pior ainda, das pessoas, as mesmas que você encontra ao seu lado ao se virar na cama depois de uma noite bem dormida.

          Svetlana entrevistou Ivan Petróvich N., então membro do Partido Comunista desde 1922. O velho homem passou a totalidade da história soviética - a União foi criada oficialmente naquele ano - até os anos 1990 como comunista convicto, mesmo após ter sido preso arbitrariamente pela NKVD de Stálin no final dos anos 1930 após delação de um vizinho, ter também sua mulher presa, ficar numa solitária por um mês, testemunhar diversas prisões arbitrárias e tomar conhecimento diversas torturas e execuções.

          Constrangido pela consciência ardente, Ivan relatou a mais dolorosa de suas lembranças depois que a escritora que o entrevistava desligou o gravador.

          "Sem gravador... Que bom... Eu preciso contar isto para alguém...

          Eu tinha quinze anos. Os soldados vermelhos chegaram na nossa aldeia. Montados. Bêbados. Era o destacamento de aprovisionamento. Dormiram o dia inteiro e à noite reuniram todos os membros do Konsomol. O comandante discursou: 'O Exército Vermelho está faminto. Lênin está faminto. E os kulaks escondem o trigo. Colocam fogo'. Eu sabia que o irmão de minha mãe... o tio Semion, tinha levado para a floresta uns sacos de grão e enterrado. Eu era do Konsomol. Tinha feito o juramento. De madrugada, fui até o destacamento e levei todos eles até aquele lugar. Eles encheram um carro inteiro. O comandante apertou a minha mão: 'Cresça depressa, irmão'. De manhã, eu acordei com os gritos da minha mãe: 'A casa do Semion está pegando fogo!'. O tio Semion foi encontrado na floresta... ele foi feito em pedaços pelos sabres dos soldados vermelhos... Eu tinha quinze anos. O Exército Vermelho está faminto... Lênin... Tinha medo de sair na rua. Fiquei em casa, chorando. Minha mãe adivinhou tudo. De madrugada, ela colocou uma trouxinha nas minhas mãos: 'Vá embora, filhinho! Que Deus perdoe você, seu infeliz'. (Cobre os olhos com a mão. Mas meu mesmo assim vejo que ele está chorando.)

          Quero morrer como comunista. É meu último desejo..."

          Levada como princípio de todas as coisas, a ideologia não só enlouquece, como destrói a vida. É a negação da Verdade e por isso mesmo a realização da morte.

Dia 26 de outubro de 2021

 

          Final de outubro, primavera, céu completamente azul. A pouco menos de dois meses do solstício de verão o sol brilha inclemente sobre a latitude trinta graus sul. Em termos de Brasil, onde grande parte do território está na zona tropical da Terra, estar nessa faixa é uma exceção, o sol é menos intenso em grande parte do ano em comparação às praias do Nordeste ou à vastidão do cerrado. Mas é possível notar claramente a força da radiação que desce sobre nossas cabeças. Bastam cinco minutos sob o sol do final da manhã para notarmos a condição de pré-assado de uma pessoa, que possivelmente mostrará em sua feição o quão desagradável é estar nessa situação, principalmente se sob algum tipo de obrigação.

          Esse relato se torna mais trágico ainda quando quem o divulga é alguém que não só gosta do inverno mas que nos últimos anos pegou aversão ao verão, tanto pelos efeitos físicos que provoca sobre o corpo e a mente quanto pela "cultura" da época, uma mistura de loucura com arruaça, desrespeito e música ruim. Quando vejo o céu absolutamente limpo nesta extensa faixa de tempo que cobre o período de outubro a meados de março a primeira palavra que vem à minha cabeça é um palavrão, salvo os poucos momentos em que, mesmo estando ao nível do mar, a temperatura não ousa passar dos vinte e cinco graus. E também quando não sou obrigado a ficar ao ar livre mais do que cinco minutos.

          A radiação inclemente do astro-rei é ainda pior nos locais de serra, onde a atmosfera menos espessa permite a radiação solar chegar à superfície com mais força. Mas radiação por radiação, basta uma boa sombra ou algumas nuvens para notar que essa mesma camada de ar mais fina permite que o calor emanado da superfície se retenha em menor intensidade deixando o ar mais fresco mesmo com a luz na voltagem máxima. Eu, que acompanho as condições do tempo na região onde moro, invejo os dias frescos e mesmos frios da primavera nas cidades que estão no local que forçosamente chamamos de "serra"- diga isso a um europeu e ele dará risada de nossas montanhas, miúdas perto dos Alpes.

          Não posso deixar de notar, porém, que esse sol na cabeça não é de todo mal. Luz é vida, tanto que o próprio Deus é associado à luz, esse enigmático elemento da natureza que permite a tudo definir e reluzir frente aos nossos olhos exatamente como fez o Criador com sua Criação. Se a primavera traz a radiação inclemente, ela traz também a renovação, que explode em energia na época mais quente do ano até amortecer sua força e hibernar na metade do ano seguinte.

          Como brasileiro sou muito feliz em poder testemunhar esse ciclo natural. Desgraça minha seria estar numa região onde o sol se faz inclemente todas as épocas do ano, seja no verão, por vezes aliviado pela estação chuvosa da região tropical, seja no inverno, época maldita onde todos os dias são igualmente radioativos e secos numa monotonia opressora capaz de deprimir um amante do frio só com a expectativa de sua chegada. 

          Apesar de abominar este sol na cabeça, vivo como o canadense da costa da Colúmbia Britânica ou o russo junto ao Mar Negro. Sou exceção. Não me peça para ficar na expectativa do "vem verão" ou me alegrar com o carnaval. Fico na expectativa da época que vem e que passa. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Dia 24 de outubro de 2021

          Há tempo não participava de um encontro de família. Domingo, dia de tempo bom e temperatura muito agradável, algumas pessoas, todas elas conhecidas, receberam uma moradora expatriada para o outro hemisfério da Terra. Estávamos em um pequeno salão de festas encravado nos fundos de um pequeno condomínio. Um refúgio que apenas olhares um pouco atentos poderiam notar.

          Havia pouca luz natural, e mesmo com amplas janelas do lado do sol que descia ao oeste, o grande e novo edifício vizinho fazia sombra no salão. No lado oposto, a leste, quatro janelas davam acesso ao corredor de pedestres que, se estendendo da entrada do condomínio até o fundo do comprido terreno, tinha parte de sua extensão coberta pelos apartamentos e outra parte com vista ao céu por entre tijolos avermelhados. Ao norte, apenas uma parede com uma uma mesa e sobre ela a comida da tarde, como pizza de sardinha - delícia, há tempo não me deparava com uma -, cuca, cachorrinhos e algumas bebidas, e do outro lado, ao sul, a porta de entrada do salão, através da qual era possível ver a escada que dava acesso aos andares acima.

          Notava que a parede que nos separava do corredor parecia ter um revestimento de madeira e em alguns momentos prendia minha atenção. Bati no material, como alguém que bate levemente em uma porta, que parecia estar oco. Bati noutra porção do lado oposto da coluna de concreto, mas o som confirmava a solidez do objeto. A fugaz curiosidade da estrutura interna da parede mostrava que havia, sim, um ponto oco, questão que não valia à pena a atenção, senão sua textura e cor.

          A madeira tem uma capacidade de nos remeter a uma residência, um lar, local de convívio entre pessoas e membros da família. É ela mesma parte da vida, extraída de um ser que doou um pouco de si - não necessariamente de forma consensual, claro - para acolher outros seres que se doam uns aos outros. Um material perfeito para se sentir o aconchego de um ambiente discreto e privado.

          Por outro lado, o salão tinha o paradoxo de ter seu único período de sol coberto por um edifício com aquelas linhas retilíneas típicas da arquitetura moderna, fazendo o local perder boa parte de sua luz natural. Mas estar ali, debaixo de dois andares de tijolos avermelhados e escondido detrás de um monstro de concreto, não parecia ser algo tão ruim assim. Pouca luz, poucas janelas vizinhas capazes de notarem o murmúrio e as risadas das conversas em família, pouco som das raras pessoas que transitavam pelo corredor ao lado, algumas camadas de tijolos entre a mesa coberta com bebidas, doces e salgados e os moradores acima e ao lado e muitos metros da distante rua onde alguns automóveis deslizavam sobre o asfalto novinho. O salão, que era de festas, também era ideal para ler um livro, relaxar ou dormir.

          Em dado momento de aperto, pedi a chave ao meu primo morador do local e subi ao apartamento, onde também satisfiz minha curiosidade visual após anos de ausência. Ao entrar na sala, deparei-me com um dos presentes assistindo a um jogo de futebol deitado no sofá, um tablet à sua frente e com a cabeça mais para lá do que para cá, como denunciavam as pálpebras que oscilavam entre uma débil atenção ao jogo e um fechamento da consciência para o inexplorado mundo interior. Ambiente escuro, janela quase totalmente fechada e ainda o edifício com sua imponente sombra do lado de fora. Madeira e tijolos em muitos detalhes e, finalmente, o pequeno banheiro, alvo de minha rápida visita. Ao lado esquerdo do vaso acima de quem está em suas necessidades - não era meu caso - havia uma janela de vidro fosco com molde em madeira dividida em duas porções, uma delas aberta com uma estreita vista para o vão livre do corredor. Olhei celeremente para fora e pensei: ninguém jamais imaginaria que eu poderia espionar os transeuntes daqui. Me sentia como se estivesse em um esconderijo com acesso exclusivo para mim, meu local secreto com vistas para o mundo, o pequeno mundo dos vizinhos desconhecidos e das luzes refletidas nas paredes

          Se estivesse de posse do apartamento ou do salão teria a oportunidade diária de gozar da privacidade e da reclusão tão caros aos leitores e estudiosos e do aconchego ideal para noites frias ou de chuva - já que raramente poderia contar com a neve em minha cidade. Me sentiria em casa ou, na pior das hipóteses, no local perfeito para um trabalho perfeito.

          Não cheguei a ponderar se moraria em local como esse, que exigira uma mudança radical de rotina. É difícil sintetizar a complexidade de uma vida cotidiana numa equação simplificada em tão pouco tempo. Mas certamente teria momentos de felicidade se pudesse mergulhar num espaço onde o mundo exterior fosse suspenso por algumas horas e estivesse protegido das loucuras alheias. Seria possível realizar, quem sabe, um pouco da felicidade que, para mim, sustentam-se em momentos de paz duradoura. Um monasticismo urbano voltado às atividades do mundo.

          Findo o encontro, voltei para casa já com minha cidade mergulhada na metade escura do mundo. Mas foi comigo a lembrança, há tempos hibernada em minha memória, de um desejo juvenil de ter um local só para mim onde pudesse ter uma vida à parte do constante transição das coisas, onde o tempo pudesse ser suspenso para que eu pudesse ser eu. 

          Às vezes temos esta nostalgia de sangue, queremos reproduzir nas coisas da vida o aconchego uterino, como se fora de nosso ambiente ideal tudo fosse um parto. Mas a vida é isso mesmo: um parto.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Dia 20 de outubro de 2021

          A pior que pode acontecer para quem está frustrado com as coisas em geral e principalmente sua vida particular é julgar que o mundo é uma merda. Nesse cenário desestimulante para o bem e estimulante para a morte ou a revolução, para que ter um plano de vida? Para que ser bom? Enfim, para que viver?

          A desesperança é um veneno que mancha o olhar sobre o mundo. No fundo, a desesperança não é o resultado de um mundo mau, mas um escurecimento da alma, elemento que mancha, ao gosto do diabo, a visão sobre o mundo como se este fosse mau. Não por acaso a Divina Comédia, de Dante Alighieri, apresenta na porta de entrada do inferno a seguinte inscrição: "Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança". Quem desesperançado é acaba por perder a fé.

          Mas como o mundo é essencialmente bom, sobre ele também brota a virtude, e seu cultivo é o melhor combate ao escotoma diabólico que nos cega à bondade do mundo. Não basta ser apenas bom, temos de querer se bom para provar, ante si e em consonância com o mundo ao redor, que a esperança não só existe como vive, se sustenta e cresce mediante um ato de decisão. É este o primeiro despertador da manhã, o real motivador para saltar da cama e começar mais um dia ordinário. Não fosse a esperança e já acordaríamos mortos. 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Dia 18 de outubro de 2021

 

          Uma coisa aprendi no Facebook: sempre, sempre, sempre e sempre que uma pessoa vem lhe atacar no seu próprio perfil, é você que vai se dar mal caso resolva tentar engatar uma conversa diplomática ou colocar panos quentes. No final da contas, você será o ofendido e ainda parecerá culpado perante os outros, que lhe julgarão ser o vilão, acabando você mesmo por pagar a conta de toda a confusão, desde a irritação à perda de "amizades". Sei disso por experiência própria.

          As redes sociais têm esse problema por duas razões: primeiro, elas são uma arena pública onde diversos "espaços" se cruzam e se sobrepõem numa forma única, sendo eles extensões dos espaços reais. Por exemplo: dar opinião sobre política revela sua posição não apenas para os amigos, mas também para o chefe do trabalho. É como se você estivesse revelando o que você pensa ao mesmo tempo numa roda de amizade e no seu escritório e arcando as devidas consequências do ato.

          Segundo, a palavra escrita tem mais impacto do que a palavra falada. O que é escrito é pensado, e se alguém lhe ofende, salvo grande ignorância ou uma infeliz combinação de significados mal compreendidos, provavelmente é de caso pensado. Falar de cabeça quente é como correr contra o tempo para vomitar o que a adrenalina ansiosamente impulsiona para fora, mas escrever de cabeça quente é imprimir a raiva visualmente nas palavras, que necessitam de raciocínio para serem impressas e que não desaparecem na expansão de ondas invisíveis. É a figura que emana, para utilizar a linguagem moderninha, "energia negativa", é o signo que não deixa dúvidas quanto ao significado. Nesse caso, a coisa é mais séria.

          Esta materialização através de um texto pensado é o peso definitivo. Se alguém lhe critica no seu próprio espaço e lhe ofende, pormenorizar com essa conduta é sinal de que a agressividade tem permissão para perdurar chancelando para que outros que pensam assim façam o mesmo ou aprovem a conduta. Em outras palavras, você não apenas é ofendido como se torna público, deliberado e materializado o coro dos que lhe repudiam, transformando-o na vítima não apenas de uma, mas de muitas pessoas. O diálogo nessas condições equivale a luta no ringue na proporção de dez contra um, cuja vitória tem um final previsível.  

          Além de vítima, você ainda leva a culpa pela opressão no número, que se auto legitima pela simples quantidade numérica, e nenhum dos presentes no ringue virtual lhe verá na rua, esse espaço real composto por coisas substantivas, como o sujeito que foi assaltado e acabou com o olho roxo, mas como o filho da mãe que ousou dar uma opinião que foi interpretada como "ofensiva". Na vida real, você se torna pária, e seus "amigos" - ou mesmo sua família e colega profissionais - deixam de ser os mesmos de dois dias atrás. O virtual tem consequência muito mais reais ou duradouras do que se imagina.

          Não surpreende, portanto, que na era das tais redes sociais o rancor e a divisão tomem proporções nunca antes vistas, porque tanto o rancor quanto a divisão se tornam concretas impregnam todos os espaços reais que no mundo virtual estão sobrepostos simultaneamente. 

          Existem apenas dois remédios para isso: ou se abster de falar qualquer coisa que os jornalistas tacham, no alto de seu QI 12, de "polêmica", ou perdoar solenemente o próximo, esse pobre coitado que lhe aponta o dedo na cara ao mesmo tempo em que arrota "empatia" e "diversidade". Mas quem não opta pelo silêncio embasado desde o Artigo 5º da Constituição até o princípio do livre-arbítrio humano enunciado no Gênesis e não está disposto a tomar porrada de graça, existem dois recursos bastante diretos. Um é o firme desmascaramento público da pessoa que acredita que a discussão pública se dá na ponta do fuzil e que distância física lhe confere salvo-conduto para ataques sem consequências cara a cara; outro é uma simples ferramenta que ditadores sempre lançaram contra pessoas reais, mas que no ataque verbal não fere ninguém e ainda lhe dá um escudo invisível e eficaz contra ameaças à sua integridade e caráter: o bloqueio.