terça-feira, 12 de dezembro de 2017

TIP e oração: como mente e espírito podem caminhar juntos

          Há anos atrás, quando ainda frequentava sessões semanais de psicanálise, costumava dizer para minha psicanalista que eu não acreditava que recuperar certas pessoas é impossível. Ela me dizia que indivíduo como psicopatas ou determinados doentes mentais não tinham recuperação. Mas eu me recusava a acreditar nisso. Para mim sempre havia como recuperar uma pessoa, mesmo que por milagre, no sentido estrito da palavra.

          Nos últimos meses tenho lembrado com frequência sobre o poder que a oração pode ter em nossas vidas. A questão voltou à tona, entre outros fatores, em alguns encontros com minha atual psicóloga, preceptora da Terapia de Integração Pessoal (TIP), onde ela insistia que Deus não faria por nós aquilo que inconscientemente não queremos. Um exemplo: eu por muito tempo quis morar sozinho, mas inconscientemente eu estava preso a questões familiares mal resolvidas. Não fazia sentido rezar a Deus pedindo que Ele me tirasse de casa se, no fundo, eu não queria e utilizava como desculpa questões de ordem emocional que impediam de focar em minha vida e trabalhar ativamente para esta saída. A sabotagem de minha vida profissional era uma desculpa para me manter preso à esta situação. Não adiantaria, portanto, pedir em oração a solução de um problema que encontrava oposição a nível inconsciente.

          Minha oposição a este tipo de argumento é que ele parece limitar o poder da oração e, acima de tudo, a capacidade da ação de Deus em nossa vida. A cláusula pétrea das leis divinas é a liberdade humana. Deus jamais interfere em nossas decisões, a potência da vontade, que brota do espírito. Mas se nossa vontade profunda é mudar atitudes e comportamento, mesmo que nossa mente diga o contrário, por que ela não poderia prevalecer ajudado por um suporte espiritual divino? 

          A TIP sustenta que agimos condicionados por nossos registros. Condicionados, mas não limitados e muito menos determinados. Registros são as decisões-chave tomadas em momentos de nossas vidas que se tornam fundamento de comportamentos futuros. Estes fundamentos ficam mergulhados no inconsciente. Ou seja: o registro é uma decisão que tomamos e que pode ter como raiz um evento no período uterino, talvez mesmo no momento da concepção do óvulo. Portanto, uma oração que vai de contrário a um registro encontraria como barreira para sua eficácia a decisão sobre a qual este registro esta fundamentado. Uma ação divina neste sentido feriria o livre-arbítrio.


          Mas a pergunta que eu faço é: se eu realmente quero mudar um comportamento pela oração (utilizando, claro, um esforço deliberado para atingir meu objetivo), não poderia o próprio Deus remover este registro por via espiritual já que não temos consciência do que precisamos mudar realmente? A oração feita "em espírito e em verdade", como ensina Jesus, já traz no seu bojo a decisão profunda de seu prevalecimento. Destaco aí a palavra "verdade". A oração "em verdade" significa a intenção verdadeira e, portanto, abarca a totalidade da existência de determinado problema que é orado. Se o foco é o comportamento, então a oração tem eficácia sobre toda a estrutura deste comportamento, incluindo os registros inconscientes. É como se a pessoa trouxesse à consciência o obstáculo que impede a oração de transformar tal realidade: no confronto das intenções o da oração prevaleceria sobre este registro. A pessoa decidiria assim. Mas como disse: a oração deve ser "em verdade", e não um pedido ambivalente ou da boca para fora como muitas vezes fazemos.  

          Não estou dizendo aqui que o trabalho da TIP é desnecessário. Muito pelo contrário. Sou testemunha fiel da sua eficácia, principalmente porque sua técnica, a Abordagem Direta do Inconsciente (ADI), nos revela os pontos certos que devem ser abordados. A oração é muito mais eficaz se direcionada sobre estes pontos e mais eficaz ainda quando o registro é trazido à tona. A TIP pode ser feita sem a oração e a oração pode ser feita sem a TIP, mas certamente o segundo dinamiza o primeiro; e quem é distante das coisas do espírito descobrirá, pela TIP, a dimensão e o poder que as decisões espirituais (a dimensão noológica) têm sobre nossas vidas. Mente e espírito caminham juntos e se fortalecem mutuamente. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Como o matrimônio pode ser caminho de santidade: o caso de Nikolai Sheremetev

(Retrato de Praskovia, pintado por Ivan Argunov, servo de Nikolai, em 1802. No seu peito a medalha com o rosto do marido com quem recém se casara.)

          A cultura moderna erigiu o amor romântico como a forma de relacionamento ideal entre homem e mulher como se a relação fosse exclusivamente baseada num sentimento profundo e perfeito de entrega, paixão e sofrimento. A realidade, no entanto, é muito distinta do idealismo da ficção, tão presente no cinema, nas novelas e na literatura.

          O matrimônio é sim baseado no amor, mas também em muitas outras coisas, da necessidade de equilibrar e harmonizar os interesses, de trabalhar pelo bem do outro, de fazer sacrifícios. O amor é o desejo real de entregar-se ao outro, talvez o sacrifício mais profundo. O homem casado não tem uma esposa: ele é da esposa. Da mesma forma a mulher casada: ela não tem um marido, ela é do marido. Isto vale, segundo as possibilidades, para todos os casos da vida, inclusive na relação sexual: se o marido quer se satisfazer na cama, cabe à mulher satisfazê-lo; e vice-versa. O corpo de um pertence ao outro. O padre Paulo Ricardo, conhecido por suas aulas e vídeos de esclarecimento da doutrina católica e pelo seu perfil conservador, explica isto neste vídeo. O sexo visa a reprodução, mas também o amor, a união total. 

          A Igreja Católica vê o matrimônio como uma das quatro vocações existentes, sendo as outras três o sacerdócio (só para homens), a vida religiosa e a vida leiga consagrada. A grande massa é vocacionada ao matrimônio, e assim como as demais vocações tem como missão santificar a alma. Bem sabemos que a santidade não é vida boa, mas um caminho árduo de sacrifícios, a "porta estreita" que nos fala Jesus Cristo.

(Retrato do conde Nikolai)

          Um caso bastante específico e impressionante do que um matrimônio pode fazer com uma pessoa é o de Nikolai Petrovich Sheremetev. Conde que viveu na Rússia entre 1751 e 1809, Nikolai foi servo pessoal e amigo do imperador Paulo I e neto de Boris Sheremetev, último boiardo da Rússia. Boris era pessoa próxima do czar Pedro, o Grande, e fez fortuna com serviços prestados ao imperador ao longo de décadas. Fiel ao serviço da coroa, sua família recebeu terras, bens e honrarias e se tornou a segunda mais rica de toda a Rússia depois apenas da família dinástica dos Romanov.

          Segundo Orlando Figes no livro Uma história cultural da Rússia, Nikolai era mulherengo e costumava flertar com as servas que trabalhavam nas casas e palácios dos Sheremetev. Mas o aristocrata se apaixonou por uma delas, Praskovia Kovalyova-Zhemchugova, com quem se encontrou às escondidas até o casamento. Cabe especular até que ponto a serva submeteu-se à vontade do seu senhor, mas desde início sua relação foi marcada por dificuldades, principalmente pela necessidade de esconder os encontros dos olhos de outras pessoas. Praskovia teve de suportar os comentários e as piadas dos outros servos pelo envolvimento com alguém da aristocracia e as repreensões da família por viver um relacionamento incerto. Para protege-la e poder encontrar sua amada em privado, Nikolai alocou Praskovia na sua propriedade em Kuskovo, perto de Moscou, para onde viajava para encontrá-la, e depois construiu uma casa de madeira para ela. Mas com a ascensão de Paulo I ao trono, o conde foi nomeado camareiro-chefe do imperador e teve de se fixar definitivamente em São Petersburgo. Assim Praskovia voltou e passou a morar na mesma residência, a Casa da Fonte. Agora era a vez do conde lidar com a rejeição e raiva da aristocracia, que considerava um escândalo uma serva morar em sua casa. A família Sheremetev deserdou Nikolai, que ainda manteve suas propriedades. A rígida hierarquia social e a obsessão da nobreza russa por status dificultava muito o casamento com uma serva. Nobres e servos não formavam famílias publicamente, mas mantinham relacionamentos às escondidas e, ao exemplo da relação senhor-escravo no Brasil colonial, geravam filhos ilegítimos. Em 1801, Nikolai libertou Praskovia da servidão e casou-se com ela no dia 6 de novembro numa cerimônia secreta em uma pequena igreja na vila de Povarskaia, perto de Moscou.

(Casa da Fonte, principal propriedade da família Sheremetev. Símbolo de São Petersburgo, hoje sedia o Museu Anna Akhmatova, nome da poeta que viveu na casa entre 1926 e 1952.)

          O retorno de Nikolai a São Petersburgo e o casamento com Praskovia isolou o conde da vida pública, e poucos eram os amigos que mantiveram os laços de amizade, dentre eles o imperador Paulo I, que inclusive apoiou o relacionamento dos dois. A agora ex-serva e condessa sofria de tuberculosa e tinha uma saúde frágil. Depois de ter seu único filho, Dmitri, em 1802, sua saúde piorou, vindo a falecer três semanas depois. Praskovia, que viveu em torno de um ano casada, foi sepultada no Mosteiro Alexandre Nevski. O mais impressionante foi a presença das pessoas no enterro. Ou melhor: a falta delas. Como Paulo I fora assassinado, ninguém da corte esteve presente, bem como ninguém da nobreza e nem mesmo da própria família, os Sheremetev. 

          A tristeza e a amargura de Nikolai transformaram-se em ação que foi muito além da família e da aristocracia. Como descreve Figes no seu livro:

"Perdido de pesar, o conde demitiu-se da corte, virou as costas para a sociedade e, retirando-se para o campo, dedicou seus últimos anos ao estudo religioso e às obras de caridade em homenagem à esposa. É tentador concluir que havia um elemento de remorso e até culpa nessas obras de caridade - talvez a tentativa de ressarcir as fileiras sob servidão de onde viera Praskovia. Ele libertou dezenas de servos domésticos favoritos, gastou enormes quantias para construir hospitais e escolas de aldeia, criou fundos para cuidar de órfãos, fez doações a mosteiros para darem comida aos camponeses quando a colheita escasseava e reduziu pagamentos cobrados dos servos das suas propriedades. Mas o projeto mais ambicioso de todos foi o asilo que fundou em memória de Praskovia nos arredores de Moscou - a Strannoprimny Dom, que, naquela época, de certa forma, foi o maior hospital público do império, com dezesseis enfermarias masculinas e dezesseis femininas. "A morte da minha esposa", escreveu ele, " me abalou a tal ponto que a única maneira que conheço para acalmar o meu espírito sofredor é me dedicar a cumprir a sua ordem de cuidar dos pobres e doentes." Durante anos, o conde, abalado pelo pesar, saía da Casa da Fonte e andava incógnito elas ruas de Petersburgo, distribuindo dinheiro aos pobres. Morreu em 1809, o nobre mais rico de toda a Rússia e, sem dúvida, também o mais solitário. No seu depoimento ao filho, ele quase rejeitou por completo a civilização incorporada à obra da sua vida" (p. 70-71)

          No testamento ao filho, Nikolai escreveu, que sua paixão pelas artes, as coisas raras, "Não deixava a mais remota impressão na alma." E se questionava: "Para que todo este esplendor?"

          O solitário conde deixou para trás a opulência da nobreza e curvou sua riqueza para o bem do próximo. Encontrou sentido, infelizmente, pela dor, mas deixou um legado e um exemplo do que alguém com posses pode fazer por aqueles que necessitam. Esta foi a obra involuntária de Praskovia: fazer de Nikolai uma pessoa melhor, ou pelo menos fazer dele o instrumento de um legado e um exemplo. Se o conde dedicou-se à caridade por culpa, dor, fiel adesão ao segundo mandamento ou os três fatores juntos, pouco importa: o trauma da perda e a desilusão de uma vida falsa, a lembrança do amor verdadeiro e o sentimento de ter perdido tempo com coisas desnecessárias são razões mais do que suficientes para girar o leme e dar um novo rumo à vida. Sei por experiência própria que a perda de tempo por negligência ou decisões erradas dão uma sensação de urgência, a necessidade de encontrar, de forma tenaz e perseverante, um objetivo de vida. Parece que esta foi a experiência de Nikolai: encontrou numa ação substantiva e duradoura o preenchimento de um vazio e um pouco de alívio na dor que o dilacerava. Encontrou na caridade uma vida nova.


          Fiquei com forte impressão desta passagem do livro de Orlando Figes, talvez por ser alguém que demorou para descobrir que, de fato, eu não era vocacionado à vida religiosa. E que o casamento é uma via não só de santificação como de felicidade, que nunca é um oceano permanentemente calmo, mas recheado de tormentas onde um se torna o refugio do outro. E mais: a história do conde mostra a força que um matrimônio fincado no amor verdadeiro tem para transformar uma vida. Nikolai se viu impelido a tomar uma nova atitude, forçado, também, pela pressão social. Mas foi uma atitude que não pode deixar de ser admirada. Ela é a consumação do Evangelho de Mateus (25, 31-46) onde Jesus Cristo anuncia a separação dos rebanhos. Salvam-se os que fazem a caridade, os que vêem Ele nos outros. Se Praskovia não fez de Nikolai um santo (talvez longe disso), ao menos mostrou-lhe o caminho.  Devemos ser o farol para nossa cara metade.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Brasil: um clube ou uma nação?

(Cristo Redentor e Maracanã: símbolos de um país.)

          Uma das coisas que mais me impressiona no Brasil é a capacidade do futebol de mobilizar as pessoas. Neste exato momento em que escrevo ouço o foguetório de torcedores do Grêmio comemorando a vitória do time contra o Barcelona do Equador pela Libertadores da América. Há poucas horas eu estava num encontro com amigos, e um dos temas que agitavam a conversa era o jogo, e depois alguns foram embora para acompanhar a partida.

          Isto não é nada se comparado ao que acontece na Copa do Mundo. Me recordo da Copa de 1994, época em que eu era aluno do ensino fundamental, quando as aulas era suspensas no meio da tarde para todos acompanharem os jogos do Brasil. Também me recordo, na Copa de 2006, quando andava a pé por uma avenida de Porto Alegre em direção ao Centro com parte da cidade engarrafada antes das 16 h devido à pressa das pessoas para assistir ao jogo do Brasil contra o Japão. Outro episódio interessante foi em 2010: exatamente num dos jogos da nossa seleção eu estava deitado num divã numa sessão de psicanálise. Enquanto o Brasil mergulhava nos campos da África do Sul, eu mergulhava no meu inconsciente. Apesar da tentação de querer assistir ao jogo e me submergir na emoção da massa eu sabia dos efeitos duradouros do trabalho que na época realizava.

(Rua da Manaus enfeitada para a Copa de 2014: mobilização em massa em torno do futebol.)

          Olavo de Carvalho acertou em cheio quando afirmou em um de seus podcasts no Blog Talk Radio que o Brasil não é um país, mas um clube. Uma sociedade que carece de coesão compensa sua carência emocional e sua falta de unidade num apego superficial e num ufanismo tosco, que pode ser tanto os louvores à Floresta Amazônica quando à seleção brasileira de futebol. Esta carência emocional também se apresenta no poder. Para Gilberto Freyre, a sociedade brasileira é uma espécie de corpo mole que carece de uma estrutura, uma firmeza que garanta ordem e capacidade de mobilização. É também um povo com gosto pelo sadismo, o vitimismo e o sacrifício exagerado. Daí a necessidade do brasileiro de um poder, uma mão de ferro que venha lhe guiar e ao mesmo tempo justificar seu caráter sofrido, como comenta o sociólogo recifense em Casa-Grande & Senzala:
"...no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar de 'povo brasileiro' ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático.
Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado de 'princípio de Autoridade' ou 'defesa da Ordem'". (p. 114) 
          O futebol ajuda a compensar em parte esta falta de unidade ao mesmo tempo em que mexe e justifica a carência emocional do povo. Sentimo-nos como participantes de uma emoção comum, uma nação que se entorpece emocionalmente com os desafios e as conquistas de um time. Na falta de um objetivo comum, de uma imagem de país, de um plano para o futuro, de um verdadeiro sentimento comum em torno destes princípios (veremos que Max Weber definiu "nação" como uma "espécie particular de comoção" e Benedict Anderson como uma representação cultural, mas ambos concordam no compartilhamento de valores e num destino político comum), cabe a nós nos apegarmos ao que nos resta ou ao que achamos ser importante, mesmo que seja evidentemente banal.

          Enquanto faltar uma alta cultura que dê ao povo brasileiro uma verdadeira imagem de si mesmo, continuaremos no apego às caricaturas passageiras. Não há nenhum problema em gostar ou  mesmo se mobilizar pelo futebol (eu tenho um time para o qual torço e dificilmente perco os jogos da Copa do Mundo), mas há de se perguntar por que algo tão fugaz e superficial é capaz de mobilizar e mexer tanto com a maioria das pessoas de forma que nenhum outro poder é capaz de fazer. Carecemos não só de sentimentos verdadeiros, mas sentimentos profundos, um vínculo que nos faça sentir parte de uma família que lute diariamente para honrar a camisa que veste. Uma nação é muito mais do que uma "pátria de chuteiras" ou um clube: é o sentimento de pertença a um grupo que compartilha dos mesmos valores e olha para o seu destino como um projeto comum a todos, muito além dos noventa minutos de jogo. 

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O dilema do trabalho: tanto esforço para quê?


          Ao longo de toda a minha vida pensei que a atividade profissional tivesse como objetivo principal "fazer o que se gosta". Demorei muito para ver que isto não era verdade. Pior: arraiguei em minha mente a ideia de que o único trabalho viável era aquele vinculado a este gosto ou a uma necessidade intrínseca. De fato, o trabalho é vinculado a uma necessidade (quem não trabalha não come ou depende do trabalho dos outros), mas isto não tem nada a ver com o gosto daquilo que se faz. Prazer e necessidade estão dissociados, e é melhor trabalhar com desgosto para matar a fome do que morrer de inanição enquanto se evita um ato desagradável. 

          É muito provável que a maioria das pessoas já tenha alguma vez se perguntado "de onde veio tudo isso?" enquanto olhava para sua cidade, o local em que vivia ou as paisagens que avistava. Tudo depende estritamente do esforço humano. Esta é uma das ideias base da obra A Rebelião das Massas, de Ortega y Gasset: o mundo que "está aí" só está aí por um enorme esforço combinado de gerações passadas ao qual o homem médio moderno, o "senhorzinho satisfeito", ignora e dá pouca importância. É muito fácil desrespeitar as leis quando não se tem em mente que o esforço de se organizar uma sociedade, cuja ordem está formalmente expressa nas leis, é o que mantém de pé a sociedade na qual vivemos. Se alguém assalta uma loja ou joga lixo no chão é porque ignora, guardada as devidas proporções, o esforço combinado para que um produto chegue a uma prateleira ou o trabalho organizado de dezenas de pessoas para manter o ambiente minimamente belo e agradável.

(Hong Kong, uma das cidades mais ricas e desenvolvidas no mundo. Grande esforço sem sentido?)

          Toda a vida que possuímos depende de uma combinação de esforços dos antepassados, muitos deles desagradáveis e impostos pelas suas próprias escolhas. O conforto é, no fundo, uma ilusão fundamentada no esforço precedente. Mas as pessoas das gerações passadas escolheram isso, e as pessoas de hoje também. É a vida voltada à busca do conforto, da posse, da criação de riqueza para o bem-estar físico e mental, para o prazer, para a misteriosa "felicidade",  para o progresso cuja grande realização foi dar à humanidade um maior domínio sobre a natureza e satisfazer os desejos mais profundamente humanos. Vivemos a "era burguesa" do livro O Fim de Uma Era, de John Lukacs. Para o historiador húngaro, a ideia de um progresso histórico baseado no desenvolvimento da ciência desembocou no mundo atual, como se a ciência pudesse se desenvolver de forma cumulativa e linear, levando o mundo sempre "para frente" e "superando" os tempos passados. Mas este mundo, como bem coloca, está em cheque. Não porque o trabalho para a conquista deste mundo desenvolvido seja desagradável, mas porque o domínio da natureza e da própria condição humana tem seus limites.

          O trabalho não é só prazer, muito pelo contrário, mas também não é puramente um esforço em direção ao progresso, à conquista do conforto e à realização de nossos desejos. No dia-a-dia vivemos a contradição de que quanto mais nos esforçamos no trabalho mais desejamos o seu fim, ao exemplo celebrado final de semana, como se o trabalho fosse intrinsecamente ruim e o ócio bom. O trabalho é um esforço por algo maior, maior mesmo do que a própria necessidade de sobrevivência ou a posse de fortunas. Afinal, que sentido há numa atividade que se resume a pastar para comer ou conquistar conforto em nome do prazer? O corpo morrerá e todos os bens aqui ficarão. A alma que um dia habitou a Terra irá embora sem os espólios de seu esforço. 

          Creio que o trabalho seja um sacrifício para a Eternidade. É para o Alto que nossos corpos devem se dobrar, mesmo porque nem mesmo nossos corpos são nossos, e nossos esforços se resumirão a uma fagulha frente ao Mistério que abrange e se perde nos confins de nossa existência mundana.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Ignorância e desprezo: um microcosmo do inferno


          No último dia 11 de outubro, escrevi a seguinte mensagem no Facebook:

"As pessoas imaginam que o oposto do amor é o ódio. Não é. O oposto é o desprezo. Não há coisa pior no mundo do que alguém, a não ser por uma razão muito justa, lhe dar as costas de graça, por besteira ou mesmo por má índole. Confesso que há uma pessoa que faz isto comigo toda a vez que me vê, não por má índole, mas sem razão clara. Prefiro não especular o real motivo da atitude, mas ponho a mão no fogo: é uma sensação absolutamente horrível, que exige de nós uma defesa psicológica e espiritual firme e, dependendo da situação, uma esforço recíproco de indiferença. Do contrário o sentimento é de ser simplesmente destruído, de aniquilação interior completa, e o que é pior, de graça, sem motivo algum. Não é à toa que no inferno Deus não fica nos torturando: Ele simplesmente está ausente. O que mata é a falta de amor, o total desprezo. É a coisa mais triste de nossa existência."

          Santo Agostinho já dizia que o Mal não é uma substância: é a ausência do Bem. Por isso mesmo a ação do demônio, mais do que querer nos dominar com sua presença maléfica, tem como principal objetivo nos afastar de Deus. Mesmo porque o inimigo não pode agir onde Deus está presente, ou pelo menos ativo, o que implicaria na Sua presença. A ausência do Bem, a perda completa da presença divina, é a ausência do amor, já que o amor pressupõe o desejo de união. Só ali o demônio pode habitar em definitivo.

          Quando alguém diz "eu te amo" esta pessoa está dizendo "quero ser um contigo"; quando esta mesma pessoa diz "eu te odeio" ela pode até desejar sua ausência, mas precisa de você para externar seu ódio. Você precisa estar presente. Mas a ignorância é um mal que está em outro patamar: quando alguém ignora o outro solenemente, seja fingindo a sua ausência, dando-lhe às costas, desviando o olhar ou agindo com total e absoluta indiferença, o que temos aí não é o amor que deseja a união, nem mesmo o ódio que exige que seu adversário esteja presente: aí temos o nada, o não-presente, o não-ser, a negação absoluta, o oposto da existência. É um não-sentimento, uma não-ação, o Bem que se ausenta por completo. A ausência do Absoluto, do Eterno, de Deus. Em suma: o inferno.

(A espanhola Teresa d´Ávila, santa e doutora da Igreja: experiências místicas essenciais para entender a relação do homem com o mundo espiritual, de Deus aos demônios.)

          Santa Teresa D´Ávila descreveu sua experiência mística do inferno em O Livro da Vida, autobiografia onde apresenta várias de suas experiências místicas e espirituais. Depois de descrever o local que os demônios estavam preparando caso fosse condenada (um buraco encravado na parede) e como seriam as dores do corpo (dado que a alma tem estes registros), a santa destaca as dores da alma, que considera infinitamente piores do que as primeiras:

"Pois então, isso não é nada em comparação com a agonia da alma. Um aperto, um sufocamento, uma aflição tão sensível e com tão desesperada e aflita tristeza que não sei como explicar. Porque dizer que é como estar sempre arrancando a alma é pouco, porque ainda pareceria que outro é que acaba com a vida. Mas aí é a própria alma que despedaça." (p. 297, capítulo 32)

          Não é coincidência que meu relato utiliza "destruição" e "aniquilação interior" para descrever uma recente experiência de desprezo, assim como Santa Teresa fala que a alma se "despedaça" ao estar no inferno. Primeiro porque já havia lido o livro dela em 2011 e segundo porque, ao escrever a mensagem, lembrei deste trecho, que é a melhor tradução possível para expressar o sentimento de ser solenemente ignorado por alguém que se tinha uma relação íntima até pouco tempo e, sem saber exatamente porque, resolveu fingir que você está numa cova. A sensação é absolutamente horrível, um misto de agonia e tristeza que não possui saída e acaba por quebrar as nossas pernas. Guardadas as proporções, este é o sentimento, esta é a situação de alguém que lhe dá as costas e lhe trata como nada, no sentido mais estrito da palavra. É uma dor sem saída e aparentemente sem fim, um microcosmo do inferno.

          Por isso é tão importante e crucial o tratamento decente para com o próximo, o cumprimento do segundo mandamento. É ali que Deus habita, e por isto mesmo Jesus Cristo ensina que o primeiro e segundo mandamentos estão unidos num só: onde há Deus não há ignorância; onde há amor ao próximo Deus necessariamente ali está se manifestando de forma que você e seu próximo sejam um. O que fere uma pessoa não é necessariamente o ataque, mas a ignorância, uma agressão infinitamente mais poderosa do que o ódio e um antídoto perfeito à presença divina.   



domingo, 8 de outubro de 2017

Independência do Sul. Mas para quem?


          Não entendo patavinas sobre o movimento nacionalista na Catalunha e a crise política na Espanha, mas uma coisa é clara: o nacionalismo hoje é instrumento de poderes muito superiores. Ele interessa à União Europeia apenas no sentido de mobilização em torno de uma ideia de "Europa", mas é problemático quando um Reino Unido resolve se retirar legitimamente do bloco ou uma região como a Catalunha entra em agitação nacionalista. Ao mesmo tempo, a Rússia financia e dá apoio político a toda a sorte de movimentos separatistas realizando conferências com seus líderes e abrindo embaixadas de países que não existem, como a Novorrosiya e a Califórnia, para enfraquecer as potências ocidentais, enquanto põe na cadeia (ou mata) seus dissidentes separatistas (duas guerras na Chechênia não deixam dúvidas quanto a isto).

          No caso da Catalunha, a União Europeia não tem tomado posição e mantido o silêncio. Por um lado ela defende a liberdade de expressão e o direito de voto, mas do outro tem receio de que uma Catalunha independente aqueça outros movimentos separatistas dentro do bloco. Já a Rússia tenta expor através da imprensa as fraquezas da UE: anuncia o direito dos catalães à soberania e ao mesmo tempo denuncia a hipocrisia de um Ocidente que fala em democracia mas reprime sua dissidência interna. Acusa também as potências de estimularem a independência de outras regiões quando lhe convém. Até hoje os russos não engoliram a independência do Kosovo em 1999, então região da Sérvia, aliada russa nos Bálcãs, e sempre tocam no assunto quando acusam os ocidentais de hipocrisia.

(Euromaidan, na Ucrânia: apoio do Ocidente e reação da Rússia. Independência difícil.)

          Na Ucrânia a situação também reflete esta oposição Ocidente-Rússia e a instrumentalização da soberania do país pelo poder globalista e o poder russo: de um lado o apoio explícito de lideranças políticas do Ocidente aos protestos conhecidos como Euromaidan que levaram à queda do governo Yanukovich e do outro, em resposta ao primeiro, a anexação da Crimeia e o estopim da guerra pela Rússia através da mobilização de milícias separatistas. Historicamente dividida, a Ucrânia se tornou o Estado-pivô da luta entre os dois lados.

          Assim como se observou recentemente em outras regiões (Timor Leste em 1999, Sudão do Sul em 2011), uma separação do Sul do Brasil não passaria batida aos olhos do mundo. Ninguém parece saber (e eu também não sei) quais seriam os reais efeitos caso o movimento conseguisse atingir seu objetivo. Quando vejo alguém entusiasmado com o slogan "O Sul é o meu país" logo me pergunto se esta pessoa sabe a quem está servindo ao defender esta causa. Da ONU aos grandes bancos, o Brasil já cede docilmente a qualquer pressão internacional, quanto mais cederá uma república menor que  é fruto dele. 

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Bye bye, Porto Alegre

(Porto Alegre vista do alto. Uma imagem sugestiva.)

          Durante toda a minha infância e juventude nutri um apego pela cidade onde nasci e vivi por toda a vida. Porto Alegre, para mim, sempre foi uma referência de vida, o locus onde transcorreu grande parte dos acontecimentos gravados em minha memória.

          Desde o início da década de 2000 tenho tido más experiências que de alguma forma se relacionam com a cidade, principalmente nos últimos anos. Falo da violência, da má educação das pessoas e do clima. Nunca a cidade foi tão violenta como agora, nunca os verões foram tão quentes (e os invernos tão fracos) como de 2012 para cá, e nunca tive de lidar com tanta gente estúpida.

          Não cabe aqui explicitar também as razões de minha mudança de visão de mundo, mas por diversos motivos criei um certo desapego à cidade e às minhas referências pessoais. Este pensamento está condensado num comentário que fiz no Facebook:

"Há uma semana atrás listei alguns itens que podem, de fato, me tirar do Brasil um dia, ou pelo menos fazer com que eu coloque um pé fora (algo que desejo realmente). Mas uma coisa é certa: VOU DAR NO PÉ de Porto Alegre. Na pior das hipóteses vou me refugiar num lugar distante do núcleo urbano da cidade, um foco de incomodações desnecessárias. Quando era guri me imaginava vivendo aqui, com aquele sentimento de apego ao local onde nasci. Hoje cada vez mais vejo que este não é o meu lugar." 

          Os itens que me referia ao citar o Brasil eram violência, falta de respeito das pessoas e o clima. Em se tratando do clima, morar em Porto Alegre é até um privilégio, dado que, apesar do verão desagradável que muitas vezes me tira o humor, gosto do frio e há muitos dias bons. 

          O que me fazer realmente querer sair da cidade é a violência e, claro, a má educação geral. E aqui tem muita gente que passas dos limites e vai à estupidez. Mas acontece que durante a vida os acontecimentos marcam a experiência de um lugar. Fora meu grupo de oração, o São José, algumas boas amizades bem cultivadas e meu curso de mestrado (acrescentaria ainda a recente experiência como corretor numa imobiliária, uma surpresa mais do que agradável), nos últimos quinze anos colecionei um oceano de más experiências, desajustes e frustrações. Cansei disto. Não consigo olhar para esta cidade com o carinho que olhava antes, com a diferença de que não sei se vou voltar pra casa sem que um motorista me mande tomar no cu ou sem que um bandido me fure a cabeça.

          O sentimento de desajuste talvez seja o produto mais evidente desta combinação de mudança de visão de mundo com uma vida urbana opressiva. A cidade é um ambiente anti-espiritual matutado pela brutalidade do concreto (e pelo péssimo gosto dos arquitetos) e pela impessoalidade das regras das mais desnecessárias, típicas de vida moderna e agravadas pela mentalidade burocrática brasileira. 

          A vida espiritual, por outro lado, me mantém em pé. Sinto-me constantemente protegido tanto da violência quanto do desrespeito alheio. É como se eu fosse constantemente zelado por uma presença providencial que me guiasse (e guiasse também as outras pessoas) para evitar choques psicológicos e emocionais desnecessários, bem como de gente má intencionada. Na verdade não é "como se eu fosse" zelado. O correto a dizer é, sim, eu sou zelado. Falo, é claro, de Nossa Senhora.

          Queira Deus que um dia eu fixe minha vida num local verdadeiro. E quando falo verdadeiro digo longe da excessiva artificialidade da vida urbana, receita infalível para esterilizar a alma com a estética da feiura, a amputação da simbologia do mundo natural e a pressão psicológica pelo cumprimento constante de regras impessoais, senão absurdas. São poucas as pessoas que resistem a isto sem se deformarem de alguma forma. Acredito que eu resisti, mas saí bem torto. Minha felicidade não mora aqui. Seu pleno cumprimento não exige uma luta contra uma realidade artificial geradora de estúpidos e criminosos. É mais simples manter-se firme no propósito e, no tempo certo, dar tchau e ir embora.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Ser luz no mundo e ator da História


 
          Quando criei meu blog sobre a Rússia em junho de 2015, tinha como objetivo investigar os pormenores da política, história e cultura deste país para entender alguns eventos que envolviam a Rússia e o mundo. Uma das motivações para estas investigações foi minha experiência como aluno de mestrado, realizado pelas Ciências Sociais da PUCRS entre 2010 e 2012.
 
          Durante o curso realizei minha dissertação de mestrado, e ao longo de todo o ano de 2011 e início de 2012 realizei minha pesquisa de campo, onde fiz em torno de 45 visitas a 19 hospitais de Porto Alegre (o trabalho versava sobre a religiosidade em hospitais) e entrevistei 28 pessoas. Após o mestrado percebi o que já observava durante minha pesquisa de campo: que os acontecimentos históricos dependiam de decisões, e decisões são feitas por pessoas, indivíduos, que em algum momento decidem tomar a decisão A para alcançar o resultado B. Como nem sempre as coisas saem conforme o esperado, muitas vezes o resultado é C, e não B.
 
(Segunda edição brasileira do livro de Peter Berger e Thomas Luckmann.)
 
          O mais importante, porém, é atinar para a origem dos acontecimentos: há uma pessoa ou um grupo de pessoas a partir do qual surge uma ideia e, daí, uma decisão, que se transforma em ato conforme grupo ao qual ela pertence leva adiante sua intenção. Utilizo aqui uma linguagem coloquial que caberia a uma investigação mais profunda na Filosofia da História ou na Sociologia. Acredito que o livro de Peter Berger e Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade, ajude a entender um pouco as contingências que permitem que uma decisão seja levada adiante. Afinal, dizendo o óbvio, vivemos em sociedade e temos uma vida cotidiana, a "realidade por excelência" nas palavras dos autores, e estamos limitados ao que eles chamam de "mundo escuro", a realidade que está além de nosso conhecimento. Dispomos de recursos limitados (conhecimento, tempo de vida, condição econômica, física, psicológica) para tomar tais decisões. Dispomos de um corpo, certo conhecimento adquirido de experiência e estudos, um círculo de relacionamentos que permite aplicarmos nossas ações sobre outras pessoas e tentar propagar seus efeitos conforme a intenção inicial, recursos físicos para isso (corpo, telefone), e assim por diante. Resgatando novamente Viktor Frankl, o que importa é que independente do local e da cultura em que vivemos nós tomamos decisões.
 
          Aqui entra meu último texto neste blog, onde comento sobre minha experiência na TIP e minha decisão de ser "luz no mundo". É claro que minha decisão não me faz uma pessoa boa por si só, muito menos alguém melhor do que os demais, mas se a expectativa é que no mínimo eu tenha uma vida decente preciso antes de mais nada decidir em ser luz, senão para o mundo, ao menos para mim mesmo. "É infeliz quem decide ser." Esta é uma frase que certamente já ouvi da minha psicóloga da TIP, não necessariamente nesta ordem. Esta decisão é, em muitos casos, a nível inconsciente.
 
          Nossa decisão mais profunda é também a decisão que orientará nossas ações. Isto na TIP é chamado registro. O registro não é a memória de um acontecimento, mas a decisão em dar determinada resposta a uma determinada experiência. Esta resposta torna-se o modelo de resposta a situações no futuro que ativem o registro. Mas este registro só existe porque nós decidimos adotá-lo como nosso. Na TIP, utilizando a técnica da ADI, é preciso se conscientizar do registro que queremos nos livrar e buscar um outro, desta vez positivo, que tenha sido decidido em outra situação similar, substituindo o primeiro pelo segundo. Em muitas ocasiões pude ver que muitos projetos de vida que eu tive no passado foram abortados ou se tornaram insustentáveis porque, inconscientemente, eu havia decidido, ainda no útero materno, rejeitar o mundo que eu concebida como ruim e insuportável. E já que o mundo lá fora era uma droga, então que eu tornasse tudo um inferno mesmo. 
 
          Acontece que na decisão de "ser luz" todos os meu projetos de vida passaram a ser afetados (tomo isso como hipótese, dado que este é um evento muito recente, de segunda-feira passada, e hoje é recém quarta-feira). Isto quer dizer que decisões futuras serão afetadas por esta nova decisão, este novo registro, inserido nas contingências em que eu vivo, mudará pelo menos em parte o rumo de minha vida. Assim espero, e é isto que a TIP nos propõe.
 
(Ir à guerra - ou detê-la - depende de decisões, apesar das contingências que possam dificultar sua execução. Na foto, soldado pró-Rússia na Ucrânia.)
 
          A decisão de ser uma nova pessoa impacta diretamente suas ações, e aí voltamos ao contexto do livro de Berger e Luckmann: o impacto numa sociedade dependerá de decisões de certas pessoas que tomem a iniciativa de mudar o curso dos acontecimentos segundo suas limitações. Todo mundo gostaria de acabar com a violência, por exemplo, mas quem dispõe de meios capazes de eliminá-la ou ao menos contê-la? Quem tem conhecimento e, principalmente, meios de ação para tal? Foi esta realidade que encontrei no meu trabalho de mestrado, quando trabalhei com o ambiente hospitalar: decisões administrativas e iniciativas pessoais nem sempre chegavam ao resultado esperado, principalmente porque as pessoas não concordavam, ou seja, decidiam que certas atitude eram erradas e agiam contra. Quando procuro investigar algo sobre a Rússia não estou lá para falar com as pessoas, e busco o caminho inverso partindo do geral para descobrir o particular. Se vasculharmos as causas da guerra na Ucrânia, por exemplo, encontraremos muitos atores que aparentemente nada tinham a ver com a guerra, mas que foram determinantes para que ela acontecesse. Não me consta que conflitos armados aconteçam porque os canhões começaram a disparar sozinhos. Alguém puxou o gatilho, e tinha razões para isso, fossem elas justas ou não.
 
          Pequenos ou grandes, visíveis ou invisíveis, pessoal ou mundial, tudo o que acontece é decisão nossa. A História é uma teia de atos precedidos por decisões. Ninguém se levanta da cama só porque acordou. Há uma razão para sair para trabalhar; a uma razão para começar ou parar uma guerra. Quando tomei a decisão de "ser luz" no mundo, não pretendia fazer nada de excepcional, mas não haverá mudança no rumo dos acontecimentos que nos afetam negativamente minha vida se não decidir por agir na direção contrária. E falo isso sem qualquer pretensão de grandeza, pois não só considero inviável como rejeito abertamente a ideia de um "mundo melhor" sem antes melhorar a mim mesmo, e rejeito ainda mais esta ideia com base num plano universal que é inevitavelmente imperfeito dada as contingências dos planejadores, tão limitados quanto qualquer um de nós. As decisões são necessárias tanto para o levantar da cama quanto para o planejamento de uma guerra. Tudo o que fazemos fazemos porque queremos e arcamos com as responsabilidades de nossas ações.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A decisão de ser luz no mundo


          Nesta semana realizei duas sessões da Terapia de Integração Pessoal (TIP), que utiliza a técnica da Abordagem Direta do Inconsciente (ADI), terapia criada pela psicóloga gaúcha Renate Jost de Morais, falecida em 2013.

          A ADI, como diz o nome, permite uma leitura direta do inconsciente através de uma técnica de mergulho da consciência nesta área da mente. Conduzido por um preceptor (psicólogo), entramos em diálogo com o "sábio", o eu original, saudável e perfeito, que nos mostra os pontos-chave que devem ser analisados e curados.

          Não vou contar o que vi no meu inconsciente, mas a decisão que tomei com base numa situação desagradável: decidi, ainda nos seis meses de gravidez (a ADI permite que observemos nossas decisões desde a concepção da vida humana) em dar as costas ao mundo e trabalhar para "ferrá-lo", se eu puder assim dizer. Em outras palavras: já que o mundo exterior era um horror e eu não tinha outra solução a não se viver nele depois de nascer, então que eu fizesse dele um inferno. No ventre eu estava de costas para o lado de fora da barriga e com a cabeça abaixada em direção ao corpo de minha mãe, como que não suportando o "horror" do lado de fora.


          Minha decisão foi tomada numa situação de estresse entre as pessoas que estavam no ambiente (no caso, meus pais e um terceiro não identificado) confirmando outras experiências anteriores de que, sim, o mundo era uma porcaria que não valia a pena viver.

          O problema é que tomando uma decisão, uma atitude na qual eu me tornava inimigo do mundo, todas as esferas de minha vida, social, privada, profissional, familiar, sexual, etc, se tornavam bem mais difíceis e complicadas. Neste dia eu estava preocupado com minha vida profissional, que nunca foi bem sucedida. O problema, como foi percebido, estava muito mais embaixo, e era muito mais amplo do que uma mera questão profissional ou de vivência prática do cotidiano. 

          Quando indaguei meu sábio sobre uma saída para isso, sua resposta foi um sentimento de tristeza. Acima dele foi visto uma nuvem, uma camada escura que não apenas obscurecia seu ser como não tinha nada a oferecer que pudesse ser aproveitado. Sua tristeza era consequência do fato de não ver saída para este problema. Num mundo maldito, numa experiência de vida marcada por um pessimismo que havia contaminado, em maior ou menor grau, todas as esferas de minha vida real, não havia setor ou "lugar" que permitisse investir minhas forças e encontrar um rumo para minhas escolhas.

          Mas eis que o sábio, perfeito em sua condição, viu o que poderia ser feito: se o mundo era um horror, se muitas coisas estavam fora do lugar, com pessoas em discórdia, sociedade em crise, dificuldades para todo o lado, então que eu fosse a luz num mundo escuro. Que o sábio (eu, meu eu real) fosse fator de iluminação e solução para os problemas reais, a começar por si mesmo, decidindo torna-se novo para criar uma vida nova e ser luz num mundo velho e corrupto. Disso, retornei ao ventre materno e me vi voltando-me ao mundo e saindo do ventre na figura de uma criança que, de pé e fora do ventre, prefigurava-se numa pessoa luminosa envolvida por um halo estrelado em volta da cabeça, um misto de Menino Jesus com Nossa Senhora.

          Esta foi a inspiração para o texto que escrevi no Facebook e que reproduzo abaixo:

"Quando vemos que as coisas a nossa volta e na vida pessoal estão erradas, ou tortas, ou se tornando um inferno, cabe a nós, individualmente, sermos luz no mundo. Quando falo em "ser luz" não é ser bonzinho ou queridinho, mas o FATOR de iluminação, conscientização e acima de tudo EXEMPLO para aquilo que propomos. Isso, ao contrário do que muitos podem pensar, não é mudar o mundo, MUITO MENOS uma proposta e fazê-lo. Primeiro porque a mudança é uma atitude, uma postura frente ao mundo, a si mesmo e a Deus. Por isso Viktor Frankl dizia que éramos totalmente responsáveis pela nossa vida: cada pessoa vive em circunstâncias que lhe são próprias, e as respostas aos desafios de sua vida cabem unicamente a ela e a ninguém mais. Ser luz no mundo é, antes de mais nada, assumir, decidir pela nova atitude frente aos desafios que nos cercam e os medos interiores. Só aí, depois de muito esforço, podemos fazer algo pelo próximo, e ainda assim aos poucos. Querer ir longe demais só sendo santo ou revolucionário. O primeiro venceu todas as etapas a custa de seu sacrifício; o segundo queimou etapas e sacrificou os outros."

(O ódio a alvos genéricos como "a vida", "a humanidade", "a sociedade" é projeção de ódio a si mesmo e/ou de fatores que parecem sem solução.)

          Não é possível mudar a vida a não ser decidindo pela mudança de personalidade, o que é óbvio. Mas ocorre que a ânsia de ter uma vida feliz nos joga não apenas na frustração como no sentimento de revolta que, não podendo ser canalizado contra si, acaba por ser descarregado no mundo. O século XX nos deu muitos exemplos de líderes que propunham consertar os erros da humanidade mediante o ódio e a força, ódio esse que no fundo era ódio à condição humana e acima de tudo a si mesmos, reformadores do mundo, que como demônios reproduziam o inferno à sua volta. Não há felicidade na queima de etapas. Somos chamado à santidade pela própria ordem das coisas.




terça-feira, 27 de junho de 2017

Você existe? Agradeça também a Nossa Senhora

(A Anunciação, pintura de Leonardo da Vinci, 1472-1475.) 

          Nesta semana fiz duas postagens no meu Facebook que gostaria de colocar aqui porque são complementares. 

          "A aceitação de Maria à oferta transmitida pelo arcanjo Gabriel de conceber Jesus é um ponto de partida na salvação de nossas almas e um momento decisivo na História mundial. Ponto de partida da salvação porque com a vinda de Jesus são resgatadas as almas da mansão dos mortos e estabelecida a via de salvação às pessoas de sua época e das épocas futuras (inclusive eu, você e todos nós); momento decisivo na História mundial porque da vida e do legado Jesus surgiu o cristianismo, que serviu de base de civilizações inteiras principalmente na América, Europa e no mundo eslavo. Nossa Senhora é como a chave que ao girar liga o motor de um carro: sem Ela não haveria viagem, não haveria futuro, não haveria vida. Deus, claro, poderia ter um plano B caso Nossa Senhora dissesse "não" ao arcanjo, mas neste plano nós muito provavelmente não estaríamos aqui. Nossa gratidão a Ela deve ser profunda e eterna."
          "Na hipótese de que Nossa Senhora tivesse recusado a oferta do arcanjo Gabriel e Deus não tivesse um plano B, nós definitivamente não existiríamos. A questão é simples: Deus não colocaria Seus filhos num mundo em que não houvesse uma via de salvação, condenando automaticamente todos ao inferno. Isto seria totalmente contrário ao amor divino, que é infinito e busca todas as formas possíveis de união com os seres que criou. Se tivéssemos de ser criados para sermos condenados, Deus simplesmente não nos criaria, do contrário entraria em contradição Consigo mesmo. Por definição, Deus é unidade, é harmonia, é coerência. Ele não pode ser auto-contraditório, o que faria Dele um deus falso, um deus que mente ao dizer que é amor. Se estamos aqui é porque podemos estar com Ele um dia, e o sim de Nossa Senhora foi o que permitiu a vinda de Jesus Cristo, por isso, a possibilidade um dia O encontrarmos. Agradeça também a Ela por sua vida."

          O papel de Nossa Senhora em nossa vida é, antes de tudo, o de permitir que viéssemos ao mundo. Ela poderia ter bloqueado os planos de Deus, que teria de buscar alternativas e, portanto, alterar o curso da História humana para que não se perdesse Seu plano de salvação da humanidade.

          A mente divina é insondável, e Seus propósitos são conhecidos apenas com a descoberta do sentido dos acontecimentos em nossa vida. Portanto é impossível saber se nós realmente estaríamos aqui caso Deus tivesse um plano B após um "não" de Nossa Senhora à oferta do arcanjo. De qualquer forma, Ele quis que Seu plano passasse por Ela. Deus fez de Maria a pessoa que permitiu que viéssemos ao mundo dentro do plano que Ele traçou para nós. A Deus devemos nossa vida, e a Ela também.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

O Papa não é pop


          Em maio do ano passado publiquei no Facebook a notícia sobre uma declaração do Papa Francisco onde ele lançava uma crítica às pessoas que ajudam animais mas são indiferentes ao sofrimento alheio: "Quantas vezes vemos pessoas que cuidam de gatos e cães e depois deixam sem ajuda o vizinho que passa fome? Não se pode confundir com a compaixão pelos animais, que exagera no interesse para com eles, enquanto fica indiferente perante o sofrimento do próximo”, disse. Seu foco era a distinção entre a verdadeira caridade e a comiseração, um sentimentalismo superficial que expõe uma caridade falsa. O exemplo dado pelo Papa recebeu minha aprovação explícita com a alcunha "Boa, Santo Padre!"

          A declaração teve grande repercussão na imprensa e despertou a fúria de muita gente (o que já era esperado por seu conteúdo).

          Algum tempo depois da minha publicação, uma "amiga" fez duas grandes postagem no meu perfil começando com a palavra "lamentável", dizendo que o trabalho de ajuda a animais que realizava não a obrigava a ajudar pessoas e que já fora muito julgada por este tipo de crítica, que afirmava ser um falso dilema. Mas sua crítica estava errada. Francisco não condenou as pessoas e sim deu um exemplo para diferenciar caridade de comiseração, e ainda assim este exemplo não consistia no falso dilema. 

          O que chamou minha atenção, porém, foi uma postagem noutro perfil: ela demonstrava decepção pelo Papa e dizia não ter mais a mesma admiração que antes tinha por ele.

          Imediatamente surgiram algumas perguntas em minha cabeça: que admiração é esta por um líder religioso que é desmontada por uma simples declaração? Por que uma pessoa reagiria desta forma por uma declaração sobre conduta e que não tinha alvo específico, não atentava contra qualquer pessoa? O Papa precisa de popularidade? Ele não pode desagradar às pessoas?

          Fiz o relato acima porque este foi um exemplo muito claro da forma como o Papa é tratado nos dias de hoje. Muita gente vê nele um homem simpático, simples, inovador, mente aberta, em sintonia com os tempos atuais e que vai revolucionar a Igreja. Já ouvi este comentário de muitas pessoas que são pouco ou nada religiosas. O mais interessante é que toda esta admiração não está baseada no fato de Francisco ser líder católico, mas por ser um homem simpático e do "nosso tempo", cujo contraste mais patente seria seu antecessor, Bento XVI, visto por muitos como pouco simpático e muito conservador (ou retrógrado, o que dá na mesma para muita gente). Ademais, a grande mídia têm apreço unânime pelo Papa, o que considero um enorme mistério, para não dizer muito estranho, dado que estes mesmo meios de comunicação sempre foram críticos da Igreja Católica e são grandes disseminadores de todo o tipo de valor e conduta contrária ao cristianismo. 

          Eu não acredito na sinceridade da grande mídia, bem como não acredito no apreço fugaz pela pessoa do Papa. Independente do conteúdo, as informações dos meios de comunicação sempre chegam amputadas e com inúmeras omissões, o que fica agravado quando o conteúdo é a Igreja, dado que a conduta dos religiosos é pautada pela discrição e é balizada pela orientação da fé, ao menos exteriormente. Alguns anos de caminhada depois de minha reconversão ao catolicismo permitiram ver que as pessoas não religiosas têm dificuldade de entender certar condutas das mais religiosas quando o tema é a própria religião. A fé é de grande valor para seus portadores e os temas que a envolvem (práticas rituais, moral, relacionamentos, sacralidade dos objetos, etc) exigem um tratamento mais cuidadoso e menos banal. As coisas, as pessoas e a vida de forma geral adquirem um valor e um sentido diferentes frequentemente mal compreendidos para quem vê de fora. Quanto à unanimidade dos grandes meios de comunicação, este ainda é um mistério que um dia pretendo desvendar.

(Francisco na capa da revista Rolling Stone em janeiro de 2014: o Papa em destaque num veículo de comunicação voltado à cultura pop.)

          Um líder religioso não merece admiração por ser do "nosso tempo", aberto ou moderno (nem mesmo por ser simples), mas por ser exemplo da mensagem que porta e, no caso da Igreja Católica, garantir sua guarda e guiamento tal qual Jesus Cristo fez em seu tempo. Ele tem de ser o Jesus de hoje, cuja mensagem provém da eternidade e abrange simultaneamente todas as épocas. Francisco realmente cativa as pessoas por seu exemplo, mas até que ponto este cativamento se mantém firme e forte perante decepções? E o mais importante: até que ponto este cativamento se transforma em fé verdadeira, independente de quem dirija a Igreja ou como se comporte o padre de nossa paróquia? A fé é um dom divino e portanto independe da conduta alheia ainda que posta à prova pelos maus exemplos ou o que se imagina serem os maus exemplos. Ela independente do que Francisco diga, faça ou deixe de fazer, independe mesmo que o Papa seja um criminoso. Independe mais ainda das modas e das manias do momento. 

          Se uma declaração de Francisco faz alguém perder a admiração por ele é porque esta admiração não tinha consistência alguma. Tem a consistência de uma moda passageira maleável segundo o noticiário das oito da noite. Para muitos cidadãos, o Papa será esquecido no momento que partir e ficará como uma agradável lembrança, uma nostalgia equivalente ao hit do verão passado. 

          Algumas semanas depois da minha postagem a "amiga" acabou com a "amizade" no Facebook. Parece que não é só a admiração que é fugaz nestes tempos de incerteza e confusão. As modas de hoje passarão, mas Francisco deixará o seu legado.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Doenças e remédios: as marcas de um tempo


          Nesta semana estive no aeroporto de Porto Alegre. Meu irmão e a cunhada estavam de viagem marcada para voltar à Londres. Alguns contratempos seguraram os dois por uma hora no check-in, enquanto eu, minha mãe, a mãe da cunhada e um amigo dela ficávamos conversando no saguão. Eu, como de costume, muito mais quieto do que tagarelo.

          O único estabelecimento comercial que realmente chama minha atenção quando estou disperso ou a passeio é uma livraria ou uma banca de revistas. Durante a conversa olhei para um canto do saguão do aeroporto onde havia uma grande banca, mas ela não estava mais lá. No lugar havia uma farmácia. Uma livraria nova, e bem menor, foi aberta ao lado num compartimento construído para este fim.

       Já tinha visto esta mudança há meses atrás, mas só agora percebi seu significado. Muito sugestivo que no lugar dos livros e revistas apareçam remédios. Muito ouvimos falar de doenças, pessoas doentes, sofrimentos devido à saúde, etc, e muitos testemunhos tenho recebido por parte de pessoas que têm parentes em sofrimentos ou mesmo em situações de risco de vida.

          Eu participo de um grupo de oração católico há nove anos, sendo cinco como membro ativo, cujo carisma é cura e libertação. Quando tratamos de cura, abrangemos as dimensões espiritual, mental e física, e é natural, portanto, que eu tome conhecimento de um grande número de pessoas que estejam fisicamente doentes. As doenças do corpo são as que mais chamam a atenção por serem visíveis: podemos ver claramente quando alguém está doente, ao passo que doenças mentais (psicológicas) e principalmente espirituais (noológicas) não saltam aos nossos olhos. Muitas doenças, conforme mostra a psicóloga Renate J. de Moraes, fundadora da Terapia de Integração Pessoal (TIP) através da técnica da Abordagem Direta do Inconsciente (ADI) e cujas ideias estão expostas no seu livro "As Chaves do Inconsciente", são de caráter noopsicosomáticas, ou seja, têm raíz espiritual, afetam o psicológico e, por fim, somatizam no corpo.

(O mencionado livro da Renate, falecida em 2013.)

          A quantidade e a gravidade das doenças de que temos notícias impressionam: todas as semanas há pelo menos um ou dois relatos de pessoas que realizam cirurgias e casos de câncer, doença grave mais recorrente. E pior: alguns casos são de crianças e adolescentes, sendo isto muito mais comum do que se imagina. Muitos dos pedidos de oração chegam por e-mail ao alcance de algumas centenas de pessoas. Como o grupo possui algo como pouco mais de cem membros, é de se esperar que alguns milhares tenham acesso a alguém que envie os pedidos. De qualquer forma, é evidente, por simples probabilidade, que muitos casos não cheguem ao conhecimento do grupo e não são orados. Além dos casos de doenças graves de que tomamos conhecimento, provavelmente há muitos outros que não são sequer divulgados por razões desconhecidas.

          No período em que lecionei em escolas, fui testemunha de alguns alunos que possuíam doenças graves ou que tomavam medicações pesadas. Recordo-me de um aluna que era doente desde nascimento, a quem tinha um carinho especial, quase como uma filha; em outro caso, atuando como professor particular, tive um aluna que tomava medicações para concentração e que alegava ter visões em casa, e numa das aulas ela estava visivelmente alterada por efeito da medicação; também conheci alguns alunos evidentemente depressivos em sala de aula e, como de costume, muitos carregavam graves problemas familiares e tomavam medicações. 

          Mesmo que este meu panorama seja impreciso, é assustador o sofrimento que há por trás dos rostos de muitas pessoas, sendo que algumas sequer têm idade para compreender a gravidade da situação em que vivem.

          Eu realizei anos de psicanálise e dois da TIP que mencionei acima. No meu grupo de oração tive um punhado de libertações, cujos efeitos podiam ser sentidos nas horas seguintes depois de recebê-la, inclusive no corpo. Mas um elemento chave para essa minha mudança de vida (um dia posso contar isso com mais calma) foi a aquisição de conhecimento pela leitura. Por aproximadamente oito anos li livros e artigos com a intenção quase exclusiva de encontrar respostas para mim e para o mundo. Foi através da leitura que me aproximei da Igreja Católica e tive minha reconversão, como demonstrei num texto anterior. Foi também o meio pelo qual busquei orientações em minha vida pessoal e capacidade de expressão para o que eu vivia e sentia. Foi a leitura, enfim, que me fez compreender a existência de uma coisa chamada realidade (os escritos de Olavo de Carvalho foram determinantes neste sentido) e que eu poderia, através de uma ação espiritual, agir sobre ela. Para mim não há dissociação entre fé e concretude, entre o espírito e o mundo. Ambos interagem num continuum e ampliam nossa liberdade de agir para nossa cura física, mental e espiritual, além de permitir alcançarmos nossa realização pessoal nas diversas dimensões da vida.

          É evidente que uma vida espiritual não é razão para o abandono da medicina moderna. Ambos caminham juntos, e medicações estão aí para isso. Mas é sugestivo que num tempo de enorme pressão, instabilidade e incerteza as pessoas abandonem um meio de cura para se voltarem aos avanços da medicina sem atentarem para a raíz dos problemas. É muito mais fácil (e também mais urgente) buscar soluções práticas do que trabalhar a vida pessoal e interior para arrancar as raízes profundas de nossos males pessoais. Por isso minha atenção ao fim da banca de revistas no aeroporto e sua substituição pele farmácia: eu tive nos livros um meio de me aproximar dos meus problemas e mistérios mais profundos. Daí para a vida espiritual, para a fé católica, para Deus, para a busca de uma paz verdadeira, foi um salto. O problema é que muita gente não tem mais tempo para isso, e num tempo marcado pela confusão e desorientação talvez nem saibam o que acontece com elas. O tempo urge, e a saúde e a paz não podem esperar.

domingo, 18 de junho de 2017

A disposição para o sacrifício como discernimento dos desejos: quando uma pessoa vale a pena


          Hoje muito pouco se entende a palavra "amor". O amor, é claro, não precisa de explicação e justificativa. Jesus Cristo pede que nos amemos uns aos outros, não que entendamos uns aos outros. O amor é a essência mesma dos nossos relacionamentos e permeia todas as relações possíveis entre pessoas e entre pessoas e coisas. É o pilar da vida social e particular.

          De qualquer forma, quando pensamos no amor logo temos em nossa mente a relação homem-mulher. Como se já não bastasse este imaginário estreito do amor, aquilo que a cultura pop e os meios de comunicação divulgam como amor não tem nada a ver com sua manifestação real e profunda, isto é, o desejo de união e entrega de um para o outro no matrimônio. Hoje é quase inevitável que num filme a cena seguinte do primeiro encontro de um casal apaixonado não se passe numa cama desarrumada.

          Eu absorvi muito desta imagem, que muito desejei. Pior: confundi as coisas, acreditando que certos sentimentos meus eram uma paixão verdadeira (falar em amor verdadeiro em poucas semanas é besteira, salvo casos excepcionais, creio eu) enquanto eram, na verdade, desejos profundos intensificados por sentimentos que, cedo ou tarde, acabavam ou não em paixões reais.

          Só há pouco tempo comecei a ver em mim que em muitos casos de atração por uma mulher o que tinha era um misto de desejo e carência: desejo por uma mulher que por diversas razões me atraía, carência pelo fato de eu ser um sujeito muito solitário. Mas quando via entre eu e a minha suposta pretendente uma porta aberta logo começava a pensar: será que estou realmente disposto a utilizar meu tempo com ela? Dar-lhe a atenção não só merecida mas necessária para iniciar uma relação? Ou quero apenas dar uns beijos, satisfazer meus desejos (não precisa que acabamos na cama, não, minha vida não é novela ou Hollywood), me sentir bem e alegre por uns dias? Ou será que quero simplesmente me sentir satisfeito por ter alguém? E será também que estou disposto a fazer certos sacrifícios práticos, emocionais e pessoais em nome deste pessoa?

          Na medida em que conseguia discernir entre o desejo e o sacrifício de pequenas coisas para a realização deste desejo comecei a ver quem eu simplesmente desejava ou se eu queria algo a mais. Não quer dizer, é claro, que ao buscar o "algo mais" numa mulher eu quisesse o casamento de imediato, mas ninguém chega ao altar ou a qualquer outro lugar sem dar os primeiros passos e perceber que, sim, vale a pena gastar um pouco de tempo, paciência, dinheiro e suportar pequenos incômodos por esta pessoa.

          Ortega y Gasset dizia que a vida é sacrifício, é dificuldade, é trabalho. Ele dizia isso ao analisar a figura do "homem-massa", o homem satisfeito com sua condição e incapaz de reconhecer o sacrifício devotado de seus antepassados pela vida confortável que tem. O mesmo vale para os relacionamentos, que são parte inseparável da vida. 

          O amor é sacrifício, é dificuldade, é trabalho, é a essência da sociedade e de nossa vida privada. Onde não há suor, não há amor verdadeiro. Hoje vejo os meus desejos como algo que ainda me causa frustração, mas não perda de tempo, dor de cabeça e sofrimento. Aprendi que esses são sinais claros de que a pessoa desejada não é para mim. Se antes da hora já é um problema, imagine no momento de dividir o mesmo teto. Não há desejo que valha tamanho sacrifício.