terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A crença em Deus: por que nunca me tornei um marxista


Em 1999 ingressei na faculdade de Geografia da UFRGS. Como muitas outras pessoas que conheci, foi lá que entrei em contato com a política, de esquerda, claro, que é o espectro quase hegemônico no meio universitário. Meu interesse pelo tema surgira pouco tempo antes, nas eleições presidenciais de 1998.

A mentalidade não era meramente de esquerda, e sim especificamente marxista. Nas discussões e estudos em aula, que variavam da epistemologia da ciência à geografia econômica, o marxismo era a visão mais comum, bem como a preferência política de parte dos colegas (pelo menos os mais ativos, já que muitos apenas consentiam com essas preferências ou não se envolviam publicamente nas discussões). Com o passar do tempo, fui me moldando às mesmas opiniões correntes, não por convicção real a elas, mas no fundo pela necessidade de integrar-me à turma.

Sempre fui meio excêntrico em sala de aula. Primeiro porque fazia o estereótipo do burguês, dada minha condição de vida, e sempre fui muito imaturo e, confesso, de comportamento por vezes inconveniente. Mas nunca abracei totalmente o marxismo. Primeiro porque eu não era o tipo social, propagado pelo chamado "marxismo vulgar", do proletário, do pobre, das classes dominadas. Eu estava do outro lado, vivia num bairro nobre ao lado de um shopping center. Como poderia eu ter a consciência de classe que só era possível em meio à classe a qual eu não pertencia? O máximo que consegui foi declarar-me socialista e anticapitalista, sempre de forma forçosa ou ilusória, e numa ocasião estive numa reunião do PCdoB (sim, cometi este disparate) onde minha única intervenção na discussão versou sobre... o livre-arbítrio. De fato não era o meu lugar.

(Por muito tempo nunca soube dizer porque, mas sempre tomei como absurda a ideia de que tudo o que existe é determinado pelas forças materiais, inclusive o comportamento humano.)

Mas a minha grande resistência ao marxismo não estava na minha condição social em conflito com seu discurso. Estava na minha crença em Deus. Era comum eu mencionar Deus em sala de aula e mesmo em alguns trabalhos, e me tornava excêntrico por isto também (certamente muitos colegas compartilhavam da mesma crença, mas não expunham isto em público). Era estranho que eu reunisse ao mesmo tempo a condição de membro da burguesia (segundo seu estereótipo) e a preferência pelo marxismo, mas era insuportável que a vida se resumisse ao materialismo. Quando lia os textos que explicavam a emergência da consciência humana a partir das questões socioeconômicas o que eu via não era uma explicação dos fatos, e sim o fechamento de toda a dimensão existencial no processo histórico materialista. Meu sentimento não era de desconforto. Era de loucura. Jamais aceitei que a vida se resumisse à dimensão material. O processo histórico contido na dialética materialista soava completamente absurdo. Eu não era uma simples peça numa engrenagem muito maior, e sabia disso. Minha grande resistência estava na incompatibilidade entre a cosmovisão materialista e minha dimensão interior, não material e insondável por excelência. Refletia sobre o tema com frequência e me perguntava: seria a minha vida familiar um jogo das forças econômicas? Meu pai e minha mãe são meu pai e minha mãe única e exclusivamente devido ao sistema, ou seja, não me amam? Estão ali por interesse de classe? E meus pensamentos, vêm de onde? Seriam eles uma ilusão abstrata criada pela química cerebral, e esta submetida (sabe-se lá como) à minha condição socioeconômica? Sendo assim, qual era a relação entre as forças econômicas com meu corpo físico e meu cérebro? E como poderia a matéria gerar abstrações? Eu tinha que ser completamente louco para abraçar isto, e dada a minha personalidade eu teria de mergulhar fundo na "mística" marxista. E esta mística é loucura. Não me dedico a nada que não seja de coração: ou eu seria marxista verdadeiro, com todas as convicções que este pensamento exige, ou teria de buscar outro caminho

(Olavo de Carvalho em sua casa na Virgína, EUA.)

Comecei a sair deste imbróglio no ano 2000. Tudo começou quando eu estava numa academia de musculação no clube da Sogipa aquecendo na bicicleta ergométrica e conversando com um de meus colegas de faculdade que também frequentava o local.  Na ocasião ele me indicou a leitura de um colunista da revista Época. Me mostrou a revista e apontou para o texto. "Leia esse cara", disse mais ou menos com essas palavras. O nome dele era Olavo de Carvalho. O mais curioso é que o texto do Olavo falava justamente sobre o marxismo, e no canto inferior esquerdo da página havia uma imagem de Karl Marx portando uma vistosa flor. Ambos eram referências da hipocrisia marxista: os críticos do capital seriam os seus adoradores mais apaixonados. Passou um tempo para que eu começasse a ler suas colunas no jornal Zero Hora, e o que mais chamou minha atenção nos primeiros textos foram suas análises críticas do ensino universitário brasileiro dominado pelos marxistas. Havia muito de verdade ali. O que eu lia do Olavo eu via no dia-a-dia, e desde então passei a ser seu assíduo leitor.

A maior prova de que Olavo estava certo na sua crítica veio em 2003, quando escrevi meu trabalho de conclusão. Eu quis utilizar seus artigos como parte da discussão, mas meu orientador o censurou. Duas vezes. Não me recordo da primeira rejeição, apenas que ele justificou sua atitude de maneira formal, mas quando insisti em usa-lo na monografia meu orientador o proibiu definitivamente e justificou dizendo que o Olavo fazia seu trabalho "por dinheiro". Ó raios, se ele quisesse dinheiro não seria melhor que ele abrisse uma padaria ao invés de ser filósofo? Na época eu não percebi a estupidez do argumento, mas a atitude do orientador era a encarnação daquilo que Olavo criticava na academia. Poucas vezes o jargão "Olavo tem razão" foi tão verdadeiro como naquela ocasião.

Há inúmeros relatos de pessoas que abandonaram o marxismo e as ideias da esquerda por influência do Olavo de Carvalho. Outras se converteram ou retornaram ao catolicismo. Este foi meu caso. Olavo é um dos principais responsáveis pelo meu retorno à Igreja Católica, que ocorreu em 2008, graças aos seus trabalhos e estudos sobre o que chamamos de "religião". Desde então voltei a frequentar as missas e ingressei num grupo de oração, de onde nunca mais saí. Um dia contarei esta virada com calma.

Em meados de 2002 minha simpatia pelo marxismo foi embora definitivamente. Para nunca mais voltar.

p.s.: não me recordo exatamente o texto do Olavo de Carvalho que li em 2000. Está nesta lista.

domingo, 4 de dezembro de 2016

O desafio da solidão: por que não segui a vida religiosa

(Vida monástica: intimidade com Deus, solidão pessoal. Na foto o Mosteiro de Claraval, em Minas Gerais)

          Há não muito tempo atrás eu tinha dúvida vocacional: entrar ou não na vida religiosa. Caso entrasse, seria para a vida monástica.

          Em outro momento vou contar esta caminhada. Nunca vivi num mosteiro, nem planejei seriamente esta vida, mas hoje vejo que, caso tentasse, iria lidar com um problema que não posso vencer: a solidão.

          A vida religiosa não é de isolamento das pessoas: monges e monjas possuem uma vida em comunidade, trabalham juntos, dividem tarefas, estão sempre rodeados de pessoas que podem perfeitamente ser íntimas dentro, é claro, das limitações impostas pelo superior ou a Regra de São Bento. 

          Os religiosos são muito ativos e geralmente muito alegres. Mas o religioso não tem alguém ao seu lado com o qual possa compartilhar uma vida, muito menos um toque. O religioso é só porque apenas estando só é possível falar a Deus, e esta solidão, que depende muito mais de uma atitude interior, é reforçada pela solidão pessoal, pelo tempo necessário para recolher-se interiormente. Ademais, o religioso é casado com a Igreja: as mulheres com Jesus, os homens com Nossa Senhora. É, sim, um casamento, e muito mais profundo do que o casamento entre duas pessoas comuns. A união é consumada com pessoas perfeitas e que jamais te trairão. Neste sentido, a traição do religioso para com sua união é mais grave do que num casamento a dois.

          Eu não apenas sentiria a solidão pela falta de intimidade a dois como ficaria muito limitado na minha necessidade de expressão. Sempre que fico muito tempo sozinho (e confesso que tenho essa tendência) me deprimo. E muito. Gosto de pessoas, luz, um pouco de sol, a liberdade de estar em certos lugares, com certas pessoas e em certas situações; de ver a mudança no tempo, os ares das estações, de observar detalhes do cotidiano. As distrações me fazem muito mais bem do que eu mesmo imagino, e estas liberdades ficam severamente limitadas na vida religiosa. 

          Assim como o casamento com a Igreja, para o religioso o diálogo prioritário é com Deus. Ele é sua companhia, Ele é seu ouvido, Ele é seu "lugar". Claro, isto vale para as pessoas do mundo inteiro, mas o religioso mortifica-se de forma especial para que, com sua morte, brote o Deus que ele busca. "Não sou eu mais que vivo, é Cristo que vive em mim", diz São Paulo, o Apóstolo.

          O desafio de estar no mundo é morrer para o mundo sem sair dele. Isto não é isolar-se do mundo, à exceção dos vocacionados para a vida religiosa. É para vivermos como se não estivéssemos nele. E se mesmo estando no mundo você não tem alguém para tocar ou um amigo para conversar? Não se preocupe. Seja paciente. Deus proverá.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Sem fronteiras, sem distâncias, sem nações: o vínculo que nos une através dos tempos

(Budapeste, arrasada ao fim da Segunda Guerra: efeitos de um conflito que afetam a humanidade inteira.)

Estou lendo o livro "O fim do Século XX", do historiador húngaro-americano John Lukacs. No capítulo "Entre dois Mundos", Lukacs inicia relatando seu retorno à Hungria 44 anos depois. Ele fora convidado, junto com seu amigo e sacerdote Béla Varga, a comparecer na sessão de abertura do Parlamento Húngaro em 2 de maio de 1990. Ambos eram amigos e parentes próximos de alguns membros do novo governo húngaro. Béla faria o discurso, e Lukacs, seu amigo famoso, iria junto acompanha-lo.  No relato segue-se o testemunho de um homem que, fugindo da opressão comunista, voltava à sua terra natal e refletia sobre sua vida nos EUA e seu passado na Europa. Daí os "dois mundos" de seu livro.

Imediatamente minha mente me projetou na mesma situação. E se fosse eu, e não Lukacs (ou Béla) a ter de falar em público num evento desta importância? E com alguma autoridade dada pelos acontecimentos? O que eu diria? Não pretendo detalhar aqui um discurso ou todo o meu pensamento, mas não foge à minha memória o pouco conhecimento de que tenho da matança que se abateu sobre a Europa na Segunda Guerra e a repressão comunista que veio em seguida.
 
(Edifício do Parlamento Húngaro, em Budapeste, onde passa parte do relato de John Lukacs.)

Logo me pus a pensar no universo de almas lançadas ao purgatório. Pelo menos 60 milhões na Guerra e 2 milhões dos regimes comunistas do Leste Europeu (nem falo da Rússia e da China, que jogam esta cifra aos cem). É um universo de almas a clamar por ajuda. Quando pedimos pela vida de alguém que se foi, anjos e santos de movem para resgata-las para um estágio superior, um estado da alma mais luminoso.

Cá eu com meus pensamentos: todos esses acontecimento históricos separam a todos nós. Fora um período de 1999 quando recebi em minha casa um húngaro de intercâmbio, muito provavelmente não vou conhecer na intimidade alguém que viva na Hungria, menos ainda seus antepassados. Assim será com a esmagadora maioria das pessoas da face da Terra.

(O plano da eternidade vincula todos de todos os lugares e todas as épocas.)

Mas na eternidade não há tempo, como não há lugar. Não há nação. Por isto mesmo nós, aqui no Brasil, não estamos magicamente imunes aos acontecimentos de outro continente. As almas que clamam nossa ajuda não são apenas as de nossos familiares: são os que pereceram na guerra e na repressão, nos hospitais de cidades distantes, nas cabanas do interior da Ásia. Todos nós, pela comunhão dos santos, estamos vinculados uns aos outros num plano onde não há distância. O Brasil está, sim, ligado a todos os que se foram. Eu e você também. E este clamor nos "pesa", nos faz responsáveis por aqueles que podemos ajudar, mesmo que com uma simples oração. Por isso mesmo quando alguém reza para Nossa Senhora Ela não se ausenta das almas que resgata, nem de outros que chamam Seu nome em outro lugar do mundo. Ela está, por graça divina, em todos estes lugares simultaneamente. Na eternidade não há lugar, distâncias ou fronteiras. Não há espaço, no sentido físico e geográfico: há apenas uma figura onde todos os lugares se apresentam de forma plena e simultânea. Nossa Senhora ouve minhas orações assim como aquelas que ressoam dos confins do universo ou das casas de Budapeste.

Fazemos parte da mesma História, plano único dividido pelas contingências do Cosmo e do mundo, mas unidos pela raiz criadora. Por isso mesmo somos responsáveis por todos os que aqui estão ou um dia estiveram. Estamos vinculados uns aos outros pelo amor divino e pela identidade única, a Pátria Celeste, a Casa do Pai. A História um dia passará. O amor de Deus jamais.

Dilema da leitura: saber os detalhes, compreender o conjunto


Confesso que tenho uma certa dificuldade com leitura. Sim, gosto muito de ler, mas o que eu mais gosto é do conhecimento. Saber, saber, saber e, acima de tudo, entender. Dito isto, enfrento um grave dilema nas leituras: ler corrido e compreender o conjunto ou ler devagar, riscando, sublinhando, e perder o conjunto.

Recentemente comecei a perceber que a leitura detalhada sublinhando muita coisa fragmenta o conjunto da obra. A leitura corrida é muito mais agradável e proveitosa. Ainda que percamos detalhes, temos o conteúdo, a estrutura e o pensamento do autor que passa a ser referência para compreendermos o assunto. O autor pode dizer um monte de bobagens, mas seu conteúdo será a baliza para o tema em discussão. E não importa se o autor está errado ou que não concorde com ele, você terá em mãos o exemplo do que considera errado. E por quê. Importante é ter referência no assunto, caso contrário você terá apenas opinião (não falo aqui de testemunhos pessoais, mas de temas que exigem estudo).

Por outro lado tenho a forte tendência de achar tudo importante. Na verdade, uma certa obsessão em não deixar escapar qualquer detalhe que seja. Tendo a sublinhar e destacar cada ideia em cada parágrafo. Isso pode até ajudar na erudição, mas o conhecimento torna-se fragmentado, e depois é difícil reintroduzir o mar de informações no conjunto da obra. Para resgatar o conjunto da obra seria necessário relê-la ou ao menos estudar alguns pontos-chave. Quando temos a obra em mente, fica mais fácil encontrar os detalhes, as referências menos importantes.  

Este é meio desafio de agora em diante: mergulhar no oceano das ideias, compreender o conjunto da obra e deixar brotar os detalhes como se estivessem sublinhados em minha mente. Compreender é mais simples do que saber. Quem tenta saber demais corre o risco de submergir a compreensão da realidade. E a própria sabedoria.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Falar do abortado. Para quê, não é?


Faço questão de reproduzir aqui um comentário sobre o aborto que coloquei no meu perfil no Facebook em 26 de outubro de 2011:

"O aborto é intrinsecamente absurdo já na hipótese. Todas as pessoas existentes, que existiram ou irão existir, passam pela condição da gestação. Quer dizer que TODOS, sem exceção, compartilham NECESSARIAMENTE de uma identidade comum, que foi a de ser concebido e viver no ventre materno. Ninguém pode escapar dessa marca indelével. A simples hipótese de considerar o aborto legal é colocar em dúvida a condição humana alheia, condição essa que não apresenta razão nenhuma para privilegiar quem defende esta monstruosidade. O aborto é anti-humano por excelência."

A pergunta é: qual é a razão para que os juízes do STF que liberaram esta prática até o terceiro mês de gestação têm para considerarem a si mesmos em condição humana diferente da dos fetos? Ou diferente da de todos nós? Não estiveram eles, um dia, exatamente na mesma situação cada um no seu momento? Ou será que eles, sendo adultos, desconsideram parte de sua própria história e, portanto, de sua própria identidade, já que todos nós, sem exceção, carregamos em nossas experiências como seres humanos os períodos iniciais de nossa vida no ventre materno?

O apoio à liberação do aborto sempre escamoteia a discussão sobre a existência ou não da vida humana na gestação. Sempre que eu li ou ouvi algo sobre o assunto este problema ficava em segundo plano e muitas vezes sequer era mencionado. O parecer do relator ministro Luís Roberto Barroso não foge desta regra. Diz o texto:

"É preciso reconhecer, porém, que o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo com o estágio de seu desenvolvimento na gestação. O grau de proteção constitucional ao feto é, assim, ampliado na medida em que a gestação avança e que o feto adquire viabilidade extrauterina, adquirindo progressivamente maior peso concreto."

Este é um pequeno trecho dentre dezessete páginas. Ademais, o texto é vago de por que até o terceiro mês. "Viabilidade extrauterina" não diz nada. Vale o mesmo para os que morrem por má gestação depois de nove meses? E por que não depois de nascer? O que prevalece são muitos outros direitos, principalmente a autonomia do corpo da mulher. Ela decide o que lhe aprouver até o terceiro mês de gestação. A questão da existência da vida humana não fica nem mesmo no segundo plano. Fica no enésimo.

Se alguém ignora ou determina arbitrariamente sua condição antes de nascer, que legisle única e exclusivamente sobre o próprio corpo, e não sobre o feto. E que falem por si mesmos. A começar pela Suprema Corte e os apoiadores da "causa".

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A História, os falsos profetas e o Evangelho do fim do mundo

(Cidade de Homs, na Síria, completamente arrasada pela guerra: mesmo que quisesse, o homem não poderia realizar o fim do mundo.)

Estamos acostumados a ouvir críticas sobre o fanatismo religioso que nivelam o cristão sincero e verdadeiro ao Estado Islâmico, a Al-Qaeda ou às seitas como a de Jim Jones, que levou ao suicídio quase mil pessoas na Guiana em 1979, todos sob o rótulo de "fundamentalismo". É evidente que por detrás disso há um preconceito antirreligioso, mais especificamente anticatólico e, com mais evidência no Brasil, anti-evangélico, ainda que este preconceito não seja deliberado e parta em sua maioria, penso eu, de pessoas que não atinam da gravidade da comparação.

Estes críticos esquecem (na verdade ignoram, porque falam do que não entendem) o alerta dado pelo próprio Jesus no Evangelho anunciado em 22 de novembro passado. Quando ouvi a passagem fiquei pessoalmente tocado, não só pelo anúncio de quem Jesus dizia ser, mas acima de tudo pelos acontecimentos do por vir. Eis a passagem, presente em Lucas 21, 5-11:

"Naquele tempo, algumas pessoas comentavam a respeito do Tempo que era enfeitado com belas pedras e com ofertas votativas. Jesus disse: 'Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.' Mas eles perguntaram: 'Mestre, quando acontecerá isto? E qual vai ser o sinal de que estas coisas estão para acontecer?' Jesus respondeu: 'Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome dizendo: 'Sou eu!' e ainda: 'O tempo está próximo'. Não sigais esta gente! Quando ouvirdes falar em guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim'. Jesus continuou: 'Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. Haverá grandes terremotos, fomes, pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu.'"

Jesus deixa claro: Ele é o único enviado, o único Filho de Deus, por mais que isso soe como fanatismo para os descrentes ou maluquice para os muçulmanos, para os quais seria absurdo que Allah, "o algo", se pudesse ser traduzido, encarnasse numa pessoa.

(Fila para comprar pão na URSS, em abril de 1991, nos últimos meses do regime comunista: por mais que se tentasse manter a normalidade era impossível controlar o que as pessoas decidiam fazer e, portanto, as consequências de seus atos. O regime caiu sete meses depois.)

O mais relevante, porém, é seu papel como Deus. Guerras, revoluções, mortandades, catástrofes naturais... a História continuará apesar de tudo isto. Jesus está declarando que é o Senhor decidirá quando ocorrerá o fim, já que Ele que está no comando do curso histórico. Por mais que o homem queira dirigir os acontecimentos em sua totalidade ou queira abortar os planos divinos, seus projetos são impossíveis de serem realizados. Primeiro porque determinar o curso histórico pressupõe-se o controle total sobre ele, e este controle total é materialmente impossível. Mesmo que o homem tivesse conhecimento o suficiente, os meios para realizar este novo mundo estão fora de alcance. Não há meios (nem nunca haverá) que possa determinar cada uma de nossas decisões diárias, desde o desejo de ter uma família ao propósito pela manhã de escovar os dentes. Há como impedir estes acontecimentos, mas não há como impedir que se deseje fazer isto. Um regime totalitário como o soviético, por exemplo, vivia sob uma capa de oficialidade que as pessoas sabiam que era irreal. O paraíso socialista contrastava com as longas filas para comprar pão nos seus últimos anos de existência. Com a queda do regime oficialmente ateu, a Rússia perdeu metade de sua riqueza em dez anos, um colapso econômico que estava sob artificial controle do Estado, e passou por um forte reavivamento religioso. Ainda que a fé ortodoxa seja muito pouco praticada (em torno de 2 ou 3% dos russos vão à liturgia semanalmente), a proporção de crentes em Deus explodiu.

(Por mais que se tente, a separação Igreja-Estado jamais será absoluta. A dimensão religiosa é inerente ao homem, é incontrolável e sempre resultará em acontecimentos inesperados.)

Abortar o plano divino também não é viável. O nazismo e o comunismo já tentaram fazer isto explicitamente, e os atuais meios empregados pela engenharia social na busca pelo igualitarismo ou a total democratização da sociedade (cujos processos só podem ser realizados por meio de uma brutal concentração de poder, portanto, de um enorme controle social), também esbarram na possibilidade pura e simples. Hoje os engenheiros e cientistas sociais buscam a todo o custo, por exemplo, demarcar "cientificamente" a separação Igreja-Estado, cujas realidades se interpenetram. No Brasil esta separação está oficializada no Artigo 19 da Constituição, mas mesmo assim não há como estabelecer, por exemplo, uma linha demarcatória clara sobre o que um professor de religião pode ou não dizer aos seus alunos sobre o tema numa escola pública, nem o que os alunos podem ou não expressar a respeito do que creem. Isto é um consenso mesmo entre os cientistas sociais brasileiros que olham com muita desconfiança a atual educação religiosa. O problema, como bem observou o sociólogo americano Peter Berger, é que o homem é um ser essencialmente religioso. Mesmo um intelectual ateu teria de aceitar esta informação como um dado real (eu mesmo conheci um sociólogo doutor que concordava com esta afirmação). Não há como suprimir esta dimensão humana, a não ser eliminando fisicamente as pessoas como fez Stálin com a Igreja Ortodoxa Russa a partir de 1929 quando quase a totalidade de seus sacerdotes foram presos ou fuzilados.  Não é possível a modelagem total da religiosidade popular através de leis, nem mesmo com uma educação laica. Esta modelagem teria de penetrar a alma e subjulgar a vontade, que Santa Teresa D´Ávila na autobiografia "O Livro da Vida" chama de "potência da alma". O controle do fenômeno religioso e de suas consequências sociais é impossível. A religiosidade sempre brotará e alterará espontaneamente o curso dos acontecimento.

Em resumo: controlar o rumo da História é abortar o plano divino, e para abortar o plano divino é necessário ter controle total sobre a História. Se a História não pode ser totalmente controlada, isto significa que ela obedece a alguma ordem que não emana de nossa vontade. É isso que Jesus está dizendo: por mais que hajam guerras e matanças, "não será logo o fim", isto é, mesmo que o homem deseje, ele não conseguirá realizar este fim. Se um dia houver uma guerra nuclear, ela também não dará um fim à humanidade. Da mesma forma as catástrofes naturais não serão o fim. E como poderemos garantir isso? Simplesmente porque Deus não quer. Parece uma resposta boba, tautológica, mas esta afirmativa fala por si mesma. O que está fora de nosso controle está sob controle divino. Se Deus afirma que catástrofes naturais, que estão fora de nosso controle não serão o fim, é porque não serão. A razão disto é o próprio Declarante.
 
             
 
(Testemunho do Milagre do Sol em jornal português, em 1917, e chamada sobre a aurora boreal no Reino Unido, em 1938: "grandes sinais serão vistos no céu".)

O final do Evangelho também me marcou muito. Quando ouvi que seriam vistos "grandes sinais" no céu logo lembrei do Milagre do Sol de Fátima ocorrido em 13 de outubro de 1917. Este milagre foi testemunhado por 70 mil pessoas e pela imprensa portuguesa da época. Foi em Fátima também que Nossa Senhora avisou que, caso a humanidade não se convertesse, haveria uma guerra ainda pior do que aquele que estava por terminar, e que esta nova guerra, a iniciar no papado de Pio XI, seria anunciada por luzes no céu. A aparição ocorrera durante a Primeira Guerra Mundial, e a Segunda veio efetivamente em 1º de setembro de 1939 quando a Alemanha Nazista forjou uma agressão inimiga e invadiu a Polônia. Pio XI, porém, terminou seu reinado em 10 de fevereiro daquele ano. Acontece que a primeira agressão alemã não veio com tanques e tiros: veio com a anexação da Áustria, conhecida como Anschluss, em 12 de março de 1938 quando tropas alemãs iniciaram sua marcha sobre o país. Algumas semanas antes, na noite de 25 de janeiro, uma espetacular aurora boreal iluminou os céus da Europa e mesmo do norte da África, caso raro e que marcou a época. O Milagre do Sol viera anunciar novos sinais no céu, prenúncio da guerra. Fátima é o microcosmo do Evangelho de Lucas para o século XX. Mas a guerra que ceifou pelo menos 60 milhões de pessoas, inaugurando o genocídio "científico" e o uso da bomba atômica, não foi o fim.

Caso os cristãos não fossem prudentes apoiariam líderes genocidas, estes sim fanáticos, "fundamentalistas" para utilizar a linguagem dos críticos do cristianismo e das religiões em geral. Apoiariam também os falsos profetas, os usurpadores e servidores do inimigo. Mas Jesus alerta para que não sigamos esta gente. É pelos falsos profetas que tentam realizar o Fim, o Apocalipse adornado de Paraíso. Mas todos eles sucumbem à providência divina. Não há guerra, nem revolução que dê fechamento ao curso da História. Nem mesmos os astros e a natureza, caso assim quisessem por força mágica, poderiam fazer o mesmo. Deus não é só o início, como também o fim da História. A História nasce do Alto e a Ele retorna formando uma imagem única que está gravada de forma definitivo na Eternidade.

domingo, 27 de novembro de 2016

Hollywood e a guerra contra o espírito

(Cena do filme "A Chegada": nave alienígena em Montana, EUA.)

Ontem assisti no cinema o filme "A Chegada". A estória trata de um tema muito batido nos filmes de Hollywood: alienígenas subitamente chegam à Terra causando muito tumulto entre os humanos, não necessariamente uma guerra, mas discussão, tensão, debate, questões que mexem com nossa existência.

A principal personagem do filme, Louise (Amy Adams), é uma linguista americana recrutada pelo exército para estabelecer uma comunicação com alienígenas que, subitamente, pousaram suas naves em doze diferentes pontos da Terra. Uma delas está no interior do estado de Montana, nos EUA, onde se passa grande parte do filme. Não cabe aqui contar todo o enredo, mas alguns eventos estranhos acontecem ao longo do filme: Louise começa a ter visões sobre sua vida. Mais tarde, ela descobre que essas visões são de sua vida no futuro e que, de alguma forma (e isto não fica claro), eram os alienígenas que lhe conferiam essas visões.

Outras questões que chamaram minha atenção foi a tensão política e militar causada pelas naves. Uma delas estava sobre o mar junto à cidade de Shanghai, na China, cujo exército exigiu que a nave no espaço aéreo chinês se retirasse do local. A exigência veio depois de um  por erro de comunicação, e caso o prazo não fosse cumprido a China atacaria a nave.A  Rússia (que tinha duas naves sobre seu território) e o pobre Sudão decidiram fazer o mesmo.

Num determinado momento do filme, Louise tem a visão de uma conversa que ocorreria dentro de uma ano e meio no futuro, com o general Shang, chefe do Exército de Libertação Popular da China, que decidira pelo ataque. O diálogo acontece durante uma celebração num salão de eventos. O general agradece o papel da linguista pela união de todos. Isto mesmo: união. No salão há bandeiras das potências mundiais, e ao centro um dos símbolos de linguagem utilizado pelos alienígenas. O mundo estava, portanto, politicamente unido. EUA e China eram não só amigos, mas aliados, bem como todas as potências mundiais.

O filme também repete o enredo de muitos outras produções hollywoodianas: os alienígenas estavam na Terra muito tempo. Neste caso, há três mil anos. Louise descobre isso num diálogo direto com os visitantes, quando estes a trazem sozinha à nave. A razão que levou o exército da China a decidir pelo ataque foi o erro de interpretação dado pelos chineses à frase "oferecer arma" que, no sentido dos aliens, era na verdade "oferecer presente". Louise descobrira isto numa simples conversa e fora a chave para evitar uma guerra.

Ela também descobrira que a linguagem alienígena possuía uma estrutura totalmente diversa da linguagem humana, dentre elas a de que o tempo não era linear. A escrita tinha outra estrutura de tempo. Havia uma relação, portanto, entre a linguagem e as visões do futuro que brotavam na mente de Louise. A linguagem alienígena era representativa da imagem unificada de tempo, onde passado, presente e futuro se unificavam numa mesma imagem.

(Cena do filme "A Chegada": exército chinês decide pelo ultimato seguido de ataque à nave alienígena. Para o filme, a ameaça à paz está na divisão entre Estados. É necessário uni-los.)

O que chamou minha atenção, porém, não foi o papel da personagem, mas o mistério profundo envolvendo a longa presença alienígena e sua missão profética. Os aliens não só estavam há três mil anos na Terra como ele ofereciam, como profetas de uma nova humanidade, um "presente" que, se não entendi errado, era uma nova forma de ver o tempo e a ordem do real, cujo efeito seria um futuro de paz e harmonia. Os grandes inimigos dos profetas vindos do espaço eram os agentes de Estado. Assim como generais chineses, russos (que no filme assassinaram um dos pesquisadores envolvidos nas tentativas de comunicação) e africanos, membros do exército americano, obcecados pela segurança nacional, tratavam as naves como ameaça. Os inimigos da paz, portanto, eram os Estados nacionais e suas lógicas de poder, ao passo que os proponentes da paz eram os alienígenas, capazes, de forma misteriosa, de prever o futuro e apresentá-lo na intimidade da mente humana. A paz que Louise conseguira junto ao general chinês foi possível porque ela, num ato quase desesperado, entrou em contato com ele pelo sistema de comunicação utilizado pelos pesquisadores para lhe dizer algumas poucas palavras em mandarim. Estas palavras eram as que sua mulher lhe dissera instantes antes de sua morte, e que Louise ouvira durante a visão que tivera.

Aqui chego ao ponto que me interessa: a concepção de tempo dos alienígenas no filme é a concepção de eternidade. Se era possível ver o futuro, era porque os aliens tinham a capacidade, por algum meio misterioso, de conhecê-lo. Mas o filme não explica de onde vinha esta capacidade, nem de qual lugar do Cosmo as naves tinham origem. Elas simplesmente apareceram e estavam na Terra de forma invisível. Também não havia qualquer indicativo ou mecanismo utilizado pelos alienígenas (se um máquina, se telepatia ou mesmo alguma força espiritual) para projetar na mente de Louise as visões do futuro. As visões simplesmente apareciam

Dado o mistério e a enorme capacidade de influenciar os acontecimentos, o filme propõe que, sim, toda a humanidade fora mais ou menos guiada por forças alienígenas, a despeito da história das civilizações, das grandes religiões e dos grandes acontecimentos que marcaram época.

(Cena final do filme "Presságio": reprodução do Paraíso por mãos alienígenas. Deus está fora da estória.)

Muitos outros filmes hollywoodianos têm a mesma cosmovisão: depois de filmes como "Contatos Imediatos com o Terceiro Grau" e "E.T., o Extraterrestre", dos anos 80, a saga de alienígenas criadas a partir de "Independence Day" de 1996 é um misto de mistério com ameaça à Terra. Todos eles clamam aos alienígenas como guias espirituais do homem, à necessidade de unificação política planetária em nome da paz e da segurança da humanidade, a salvação da natureza, ou a isto tudo junto. No primeiro "Independence Day" o mundo, liderado pelos EUA, consegue libertar a humanidade da ameaça de extermíni; no segundo filme, "Independence Day: Ressurgimento", os alienígenas retornam vinte anos depois a uma Terra cujas forças militares estão unificadas sob comando da ONU. Na refilmagem "Guerra dos Mundos", os aliens, depois de causarem caos no mundo inteiro, simplesmente são enfraquecidos e morrem unicamente por terem se contaminado com uma Terra poluída pelo homem (foi o pior filme do gênero que já vi). No original "O Dia em que a Terra parou", os visitantes vêm alertar sobre o perigo que uma guerra nuclear poderia causar à humanidade e ao sistema solar, cuja solução passaria pela coordenação de um acordo global. A refilmagem rebaixou a proposta da política para o ambientalismo: o homem estava destruindo o planeta, e cabia às forças alienígenas alertar, mesmo que sob ameça, a humanidade sobre os rumos que seguia. Em "Presságio", o personagem vivido por Nicholas Cage decodifica uma série de mensagens em números que dão as datas, coordenas e números de mortos de uma série de tragédias. Até que ele descobre a data do fim do mundo. Quem comunica essas informações são alienígenas, que vêm à Terra salvar seus filhos e trazê-los de volta quando o planeta tem sua superfície renovada. A cena final é uma literalização do Gênesis: o casal de filhos corre sobre um campo brilhoso com uma árvore ao centro, numa reprodução ufológica do Paraíso de Adão e Eva, enquanto as naves partiam para o espaço. Os deuses alienígenas davam reinício à humanidade. Hollywood reecrevera a Bíblia.

(Base na lua do sistema de defesa global no filme "Independence Day: Ressurgência": ataque alienígena foi razão para a unificação militar planetária.)

Reparem que em todos estes filmes não há qualquer menção a Deus ou ao plano transcendente, mesmo que de forma vaga. O horizonte existencial de Hollywood fecha-se totalmente no mundo imanente: todos os mistérios, todos os acontecimentos, todo o sentido da vida está encerrado na presença da vida alienígena. A psique é a única dimensão para além do mundo sensível, sendo este mesmo dominado pelos extraterrestres.

Alguém pode ainda lembrar que Hollywood filmou "A Paixão de Cristo". Em primeiro lugar isto já mostra a dimensão do problema: fora um filme essencialmente religioso, as questões espirituais ou transcendentais estão abolidas das grandes produções americanas, a exemplo do cinema-catástrofe e dos filmes de super-heróis (impossível não lembrar do personagem Apocalypse, do último filme da série X-Men, uma literalização histórica e material do último capítulo da Bíblia, dos Quatro Cavalheiros e de outras tradições religiosas). Jim Caviezel, que fez o papel de Jesus Cristo, teve sua carreira praticamente encerrada após as filmagens do épico. Motivo? Boicote velado de Hollywood. Aos que duvidam que seja exagero, quem declara isto é o próprio ator.

As referências religiosas que se apresentam nos filmes hollywoodianos geralmente estão desconectadas de seu sentido original. O personagem Apocalypse é um exemplo. Em "Guerra dos Mundos" a desconexão vai ainda mais longe: a cena em que a frente de uma igreja se desloca abrindo a frente do prédio, e em seguida surge a nave alienígena de debaixo da terra (o tripod) matando todo mundo, sugere que o mal estava lá há muito tempo e que finalmente foi liberto. O filme inverte o sentido da religião cristã.

(Cena da refilmagem "Guerra dos Mundos", quando surge a primeira nave alienígena que começa o extermínio da população: inversão e escamoteamento do cristianismo.)

A importância do cinema de Hollywood está no seu alcance a milhões de pessoas. O cinema, assim como a literatura e as novelas, moldam o imaginário social das massas. Hollywood está promovendo, de forma deliberada ou não (não saberia julgar) uma cosmovisão onde Deus está ausente ou, pior ainda, onde nem mesmo o transcendente existe. E se existe, é inacessível a nós. Não podendo vencer o espírito, estas grandes produções o enclausuram numa gaiola e acostumam o imaginário a desconsiderar a transcendência. Paralelo à ignorância espiritual, somos estimulados ao apelo à paz, à harmonia, à salvação do planeta, possível apenas pela união de todos para com todos. Hollywood propõe que ignoremos o espírito e aceitemos o governo mundial.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Conhecimento muito além de opiniões: a busca por verdades cruciais

(A vida possui muitas "pergunta cruciais", aquelas cuja resposta depende de um profundo esforço pessoal e fazem a diferença quando encontradas. Na foto: Biblioteca Nacional da República Tcheca, em Praga.)

Recentemente foi publicado no Youtube o áudio de uma aula do filósofo Luiz Gonzaga de Carvalho Neto realizada em 4 de junho de 2008. A aula era direcionada a funcionários de uma instituição, cujo nome não é revelado. Essa situação exigiu de Luiz Gonzaga uma breve observação no início de sua fala: todas as pessoas têm necessidade de algum conhecimento, mesmo para as coisas mais básicas do cotidiano. Mas quando esta necessidade logo é sanada, o interesse pelo conhecimento é abandonado. Dar uma aula para funcionários implicava se colocar no desafio de instigar alunos que, em princípio, não estavam lá por interesse genuíno no conteúdo, e sim para cumprir deveres profissionais ou evitar uma punição por não cumprimento da norma.

O tema da aula era a relação entre estudo e conhecimento. Luiz Gonzaga inicia sua apresentação diferenciando quatro tipos de conhecimento: aquele que utilizamos para fins meramente objetivos, como escovar os dentes, dirigir um carro, passar num concurso, etc; o que exige um aperfeiçoamento periódico, como aquele buscado por médicos, professores, cientistas, etc, preocupados em melhorar sua vida profissional; o conhecimento que é buscado com a finalidade de encontrar uma resposta específica e fazer disso uma carreira para a vida toda, como fazem escritores, filósofos, determinados cientistas empenhados na descoberta de cura para doenças ou o desenvolvimento de determinadas tecnologias; e o conhecimento voltado (este mais raro) para uma completude pessoal, para engrandecer a alma e fazer com que a pessoa sinta-se mais completa como ser humano.

(Segundo Luiz Gonzaga, grande parte do conhecimento é voltado para fins meramente utilitários, no máximo para aperfeiçoar habilidades profissionais.)

A esmagadora maioria das pessoas no mundo, e no Brasil em particular, dedicam-se às duas primeiras formas de conhecimento. Acontece que esta massa pára por aí, não indo além daquilo que é estritamente necessário saber ou para melhorar seu desempenho profissional. Isto faz com que as pessoas jamais passem do nível da opinião na esmagadora maioria dos assuntos, e que aqueles dedicados à sua especialidade profissional se tornem, no máximo, bons profissionais especializados na sua área.

(O conhecimento voltado às "perguntas cruciais", às quais determinadas pessoas dedicam toda uma vida a respondê-las, deixa um legado às gerações futuras. Na foto, catedral anglicana de Saint Paul, em Londres: símbolo da cidade, estrutura imponente, bela arquitetura e técnica revolucionária de construção para o século XVI.)

As pessoas dedicadas a responder questões pertinentes da nossa vida (que Luiz Gonzaga chama de "perguntas cruciais"), como os grandes problemas filosóficos, os melhores meios de organizar a sociedade ou de encontrar respostas para problemas pessoais ou coletivos, são aquelas que saltam da mera opinião e passam ao conhecimento. Luiz Gonzaga retoma os termos gregos doxa e episteme, que significam "opinião" e "conhecimento", respectivamente, para explicar que o primeiro dá um salto qualitativo para o segundo quando é submetido ao crivo de todas as perguntas e experiências que estão em posse do questionador. Quando um cientista, por exemplo, quer inventar um equipamento que ninguém inventou ele busca meios de superar as experiências anteriores que tentaram cria-lo sem sucesso. Isto quer dizer que tudo o que feito pelo homem foi antes pensado para depois ser aplicado, isto é, passou da mera opinião para o conhecimento e daí a sua aplicação na realidade. Os princípios que regem um sistema político, as grandes religiões (dada suas manifestações humanas) e todo o qualquer produto industrial foi antes pensado e depois aplicado, e eles hoje só existem porque são os melhores resultados de todas as experiências anteriores em seus respectivos campos.

Em grande parte do vídeo Luiz Gonzaga relaciona a capacidade humana de conhecer com a democracia. Neste texto não vem ao caso esta problemática, mas cabe aqui destacar um ponto: uma democracia só é viável, segundo o filósofo, porque há pessoas que são capazes de superar sua mera opinião e testá-la no mundo real, isto é, transformá-la em conhecimento. Nenhum povo pode exercer pressão real sobre seus governantes com o objetivo de melhorar sua condição social se não for capaz de mostrar que sua ideia é melhor do que "aquilo que está aí" e que vai muito além da mera vontade, como vemos nas reivindicações por melhores salários, "mais educação", "mais segurança", etc. Isto pressupõe um meio de alcançar a esfera de poder, já que o governante, por mais ignorante que seja, em algum momento analisou seriamente a possibilidade de como chegar lá, transformando sua mera vontade em realidade de fato. Os governados incapazes de transformar sua opinião em conhecimento consistente sobre um assunto qualquer será sempre tratado pelos governados como crianças. Alguém que, por exemplo, saiba como realmente melhorar o atendimento da saúde pública terá muito mais legitimidade e influência no sistema político do que se fizer apenas barulho reclamando por aquilo que acha que é melhor. Nenhum governo terá a legitimidade necessária para governar se sua ação não for contestada por alguém que realmente conhece os assuntos pertinentes à vida cotidiana dos indivíduos. Não há democracia se não há um número mínimo de pessoas, uma verdadeira aristocracia capaz de apresentar projetos reais para a vida, se não de todas, ao menos da grande maioria das pessoas.

(Uma vida dedicada às "perguntas cruciais" levará ao encontro de "verdades cruciais" que estarão acima da esfera das meras opiniões e ficarão como legado para outras pessoas em diversas esferas da sociedade.)

O mais importante de tudo, porém, não está nos efeitos do conhecimento na esfera política. Dedicar-se ao conhecimento, à busca da dúvida que paira sobre nossa cabeça durante grande parte de nossa vida, mexe, antes de tudo, com nossa vida pessoal. Alguém que tem uma pergunta crucial e se dedica verdadeiramente a responde-la está dando sentido à sua própria vida. Não importa se este interesse é em contribuição às outras pessoas ou para alcançar a plenitude enquanto ser humano; o que importa é a busca em si, cujo resultado dará sentido à sua existência. Ter um interesse real sobre algo é um sinal de que este algo lhe diz respeito verdadeiramente. Cabe a esta pessoa, portanto, responder à pergunta que lhe é pertinente. Não importa se o alvo é a busca por uma vacina contra a AIDS ou os critérios para educar corretamente os filhos. É a dedicação pela busca às respostas que levarão à descoberta daquilo que Luiz Gonzaga mencionou como "as verdades cruciais da vida humana". "Nem que seja uma só", completou o filósofo.

Viktor Frankl, fundador da logoterapia, fez exatamente esta busca. Ele suportou a prisão  nos campos de concentração nazistas porque tinha dois objetivos de vida: reencontrar sua mulher, a qual perdeu contato com a prisão, e continuar seus trabalhos no novo ramo de conhecimento que viria a fundar. Sua mulher morreu num dos campos de concentração, mas sua pesquisa, que veio a desembocar na logoterapia, deu rumo à sua vida. Desconheço as razões que levaram Frankl a continuar atuando na psicologia (talvez seu livro de memórias ajude a responder esta pergunta), mas certamente sua atividade científica era busca por respostas a perguntas que ele antes havia formulado. A prova da veracidade desta busca está no livro Em Busca de Sentido, onde ele explica como o desejo de continuar suas pesquisas na psicologia o motivaram (e deram sentido) a continuar vivo.

(Para Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, só é possível responder às "perguntas cruciais" individualmente, e o encontro dessas respostas faz a vida valer à pena.)

No final da aula, Luiz Gonzaga diz que as descobertas sobre questões cruciais da vida humana só podem ser feitas pela consciência individual. "Isso é único", diz ele sobre a busca. "O que torna a gente único... são as respostas que a gente pode oferecer às pessoas." A descoberta às questões cruciais inserem-se numa sequência de respostas já dadas. O importante, portanto, não é dar respostas novas a um velho problema, e sim reatualiza-lo, trazê-lo novamente ao momento presente, reforçá-lo na consciência das pessoas. Encontrar essas respostas é crucial para apostar a vida em algo que valha à pena, é dedicar-se a algo maior do que nós mesmos e que será legado para a gerações futuras. É auto-transcender-se, como diz Frankl, e é na auto-transcendência que está o sentido da vida, em algo fora, maior e mais elevado do que nós. Como conclui Luiz Gonzaga: "Isto é para você terminar a sua vida e falar: 'foi bom!'" Uma vida que foi existencialmente boa é uma vida plena de sentido.

Infelizmente há uma segunda parte da aula que não está disponível no Youtube. De qualquer forma esta lição de vida é inspiração para ampliar nossos horizontes e, por que não, legar às pessoas com as quais vivemos respostas que elas gostariam de ter mas são incapazes de possuir. Isto é mais do que ser um aristocrata. É ser bom.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Igreja 3: Paróquia São João Bosco

(Igreja da Paróquia São João Bosco, ao lado do Colégio Dom Bosco, visto da Rua Dr. Eduardo Chartier esquina com Rua Américo Vespúcio. Foto de 13 de outubro de 2016.)

No meu último texto sobre as igrejas de Porto Alegre abordei a Paróquia Santa Maria Goretti, no bairro de mesmo nome. Vamos agora à outra igreja, a da Paróquia São João Bosco.

A Paróquia São João Bosco, também conhecida apenas como Dom Bosco, localiza-se no bairro Higienópolis na Zona Norte da cidade. Sua fachada está virada para oeste. A região é plana e baixa, mas a igreja está num terreno levemente elevado a aproximadamente 22 m acima do nível do mar na Rua Dr. Eduardo Chartier esquina com a Rua Mal. Simeão e ao lado do colégio de mesmo nome. Sua origem está vinculada a esta instituição, que é mais antiga.

Colégio Salesiano Dom Bosco foi fundado pelo padre salesiano José Mássimi, de Rio Grande. Em 1943 o sacerdote conseguiu junto ao então prefeito de Porto Alegre, Loureiro da Silva, a aquisição de um terreno para a construção do atual colégio. A ideia inicial era ocupar todo o atual quarteirão, mas lentamente e com muitas dificuldades o edifício que daria origem à escola foi construído e inaugurado (ainda incompleto) em 19 de março e 1952 com o nome Casa do Pequeno Operário. O nome era uma homenagem ao patrono São José Operário comemorado neste mesmo dia.  

(Vista aérea da Vila IAPI, sem data, onde se destaca a Av. Brasiliano de Moaris. O Colégio Dom Bosco aparece acima à esquerda em forma de "C". O terreno aberto do lado direito do prédio é o terreno da atual igreja.) 

A Paróquia São João Bosco seria criada pouco mais de dez anos depois por um decreto do então Arcebispo Dom Vicente Scherer em 8 de agosto de 1962. Seu território fora desmembrado das paróquias vizinhas Nossa Senhora Auxiliadora, São João Batista e Nossa Senhora de Fátima, no IAPI. Já a inauguração da igreja ocorreu em 23 de setembro do mesmo ano, e o primeiro pároco foi o padre Victor Vicenzi, salesiano e então diretor da Casa do Pequeno Operário. (Cabe notar que um convite para a primeira quermesse da igreja, em 1º e 2 de junho de 1962, com o objetivo de arrecadar fundos para a construção da nova igreja - seria o salão do colégio? - já chamava o local de "paróquia". Isso mostra que que a comunidade já sabia que uma nova paróquia seria criada.)

(Celebração no salão do Colégio Dom Bosco onde funcionou a paróquia de 1969 até provavelmente 2002.*)
  
(Altar construído dentro do salão. Em destaque a imagem de São João Bosco. Reparem nas paredes e na luminária, que não condizem com uma igreja.*)

A sede da nova paróquia não era uma igreja, e sim uma das dependências do colégio. Apenas em 1969 foi fechado um acordo entre as partes para uso do salão da instituição de forma permanente por parte da paróquia, que ficaria com a responsabilidade de fazer sua manutenção. A inauguração do novo local ocorreu em 2 de agosto do mesmo ano pelo então Arcebispo Auxiliar de Porto Alegre Dom Edmundo Kunz. O salão era organizado e ornamentado para a realização da missas com um altar improvisado sobre um palco levemente elevado em relação à multidão, e bancos para assentar várias dezenas de pessoas (pela primeira fotografia acima é difícil fazer um cálculo preciso, mas 200-300 pessoas parece um número razoável).

Depois de muita expectativa, a construção da igreja atual começou a ser planejada no primeiro semestre de 1996 numa reunião com o pároco, o direto do colégio e membros salesianos. Com o apoio financeiro do Reitor-Mor dos salesianos, paroquianos e demais colaboradores, a nova igreja da Paróquia São João Bosco foi construída no terreno baldio ao lado do colégio e foi projetada, segundo o atual pároco, pela arquiteta Rejane Buffon. A inauguração ocorreu em 12 de outubro de 2000 com a presença do Arcebispo Dom Dadeus Grings, 33 sacerdotes e mais de 300 jovens de instituições salesianas do Rio Grande do Sul, o que deixou o prédio lotado. É provável, portanto, que o salão do colégio estivesse ocupado até este ano. A bênção solene do templo apenas em 2002, no dia 24 de maio, com a presença de Dom Dadeus e 18 sacerdotes salesianos numa celebração que lotou a igreja. Esta data foi escolhida por ser dia de comemoração de Nossa Senhora Auxiliadora, padroeira da Congregação Salesiana Dom Bosco.* Nesta época o pároco era Valdir Andreatta, que hoje está em Itajaí, SC.

Durante boa parte de 2016 a igreja permaneceu fechada devido à violenta tempestade que atingiu Porto Alegre na noite de 29 de janeiro. Muitas telhas voaram com a força do vento, a água da chuva penetrou no interior e o gesso que revestia o interior da nave desabou. Durante quase oito meses o edifício passou por reformas e foi reaberto com uma celebração no final do mês de setembro.

(Extremidade da torre com a cruz, ambos de concreto: única expressão explicitamente religiosa na estética da igreja. Pontas de concreto parecem apontar para a cruz. Foto de 26 de setembro de 2016.) 

(Vista da igreja do outro lado da Rua Eduardo Chartier. Mesma data.)

Localizado num terreno ao lado do Colégio Dom Bosco, a paróquia está sob cuidados do pároco Tarcísio Luís Brasil Martins*. Sua igreja tem aspecto de uma grande residência com revestimento de concreto, tinta branca e telhas cinza-escuro, lembrando uma casa germânica (quem souber o estilo arquitetônico, agradeço desde já). Apesar do grande telhado curvado, seu ponto mais alto é a torre com aproximadamente 30 m de altura, que atravessa as telhas e está firmada sobre a escadaria em basalto da fachada. A única representação cristã explícita no exterior é a cruz no alto da torre. De formato retangular, a torre é feita de concreto, pintada totalmente de branco e possui paredes lisas pontiagudas em dois os lados. Olhando com atenção as paredes parecem representar direções para o alto como se apontassem para a cruz (difícil alguém que não é arquiteto definir o estilo e as figuras que supostamente estão ali presentes). Além da cruz há ainda os vitrais em torno da porta de entrada e na face norte da igreja virada para a Rua. Mal. Simeão, mas devido à luminosidade eles são poucos visíveis e apresentam-se escurecidos, não sendo possível identificar à primeira vista suas representações.

Apesar da imponência do edifício e da altura da torres, a igreja não é grande o suficiente para se destacar do entorno, e sua estética secularizada confunde o edifício com as construções no entorno. Na época da fundação do Colégio Dom Bosco e da criação da paróquia, a região onde hoje se encontra o bairro Higienópolis era pouco habitada. O local mais densamente povoado das redondezas era a Vila IAPI, construída nos anos 50. Quando a igreja foi inaugurada em 2002, o colégio já tinha sua feição atual. Sua fachada de três andares encobre o lado sul da igreja, claramente visível apenas há poucos metros de distância e cuja única referência é a torre. Sua visão é parcialmente encoberta pela vegetação, casas e pequenos edifícios no entorno. No lado norte, a partir da Rua. Mal. Simeão, temos a Rua Brigadeiro Oliveira Neri*, cujo traçado em curva faz com que a visão da igreja fique encoberta pelas residências. Além do mais, a estreiteza da Rua Mal. Simeão e o muro nesta lateral impedem uma contemplação de todo o prédio para os pedestres que passam pelo local. Nos fundos da igreja temos uma residência que provavelmente pertence a um pequeno complexo de quadras esportivas do Porto Alegre Tennis.

O relevo aplainado, o edifício do colégio, à malha urbana do bairro e sua estética secularizada (que defini de forma leiga como "grande residência") subtraem da Igreja Dom Bosco sua representação católica e religiosa.

* Agradeço ao padre Tarcísio pela recepção, a observação do livro tombo, o envio por e-mail do breve histórico da paróquia e o esclarecimento sobre sua data de inauguração e bênção solene.

sábado, 22 de outubro de 2016

João Paulo II: o santo que veio do lado de lá da Cortina de Ferro

(Em 22 de outubro de 1978, há exatos 38 anos, Karol Wojtyla tomava posse como João Paulo II. O Papa foi canonizado por Francisco em 27 de abril de 2014.)

Eu gosto de fazer alguns comentários sobre política. Não em entrar em discussão sobre preferências ou meramente emitir opiniões, mas de entender a realidade por detrás dos discursos e da propaganda.
Ninguém, porém, é melhor do que Deus para entender a realidade do mundo político (na verdade, ninguém é melhor do que Deus em qualquer coisa). Afinal, Ele é o próprio arquiteto do poder estabelecido. Jesus Cristo anunciou a Pôncio Pilatos que o poder que o governador possuía só existia porque lhe fora dado do Alto (João, 19:11).

Não foi coincidência que nos tempos da Guerra Fria o Espírito Santo foi soprar na Polônia e trazer ao trono de Pedro o Papa João Paulo II. Neste 22 de outubro completam-se 38 anos de sua posse, ocorrida em 1978.

(Duas milhões de pessoas em Varsóvia, Polônia, em junho de 1979: a eleição de João Paulo II como Papa ajudou a encerrar o regime comunista no país.)

No ano seguinte o novo Papa visitou seu país, onde duas milhões de pessoas foram recebê-lo nas ruas de Varsóvia. Apesar da dura repressão, principalmente através da polícia secreta, o regime comunista da época tinha alguma flexibilidade e, claro, não podia reprimir uma multidão daquela proporção. Dez anos depois o Muro de Berlim vinha abaixo e, num jogo de dominó, arrastou todo o bloco do leste até desmantelar a toda-poderosa União Soviética. O fim da superpotência foi oficializado em 25 de dezembro de 1991, no Natal, no meu entender um sinal claro da revelação de Jesus a Pilatos. Os regimes comunistas tinham como uma de suas principais características o ateísmo oficial, e uma das consequências era a repressão religiosa e a disseminação doutrinária do ateísmo. E não é necessário entrar no mérito do genocídio, o que desqualificaria esses regimes por mais religiosos que fossem.

(Cerimônia de consagração do mundo e da Rússia na Praça São Pedro em 25 de março de 1984: segundo Gabrielle Amorth, a Rússia não foi mencionada no evento. Teria havido também resistência por parte do clero no mundo à consagração.)

Deus deu ao mundo sinais gritantes durante o pontificado de "João de Deus" que, como bom santo, se exauria nas viagens pelo mundo e morreu em sacrifício pela Igreja. Infelizmente João Paulo II não conseguiu realizar alguns de seus sonhos como uma visita à China e à Rússia, neste último caso em razão da classificação do país como território canônico da Igreja Ortodoxa Russa. Na ocasião da visita à Ucrânia em junho de 2001, país de maioria ortodoxa, houve muita resistência por parte dos líderes da igreja russa local em receber e aceitar a presença de um Papa católico numa viagem por eles considerada proselitista. Havia também a pendência em torno de um tema que lhe era caro: a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria que, segundo o recém falecido exorcista Gabrielle Amorth, não teria sido realizada conforme a revelação de Nossa Senhora à irmã Lúcia no ano de 1929 devido à pressão de dentro do Vaticano (escreverei sobre isso num momento oportuno e publicarei tanto aqui quanto no meu outro blog).  

(Aparição pública do Papa em 27 de março de 2005, cindo dias antes de sua morte: sacrifício até o fim.)

São João Paulo II  tinha uma missão clara: resgatar parte da humanidade, particularmente parte da cristandade, que estava sob domínio de um poder político explicitamente anticristão. Wojtyla era devoto de Nossa Senhora, particularmente de Fátima. Foi sob este título que a Mãe de Deus alertou sobre os "erros da Rússia" ao três pastorinhos ainda em 1917, quando realizou o primeiro pedido de consagração do país. Com o resgate da cristandade sob julgo comunista caberia ao Papa unir os cristãos e dar fim à divisão de 1054 causada pelo cisma ortodoxo. Não foi coincidência, repito, que Deus, depois de mais de 400 anos, foi buscar um Papa fora da Itália e justamente num dos raros países de forte tradição católica sob julgo comunista. João Paulo II não conseguiu realizar tudo o que desejava. Ele tinha meio mundo contra sua missão, mas suportou o peso do trabalho até o último minuto, o último suspiro, o último momento. Sua disposição era prova de que o Senhor nele habitava. Sua santidade não foi coincidência ou mera propaganda católica. Na sua disponibilidade e limitações, ele fez muito mais do que um ser humano comum faria. Sua missão foi cumprida.

Russos, livros e bebidas: testemunhos de um estereótipo

(Rússia e vodka: combinação que não é exatamente um estereótipo.)

Quem acompanha brevemente meus escritos na internet sabe que tenho o blog "A Rússia e o Mundo" onde publico análises e comentários sobre política, história e cultura da Rússia. Para tentar entender um pouco realmente que país é este e quem são os russos (tanto em sua concepção étnica quanto nacional, como didadicamente distingue Angelo Segrillo no seu livro "Os Russos"), busco acompanhar alguns eventos que tratam de temas a respeito da cultura. E ainda por cima encarei o desafio de aprender a língua russa.

Comecei as aulas de russo em agosto deste ano. Minha professora Elena é diretora do Instituto Cultural Russo. Nossas aulas ocorrem uma vez por semana, salvo percalços criados pela agitada agenda da professora.

(Letras e fonéticas do alfabeto russo.)

A primeira dificuldade é conhecer o alfabeto cirílico. O mais complicado no aprendizado para quem fala português não é, no meu entender, conhecer as trinta e três letras do alfabeto (alguma extremamente esquisitas, como o "jé", cuja escrita é um asterisco de seis pontas, ou o "iú", escrito como IO vinculados por um traço), e sim não confundir a letra de forma com a fonética em português. Por exemplo: a letra "H" tem som de "N" em português; o "N" invertido tem som de "I"; o "B" de "V", "Y" de "U"; e a escrita similar ao número "3" som de "Z". Tornar estas associações natura naturais sem confundir com a fonética do português dá frequentes curto-circuitos nos meus neurônios. 

(Entre os russos é comum os encontros serem acompanhados pela vodka, cujo hábito é não tomar só.)

Mas como boa russa que minha professora é, natural da cidade de Krasnoiarsk no sul da Rússia, ela nos ensinou uma das coisas mais comuns do país: as bebidas. Estão lá os vinte nomes de bebidas listados em russo no meu caderno, da água ao conhaque. Elena nos contou que a imagem do russo beberrão de vodka é verdadeira, e que nos encontros sociais é extremamente comum o uso da bebida. É "tradição" entre os russos tomar a vodka em três pessoas, e a razão é bastante prática: depois de muitas doses alguém acaba tonto, incapaz de sair caminhando por aí, restando dois para ajudar. É comum ver na rua duas pessoas carregando um bêbado, como também são comuns os casos de atropelamento de pessoas sob efeito do álcool. Inclusive é pouco educado recusar uma bebida quando se é convidado a um encontro. Ser russo é estar realmente familiarizado com a vodka.

(Uma das vitrines da Rússia, São Petersburgo possui arquitetura essencialmente europeia. Em destaque a cúpula dourada da Catedral de Santo Isaac, de estilo neoclássico, ao contrário do bizantino das demais igrejas ortodoxas.)

Outro exemplo do comportamento dos russos tive na semana passada quando assisti a uma aula ministrada pela professora de literatura russa da UFRGS Denise Regina de Sales sobre a cidade de São Petersburgo.  O tema era a cidade pela ótica de dois ex-moradores e famosos escritores: Nikolai Gogol (1809-1852) e Fyodor Dostoyevsky (1821 - 1881). Fui ao encontro mais atraído em conhecer a história da cidade do que a visão que seus famosos escritores tinha dela, cujas obras, confesso com um pouco de vergonha, ignoro por completo. Interessante notar que esta cidade, fundada em 1703 pelo czar Pedro, o Grande, rivaliza com Moscou não só como capital histórica do país, mas também por suas associações simbólicas e culturais. São Petersburgo é a cidade masculina, ocidentalizada, aberta, jovem; Moscou é a cidade feminina, propriamente russa, reservada e mais antiga.

       
                  (Gogol e Dostoyevsky: ex-moradores de São Petersburgo dão vida à cidade.)

Enquanto ouvíamos os trechos dos autores lidos pelos alunos da aula entrávamos e imaginávamos as cenas às quais Gogol e Dostoyevsky nos transportavam. Tive de ler dois trechos deste último, e fiquei impressionado com o mergulho que o leitor fazia no corpo do personagem bem como no ambiente físico. Brinquei por um momento que o aprisionamento emocional descrito pelo personagem de Dostoyevsky era angustiante e me levaria a ficar sem ar. Infelizmente não me recordo da fonte dos trechos. De qualquer forma a experiência foi muito válida porque me ajudou um pouco a ter uma breve ideia da dimensão do impacto da literatura russa do século XIX no mundo todo.  e de minha ignorância sobre o tema.

(Pushkin: orgulho nacional.)

O que também chamou minha atenção foi, segundo os relatos, o valor que os russos dão à literatura e à cultura do país. Além da professora, muitos alunos já estiveram na Rússia. Um dos presentes comentou em dado momento que um amigo(a) em viagem ao país contemplou o busto de um homem num local público. Depois perguntou a uma pessoa próxima de quem se tratava. A pessoa ficou assombrada com a ignorância da pergunta. Ela não entendia como alguém não sabia de quem era a representação. O busto era do poeta Alexander Pushkin (1799-1837), nascido em Moscou e falecido em São Petersburgo, considerado pelo russos o maior de todos os seus escritores. Na medida em que a pessoa explicava à visitante quem era Pushkin, apareceu um policial para ver o que estava acontecendo. Mas o policial foi tragado pela conversa. Depois vieram outras pessoas e mais outras formando um aglomerado de indivíduos que discutiam em grupo quem era Pushkin. Isso denota que o poeta tem alguma fama em seu país de origem. Diria, pelos comentários da professora e dos alunos, muita fama.

É claro que os relatos acima não resumem quem são os russos, nem dão forma acabada a este povo. Associar russos com vodka e literatura é mais ou menos como associar brasileiros à samba e futebol. É uma associação meramente popularesca. Diz pouco sobre a sociedade, ou mesmo distorce sua verdadeira identidade. Vodkas à parte, quem dera fôssemos também nós apaixonados pelos intérpretes de nossa pátria, e não unicamente pelas diversões passageiras. Faria um bem danado à nossa mentalidade e à auto-estima. Mas resgatar uma cultura que foi substituída pelas paixões mais superficiais e efêmeras será um trabalho que levará gerações.