terça-feira, 27 de junho de 2017

Você existe? Agradeça também a Nossa Senhora

(A Anunciação, pintura de Leonardo da Vinci, 1472-1475.) 

          Nesta semana fiz duas postagens no meu Facebook que gostaria de colocar aqui porque são complementares. 

          "A aceitação de Maria à oferta transmitida pelo arcanjo Gabriel de conceber Jesus é um ponto de partida na salvação de nossas almas e um momento decisivo na História mundial. Ponto de partida da salvação porque com a vinda de Jesus são resgatadas as almas da mansão dos mortos e estabelecida a via de salvação às pessoas de sua época e das épocas futuras (inclusive eu, você e todos nós); momento decisivo na História mundial porque da vida e do legado Jesus surgiu o cristianismo, que serviu de base de civilizações inteiras principalmente na América, Europa e no mundo eslavo. Nossa Senhora é como a chave que ao girar liga o motor de um carro: sem Ela não haveria viagem, não haveria futuro, não haveria vida. Deus, claro, poderia ter um plano B caso Nossa Senhora dissesse "não" ao arcanjo, mas neste plano nós muito provavelmente não estaríamos aqui. Nossa gratidão a Ela deve ser profunda e eterna."
          "Na hipótese de que Nossa Senhora tivesse recusado a oferta do arcanjo Gabriel e Deus não tivesse um plano B, nós definitivamente não existiríamos. A questão é simples: Deus não colocaria Seus filhos num mundo em que não houvesse uma via de salvação, condenando automaticamente todos ao inferno. Isto seria totalmente contrário ao amor divino, que é infinito e busca todas as formas possíveis de união com os seres que criou. Se tivéssemos de ser criados para sermos condenados, Deus simplesmente não nos criaria, do contrário entraria em contradição Consigo mesmo. Por definição, Deus é unidade, é harmonia, é coerência. Ele não pode ser auto-contraditório, o que faria Dele um deus falso, um deus que mente ao dizer que é amor. Se estamos aqui é porque podemos estar com Ele um dia, e o sim de Nossa Senhora foi o que permitiu a vinda de Jesus Cristo, por isso, a possibilidade um dia O encontrarmos. Agradeça também a Ela por sua vida."

          O papel de Nossa Senhora em nossa vida é, antes de tudo, o de permitir que viéssemos ao mundo. Ela poderia ter bloqueado os planos de Deus, que teria de buscar alternativas e, portanto, alterar o curso da História humana para que não se perdesse Seu plano de salvação da humanidade.

          A mente divina é insondável, e Seus propósitos são conhecidos apenas com a descoberta do sentido dos acontecimentos em nossa vida. Portanto é impossível saber se nós realmente estaríamos aqui caso Deus tivesse um plano B após um "não" de Nossa Senhora à oferta do arcanjo. De qualquer forma, Ele quis que Seu plano passasse por Ela. Deus fez de Maria a pessoa que permitiu que viéssemos ao mundo dentro do plano que Ele traçou para nós. A Deus devemos nossa vida, e a Ela também.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

O Papa não é pop


          Em maio do ano passado publiquei no Facebook a notícia sobre uma declaração do Papa Francisco onde ele lançava uma crítica às pessoas que ajudam animais mas são indiferentes ao sofrimento alheio: "Quantas vezes vemos pessoas que cuidam de gatos e cães e depois deixam sem ajuda o vizinho que passa fome? Não se pode confundir com a compaixão pelos animais, que exagera no interesse para com eles, enquanto fica indiferente perante o sofrimento do próximo”, disse. Seu foco era a distinção entre a verdadeira caridade e a comiseração, um sentimentalismo superficial que expõe uma caridade falsa. O exemplo dado pelo Papa recebeu minha aprovação explícita com a alcunha "Boa, Santo Padre!"

          A declaração teve grande repercussão na imprensa e despertou a fúria de muita gente (o que já era esperado por seu conteúdo).

          Algum tempo depois da minha publicação, uma "amiga" fez duas grandes postagem no meu perfil começando com a palavra "lamentável", dizendo que o trabalho de ajuda a animais que realizava não a obrigava a ajudar pessoas e que já fora muito julgada por este tipo de crítica, que afirmava ser um falso dilema. Mas sua crítica estava errada. Francisco não condenou as pessoas e sim deu um exemplo para diferenciar caridade de comiseração, e ainda assim este exemplo não consistia no falso dilema. 

          O que chamou minha atenção, porém, foi uma postagem noutro perfil: ela demonstrava decepção pelo Papa e dizia não ter mais a mesma admiração que antes tinha por ele.

          Imediatamente surgiram algumas perguntas em minha cabeça: que admiração é esta por um líder religioso que é desmontada por uma simples declaração? Por que uma pessoa reagiria desta forma por uma declaração sobre conduta e que não tinha alvo específico, não atentava contra qualquer pessoa? O Papa precisa de popularidade? Ele não pode desagradar às pessoas?

          Fiz o relato acima porque este foi um exemplo muito claro da forma como o Papa é tratado nos dias de hoje. Muita gente vê nele um homem simpático, simples, inovador, mente aberta, em sintonia com os tempos atuais e que vai revolucionar a Igreja. Já ouvi este comentário de muitas pessoas que são pouco ou nada religiosas. O mais interessante é que toda esta admiração não está baseada no fato de Francisco ser líder católico, mas por ser um homem simpático e do "nosso tempo", cujo contraste mais patente seria seu antecessor, Bento XVI, visto por muitos como pouco simpático e muito conservador (ou retrógrado, o que dá na mesma para muita gente). Ademais, a grande mídia têm apreço unânime pelo Papa, o que considero um enorme mistério, para não dizer muito estranho, dado que estes mesmo meios de comunicação sempre foram críticos da Igreja Católica e são grandes disseminadores de todo o tipo de valor e conduta contrária ao cristianismo. 

          Eu não acredito na sinceridade da grande mídia, bem como não acredito no apreço fugaz pela pessoa do Papa. Independente do conteúdo, as informações dos meios de comunicação sempre chegam amputadas e com inúmeras omissões, o que fica agravado quando o conteúdo é a Igreja, dado que a conduta dos religiosos é pautada pela discrição e é balizada pela orientação da fé, ao menos exteriormente. Alguns anos de caminhada depois de minha reconversão ao catolicismo permitiram ver que as pessoas não religiosas têm dificuldade de entender certar condutas das mais religiosas quando o tema é a própria religião. A fé é de grande valor para seus portadores e os temas que a envolvem (práticas rituais, moral, relacionamentos, sacralidade dos objetos, etc) exigem um tratamento mais cuidadoso e menos banal. As coisas, as pessoas e a vida de forma geral adquirem um valor e um sentido diferentes frequentemente mal compreendidos para quem vê de fora. Quanto à unanimidade dos grandes meios de comunicação, este ainda é um mistério que um dia pretendo desvendar.

(Francisco na capa da revista Rolling Stone em janeiro de 2014: o Papa em destaque num veículo de comunicação voltado à cultura pop.)

          Um líder religioso não merece admiração por ser do "nosso tempo", aberto ou moderno (nem mesmo por ser simples), mas por ser exemplo da mensagem que porta e, no caso da Igreja Católica, garantir sua guarda e guiamento tal qual Jesus Cristo fez em seu tempo. Ele tem de ser o Jesus de hoje, cuja mensagem provém da eternidade e abrange simultaneamente todas as épocas. Francisco realmente cativa as pessoas por seu exemplo, mas até que ponto este cativamento se mantém firme e forte perante decepções? E o mais importante: até que ponto este cativamento se transforma em fé verdadeira, independente de quem dirija a Igreja ou como se comporte o padre de nossa paróquia? A fé é um dom divino e portanto independe da conduta alheia ainda que posta à prova pelos maus exemplos ou o que se imagina serem os maus exemplos. Ela independente do que Francisco diga, faça ou deixe de fazer, independe mesmo que o Papa seja um criminoso. Independe mais ainda das modas e das manias do momento. 

          Se uma declaração de Francisco faz alguém perder a admiração por ele é porque esta admiração não tinha consistência alguma. Tem a consistência de uma moda passageira maleável segundo o noticiário das oito da noite. Para muitos cidadãos, o Papa será esquecido no momento que partir e ficará como uma agradável lembrança, uma nostalgia equivalente ao hit do verão passado. 

          Algumas semanas depois da minha postagem a "amiga" acabou com a "amizade" no Facebook. Parece que não é só a admiração que é fugaz nestes tempos de incerteza e confusão. As modas de hoje passarão, mas Francisco deixará o seu legado.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Doenças e remédios: as marcas de um tempo


          Nesta semana estive no aeroporto de Porto Alegre. Meu irmão e a cunhada estavam de viagem marcada para voltar à Londres. Alguns contratempos seguraram os dois por uma hora no check-in, enquanto eu, minha mãe, a mãe da cunhada e um amigo dela ficávamos conversando no saguão. Eu, como de costume, muito mais quieto do que tagarelo.

          O único estabelecimento comercial que realmente chama minha atenção quando estou disperso ou a passeio é uma livraria ou uma banca de revistas. Durante a conversa olhei para um canto do saguão do aeroporto onde havia uma grande banca, mas ela não estava mais lá. No lugar havia uma farmácia. Uma livraria nova, e bem menor, foi aberta ao lado num compartimento construído para este fim.

       Já tinha visto esta mudança há meses atrás, mas só agora percebi seu significado. Muito sugestivo que no lugar dos livros e revistas apareçam remédios. Muito ouvimos falar de doenças, pessoas doentes, sofrimentos devido à saúde, etc, e muitos testemunhos tenho recebido por parte de pessoas que têm parentes em sofrimentos ou mesmo em situações de risco de vida.

          Eu participo de um grupo de oração católico há nove anos, sendo cinco como membro ativo, cujo carisma é cura e libertação. Quando tratamos de cura, abrangemos as dimensões espiritual, mental e física, e é natural, portanto, que eu tome conhecimento de um grande número de pessoas que estejam fisicamente doentes. As doenças do corpo são as que mais chamam a atenção por serem visíveis: podemos ver claramente quando alguém está doente, ao passo que doenças mentais (psicológicas) e principalmente espirituais (noológicas) não saltam aos nossos olhos. Muitas doenças, conforme mostra a psicóloga Renate J. de Moraes, fundadora da Terapia de Integração Pessoal (TIP) através da técnica da Abordagem Direta do Inconsciente (ADI) e cujas ideias estão expostas no seu livro "As Chaves do Inconsciente", são de caráter noopsicosomáticas, ou seja, têm raíz espiritual, afetam o psicológico e, por fim, somatizam no corpo.

(O mencionado livro da Renate, falecida em 2013.)

          A quantidade e a gravidade das doenças de que temos notícias impressionam: todas as semanas há pelo menos um ou dois relatos de pessoas que realizam cirurgias e casos de câncer, doença grave mais recorrente. E pior: alguns casos são de crianças e adolescentes, sendo isto muito mais comum do que se imagina. Muitos dos pedidos de oração chegam por e-mail ao alcance de algumas centenas de pessoas. Como o grupo possui algo como pouco mais de cem membros, é de se esperar que alguns milhares tenham acesso a alguém que envie os pedidos. De qualquer forma, é evidente, por simples probabilidade, que muitos casos não cheguem ao conhecimento do grupo e não são orados. Além dos casos de doenças graves de que tomamos conhecimento, provavelmente há muitos outros que não são sequer divulgados por razões desconhecidas.

          No período em que lecionei em escolas, fui testemunha de alguns alunos que possuíam doenças graves ou que tomavam medicações pesadas. Recordo-me de um aluna que era doente desde nascimento, a quem tinha um carinho especial, quase como uma filha; em outro caso, atuando como professor particular, tive um aluna que tomava medicações para concentração e que alegava ter visões em casa, e numa das aulas ela estava visivelmente alterada por efeito da medicação; também conheci alguns alunos evidentemente depressivos em sala de aula e, como de costume, muitos carregavam graves problemas familiares e tomavam medicações. 

          Mesmo que este meu panorama seja impreciso, é assustador o sofrimento que há por trás dos rostos de muitas pessoas, sendo que algumas sequer têm idade para compreender a gravidade da situação em que vivem.

          Eu realizei anos de psicanálise e dois da TIP que mencionei acima. No meu grupo de oração tive um punhado de libertações, cujos efeitos podiam ser sentidos nas horas seguintes depois de recebê-la, inclusive no corpo. Mas um elemento chave para essa minha mudança de vida (um dia posso contar isso com mais calma) foi a aquisição de conhecimento pela leitura. Por aproximadamente oito anos li livros e artigos com a intenção quase exclusiva de encontrar respostas para mim e para o mundo. Foi através da leitura que me aproximei da Igreja Católica e tive minha reconversão, como demonstrei num texto anterior. Foi também o meio pelo qual busquei orientações em minha vida pessoal e capacidade de expressão para o que eu vivia e sentia. Foi a leitura, enfim, que me fez compreender a existência de uma coisa chamada realidade (os escritos de Olavo de Carvalho foram determinantes neste sentido) e que eu poderia, através de uma ação espiritual, agir sobre ela. Para mim não há dissociação entre fé e concretude, entre o espírito e o mundo. Ambos interagem num continuum e ampliam nossa liberdade de agir para nossa cura física, mental e espiritual, além de permitir alcançarmos nossa realização pessoal nas diversas dimensões da vida.

          É evidente que uma vida espiritual não é razão para o abandono da medicina moderna. Ambos caminham juntos, e medicações estão aí para isso. Mas é sugestivo que num tempo de enorme pressão, instabilidade e incerteza as pessoas abandonem um meio de cura para se voltarem aos avanços da medicina sem atentarem para a raíz dos problemas. É muito mais fácil (e também mais urgente) buscar soluções práticas do que trabalhar a vida pessoal e interior para arrancar as raízes profundas de nossos males pessoais. Por isso minha atenção ao fim da banca de revistas no aeroporto e sua substituição pele farmácia: eu tive nos livros um meio de me aproximar dos meus problemas e mistérios mais profundos. Daí para a vida espiritual, para a fé católica, para Deus, para a busca de uma paz verdadeira, foi um salto. O problema é que muita gente não tem mais tempo para isso, e num tempo marcado pela confusão e desorientação talvez nem saibam o que acontece com elas. O tempo urge, e a saúde e a paz não podem esperar.

domingo, 18 de junho de 2017

A disposição para o sacrifício como discernimento dos desejos: quando uma pessoa vale a pena


          Hoje muito pouco se entende a palavra "amor". O amor, é claro, não precisa de explicação e justificativa. Jesus Cristo pede que nos amemos uns aos outros, não que entendamos uns aos outros. O amor é a essência mesma dos nossos relacionamentos e permeia todas as relações possíveis entre pessoas e entre pessoas e coisas. É o pilar da vida social e particular.

          De qualquer forma, quando pensamos no amor logo temos em nossa mente a relação homem-mulher. Como se já não bastasse este imaginário estreito do amor, aquilo que a cultura pop e os meios de comunicação divulgam como amor não tem nada a ver com sua manifestação real e profunda, isto é, o desejo de união e entrega de um para o outro no matrimônio. Hoje é quase inevitável que num filme a cena seguinte do primeiro encontro de um casal apaixonado não se passe numa cama desarrumada.

          Eu absorvi muito desta imagem, que muito desejei. Pior: confundi as coisas, acreditando que certos sentimentos meus eram uma paixão verdadeira (falar em amor verdadeiro em poucas semanas é besteira, salvo casos excepcionais, creio eu) enquanto eram, na verdade, desejos profundos intensificados por sentimentos que, cedo ou tarde, acabavam ou não em paixões reais.

          Só há pouco tempo comecei a ver em mim que em muitos casos de atração por uma mulher o que tinha era um misto de desejo e carência: desejo por uma mulher que por diversas razões me atraía, carência pelo fato de eu ser um sujeito muito solitário. Mas quando via entre eu e a minha suposta pretendente uma porta aberta logo começava a pensar: será que estou realmente disposto a utilizar meu tempo com ela? Dar-lhe a atenção não só merecida mas necessária para iniciar uma relação? Ou quero apenas dar uns beijos, satisfazer meus desejos (não precisa que acabamos na cama, não, minha vida não é novela ou Hollywood), me sentir bem e alegre por uns dias? Ou será que quero simplesmente me sentir satisfeito por ter alguém? E será também que estou disposto a fazer certos sacrifícios práticos, emocionais e pessoais em nome deste pessoa?

          Na medida em que conseguia discernir entre o desejo e o sacrifício de pequenas coisas para a realização deste desejo comecei a ver quem eu simplesmente desejava ou se eu queria algo a mais. Não quer dizer, é claro, que ao buscar o "algo mais" numa mulher eu quisesse o casamento de imediato, mas ninguém chega ao altar ou a qualquer outro lugar sem dar os primeiros passos e perceber que, sim, vale a pena gastar um pouco de tempo, paciência, dinheiro e suportar pequenos incômodos por esta pessoa.

          Ortega y Gasset dizia que a vida é sacrifício, é dificuldade, é trabalho. Ele dizia isso ao analisar a figura do "homem-massa", o homem satisfeito com sua condição e incapaz de reconhecer o sacrifício devotado de seus antepassados pela vida confortável que tem. O mesmo vale para os relacionamentos, que são parte inseparável da vida. 

          O amor é sacrifício, é dificuldade, é trabalho, é a essência da sociedade e de nossa vida privada. Onde não há suor, não há amor verdadeiro. Hoje vejo os meus desejos como algo que ainda me causa frustração, mas não perda de tempo, dor de cabeça e sofrimento. Aprendi que esses são sinais claros de que a pessoa desejada não é para mim. Se antes da hora já é um problema, imagine no momento de dividir o mesmo teto. Não há desejo que valha tamanho sacrifício.

Nem doença, nem frustração, nem morte: meu medo perante a vida

 

          Há pouco mais de um ano comecei a me defrontar com a seguinte pergunta: do que eu tenho medo? Na verdade, antes de fazer esta pergunta, comecei a tomar consciência da resposta. Só depois vi que a pergunta deveria ser esta.
 
          Pois bem, não tenho medo de morrer, ficar doente, pobre, de ser agredido ou me frustrar com as pessoas. Tenho medo de chegar ao final da vida e ver que eu não fiz o que deveria ter feito. Medo de chegar lá no final da minha trajetória, quando o ciclo da vida se fecha e podemos enxergar o conjunto da obra tal qual observamos na eternidade, e ver que o que fiz não valeu à pena, ou que tomei e insisti no caminho errado de forma que não pude viver de forma plena.
 
          Esta última frase parece um tanto poética ou idealista, mas é isto mesmo: uma vida de erros para consigo mesmo é uma vida falsa, uma forçação de barra constante, cujo efeito é o sufocamento dos próprios dons, das próprias habilidades e o sentimento permanente de incompletude, de que aquilo que eu gostaria de ter feito com a plenitude de minhas forças não foi realizado. Porque pouco importa o que fazer: importa o quão verdadeiro foi este fazer, o quanto da alma foi impresso em cada ato. A ação verdadeira adquire sentido quanto voltada a um objetivo maior do que nós mesmos (Viktor Frankl chamou isto de autotranscedência), fazendo que cada passo, cada momento tenha um valor único justamente por estar voltado ao grande objetivo de vida cujo valor é incalculável. Muitas vezes penso na questão profissional, mas a profissão é um meio, não um fim em si; também penso na formação da família, mas será que ter uma família sem estar preparado é o que preciso para fechar meu ciclo de vida e dizer para mim mesmo: "É isso!"? Creio que não.
 
          Acredito que a concretização desta realização plena não está numa resposta. Esta resposta seria o caminhar, o ato cotidiano que revela, aos poucos, os caminhos a serem tomados. O mesmo diz Frankl quanto ao sentido da vida. Para ele não devemos pergunta o sentido da vida, mas é a vida que nos pergunta que sentido damos a ela. E dar sentido é responder a cada situação com cada ato novo, preenchendo-o com o valor que julgamos verdadeiro.
 
          Há o ditado que diz que "Deus ajuda quem cedo madruga". A providência ajuda quem caminha sempre adiante. Não é possível chegar realizado ao fim da vida sem antes levantar da cama para a busca deste fim. Não falo do trabalho, e sim da disposição de encarar o cotidiano de forma verdadeira, de ser você mesmo a cada instante. Me assusta a ideia de que posso um dia chegar no descanso eterno e ver que não fiz o que deveria ter feito, que não consegui ser eu mesmo em grande parte de minha vida. Aí não haverá nem mesmo descanso. Deus não quer amargurados no Paraíso.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

A fuga para o jardim, a fuga para a realidade

(Jardim das Oliveiras em Jerusalém)

Ontem, 14 de junho, assisti a "O Jardim das Aflições" no cinema, filme que explica brevemente a filosofia de Olavo de Carvalho e que tem como fundamento o livro de mesmo nome. Li este livro em 2005, e foi o que maior impacto causou em minha vida, sendo ele chave para a minha volta à Igreja Católica.

O filme é dividido em três partes. Mas o importante para texto é a segunda. Nela Olavo comenta a necessidade de traçarmos a origem das ideias e dos fatores sociais e pessoais que impactam nossa pessoa com a finalidade de exercitar nossa liberdade de consciência e descobrir quem originalmente somos. A ideia em destaque aí é uma passagem do livro "O Jardim das Aflições", e que Olavo discorre praticamente com as mesmas palavras no filme, em que o mundo de hoje é apresentado como uma construção excessivamente artificial. O mundo moderno nos sufoca com leis, regras, ambientes artificiais, poses, a necessidade de agraços, e assim por diante. Vale à pena transcrever esta ideia como está no livro, para mim um dos trechos mais marcantes da obra. Depois de discorrer sobre o que chama de "divinização do tempo" e os impactos da Revolução Francesa e do positivismo no Ocidente, Olavo de Carvalho continua:

"Mas deixaram lá, e cá, uma infinidade de marcas, entre as quais um inesgotável calendário cívico, que, celebrando as secretárias, os motoristas, as mães, os pais, os namorados e tutti quanti, oferecem duas vantagens indiscutíveis: fazem esquecer o calendário litúrgico da Igreja e fomentam os negócios. Na verdade mais que isto: fornecendo um Ersatz para a experiência religiosa do 'tempo qualificado' - épocas especiais em que o fluxo dos eventos muda ciclicamente de tonalidade, recordando o homem a relatividade do tempo e a imersão de tudo no eterno -, o calendário cívico ajuda a aprisionar a mente humana no tempo socioeconômico, no tempo administrativo, elevado ao estatuto de uma realidade metafísica. No quadro de uma organização social onde horários e rotinas, frutos da decisão humana, pesam sobre os homens com o peso de uma coerção física, não é de espantar que o empregado em férias, contemplando o mar e as montanhas, imagine sonhar, e que, ao retomar seu lugar na fila do relógio de ponto, sinta retornar à 'realidade'" (p. 208, 2ª ed.)   

Hoje, um dia depois de ter ido no cinema, o filme continua muito vivo na minha cabeça, resgatando em mim um pouco do efeito que o livro me provocara doze anos atrás.

Nesta tarde eu estive num parque lotado. O dia era de sol e a temperatura agradável. Procurei um local mais vazio e silencioso e me sentei no gramado. Havia feito orações desde que saí de casa, à pé, e me preparei para uma oração do terço (sim, faço isto num parque, e é ótimo). Logo que me acomodei e deitei no gramado. Com os ouvidos junto à relva, os sons à volta baixaram de volume e eu podia ouvir muito além das pessoas à volta. Sons de carros a centenas de metros, insetos, o burburinho da multidão ao fundo. Acima de mim havia apenas o céu azul com nuvens ralas, de tipo cirrus, que sinalizam tempo bom. Aos poucos fui invadido por um universo que estava "oculto", o mundo natural que estava abafado pela artificialidade do meio urbano e pelo peso da minha rotina enfadonha. Tomado pela contemplação, me sentei novamente e fechei os olhos para me concentrar na reza que viria. De coração, pedi para saber quem estava comigo. "Vi" Nossa Senhora com o título de Fátima (digo "vi" entre aspas porque não tenho o dom da visão). Em seguida pude "ver", quase que com os olhos, o Imaculado Coração acima Dela, num vermelho intenso com a cruz acima cravada e uma luz dourada iluminando a escuridão. A imagem era tão clara e tão real que quase pude ver com os olhos que vêem esta tela, e fui invadido por uma alegria e uma certeza incomuns. Foi um experiência dupla: o mundo natural à volta me apresentava uma realidade escondida pela artificialidade humana e funcionava como depositário das condições que permitiam o desabrochar da vida interior. Era com Nossa Senhora que eu conversava durante a caminhada até me fixar no gramado, mas foi só sob o mundo criado pelo próprio Deus que eu pude "ver" que Ela estava comigo. Havia gente demais, regras demais entre eu e meu coração, onde Deus habita.

(Capa da segunda edição do livro "O Jardim as Aflições", que dá nome ao filme. Para mim, o livro de Olavo de Carvalho foi como um despertar, recapitulado pelo filme.)

Este momento foi como um despertar, um sair do mundo "real" para o "oculto", enquanto que na verdade eu saía do falso para o verdadeiro. Meu sentimento era de paz, certeza e ânimo, ânimo este que eu buscava durante as orações da caminhada. Foi na fuga do mundo excessivamente humano que encontrei motivação e resposta: o foco num Coração que acolheu tudo o que eu dizia e o ânimo gerado por este acolhimento. Foi na fuga para um jardim (neste caso também literal), que encontrei resposta e paz para meu coração aflito. Passei algum tempo ali, sentado, na oração do terço, mais motivado para tocar adiante meu projetos pessoais e, dentre outras coisas, descrever esta experiência neste texto.

Nossa vida é tão falsificada por obstáculos e convenções modernas que perdemos completamente o mundo que nos cerca. No jardim das aflições não basta administrar a aflição, não basta a fuga mediante novos ornamentos no jardim. Assim como Jesus Cristo sofreu angustiado nas oliveiras sentindo-se só antes da Sua condenação, assim é nossa vida, cuja solidão é abafada pela artificialidade e poses de uma vida falsa. Não há vida interior sem o reconhecimento desta condição, sem saber que habitamos o mesmo jardim que Deus habita. Nem inteligência verdadeira, nem verdadeira paz, nem verdadeira liberdade.