quarta-feira, 1 de julho de 2020

A traição dos intelectuais

(Julien Benda)

          A vida intelectual é uma vida de sinceridade. Uma pessoa insincera não pode exercer este ofício sem tropeçar em suas próprias pernas e bloquear a abertura interior necessária à leitura do real. Esta abertura, por excelência uma atitude de confiança, é condição prévia do conhecimento, uma postura de coragem em que a pessoa, o próprio agente que buscar saber, está integrado numa realidade da qual não pode escapar e que é seu próprio elemento de atenção.

          O intelectual que ofusca esta sinceridade trai seu ofício porque trai a si mesmo. Pior, corrompe moralmente a si e, por consequência, aqueles que o tomam por referência. 

          É exemplar o que intelectuais voltados à agitação política são capazes de fazer. O historiador Paul Johnson, na obra "Tempos Modernos", traz o exemplo deprimente de intelectuais que venderam sua alma pelo "ideal" do comunismo na URSS em meados dos anos 1930.

"A tentativa de intelectuais de defender o stalinismo os envolveu num processo de autocorrupção; transferiu para eles e, consequentemente, para seus países, ajudados pelos seus escritos, parte da decadência moral inerente ao próprio totalitarismo; em especial, a negação da responsabilidade individual, seja para o bem, seja para o mal."

          Talvez não fosse a intenção do autor, mas este trecho traz um exemplo bastante claro daquilo que o pensador francês Julien Benda chamou de "traição dos intelectuais", termo que dá nome ao seu livro mais famoso, um clássico escrito em 1927.

          No prefácio da edição publicada em 1946, Benda nomeia aqueles que seriam os principais valores da vida intelectual: justiça, verdade e razão. Estes valores possuem três características: são estáticos, ou seja, perenes e reconhecíveis em todas as épocas e lugares; são desinteressados, pois aqueles que os defendem não o fazem em nome de objetivos práticos ou pessoais; e, por fim, são valores racionais, isto é, defendidos por meios do exercício do pensamento e não pelas paixões mais diversas que surgem ao sabor das modas de época.

          Desta forma, justiça, verdade e razão são valores abstratos, universais e perenes, inerentes à condição humana. Benda afirma que "O intelectual, ao honrar essas constantes, honra as características mesmas da espécie humana, aquelas sem as quais não existe o homem". Aboli-los é amputar o homem, rebaixar sua dignidade e jogá-lo no sofrimento.  

          Mas, se os intelectuais traem estes valores básicos, traem em nome do quê? Estas traições, diz Benda, são principalmente aquelas realizadas em nome de causas com fins práticos, independente do vetor político a que se vinculem. Os intelectuais traem em nome da ordem, da evolução histórica e de valores outros como o engajamento político/social, o amor (no seu aspecto sentimental) e o relativismo.

          Não é difícil reconhecer nestes últimos o perfil dos movimentos políticos e ideológicos que corromperam e cobriram de sangue o século XX e o início do XXI: o fascismo, no aspecto da ordem, o comunismo, no aspecto da evolução histórica, e o relativismo, sem o qual os dois primeiros não teriam sido possíveis, legitimando e abrindo terreno para que estes matassem, no mínimo, 150 milhões de pessoas.

          Não por acaso, na obra de 1927, Benda vê no comunismo e principalmente no fascismo os movimentos no quais os intelectuais mais expuseram sua traição e, pior, a legitimavam por razões políticas, tal qual a citação de Johnson exposta acima. 

          Um ano depois, José Ortega y Gasset publicaria "A Rebelião das Massas", obra que apontava a ascensão da sociedade de massa como fruto inevitável do mundo moderno, cuja principal consequência era o rebaixamento da cultura e seu nivelamento ao gosto das populações ávidas a gozar de seus benefícios materiais por direito. 

          Não por coincidência, Ortega via no fascismo e no comunismo os movimentos que melhor refletiam esta nova ordem, pois prometiam o mundo ideal que a sociedade de massas desejava.

          O relativismo é a característica central da traição dos intelectuais exposto por Benda, pois para abdicar da justiça, da verdade e da razão, valores intelectuais extáticos e universais, é necessário relativizá-los, colocá-los num enquadramento que os tornem parciais e transitórios. Este é o pano de fundo sobre o qual se desenrola toda a obra de Paul Johnson e o fator principal dos horrores do totalitarismo e da guerra analisados no seu livro.

          Nos dias de hoje, a amputação de valores inerente à condição humana são as prerrogativas necessárias para atos anti-humanos mais silenciosos, mas não menos horrendos, como o aborto e a eutanásia, implementadas não sob a opressão ostensiva dos campos de concentração e de trabalho escravo, mas sob a aparente suavidade das leis democráticas.

          Por isto, quando ligamos a televisão e vemos versões unânimes sobre temas tão súbitos ou complexos como a crise do coronavírus, o "aquecimento global" ou a luta por "direitos reprodutivos", ou quando estamos numa sala de aula e vemos professores defenderem aberta ou sutilmente agendas políticas e ideológicas, não estamos na frente de intelectuais (menos ainda quando se trata de formadores de opinião da mídia), mas de traidores daquilo que se propõem ser, intérpretes do mundo.

          O pesadelo de Benda tornou-se a regra do século XXI, fruto direto do século XX, onde a traição dos intelectuais insiste, por meio da televisão, da internet e das universidades, em transformar as massas em suas aliadas na revolta contra a realidade e na destruição da dignidade humana.

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