terça-feira, 30 de junho de 2020

Os dias que não terminaram


          Acordar todos os dias e enfrentar a vida é o caminho inevitável de todos. Só não encara a realidade que já está morto. Mesmo aquele que acorda e, por qual motivo seja, passa o dia deitado na cama está encarando a vida de alguma forma. De forma depressiva, mas está.

          Ocorre que cada dia é uma história nova, da mesma forma que os dias sucessivos formam uma história única, e esta insere-se numa história coletiva de uma humanidade que caminha num Universo vasto de contornos indeterminados.

          O que fazemos a cada dia é o que dá sentido a ela. Várias vezes citei Viktor Frankl aqui e não vou repetir; apenas faz-se necessário lembrar que nossas realizações contem para nós uma história, e nisto consiste a narrativa de nossas vidas. Cada dia torna-se, portanto, um passo para a nossa realização ou um período perdido no qual falhamos nesta mesma realização que, importante lembrar, não é a chegada a um ponto específico onde encontraremos a felicidade definitiva, mas uma caminhada realizada de forma consciente a um objetivo.

          Em outras palavras, a narrativa de uma vida realiza-se quando temos um foco, sabemos o que queremos e transformamos nossa energia vital numa realização concreta.

          Mas e se caminhamos no escuro sem saber o que queremos ou devemos fazer de nossas vidas? Talvez a resposta resida na realização de uma narrativa, tão bem exemplificada nesta aula proferida pelo filósofo Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, o Gugu, em 2018.  

          Todos nós, diz ele, buscamos uma narrativa de vida, possuímos uma inclinação natural para realizá-la, mesmo que não tenhamos parado para pensar ou filosofar na vida desejamos. 

          Quando crianças, fantasiamos vidas ideais nas brincadeiras, onde fingimos ser heróis, policiais, vilões, marido, mulher, o super-homem. Mas no transcorrer dos anos, na adolescência, passamos a desejar a vivência de experiências reais, onde o desejo de realização das brincadeiras de infância se transmutam em algo concreto. E disto surgem os heróis verdadeiros, as famílias verdadeiras, a pessoa que tanto sonhou por ter sua liberdade e independência pessoal ou que descobriu o mistério que desde criança observava na natureza.

          Porém, todas as vezes que terminamos nosso dia sem darmos rumo à nossa busca pela realização pessoal, na concretização de nossa vocação, sentimos como um dia perdido e frustrante. Nada anormal nisto; o problema está nos sucessivos dias de perda gastos sem sentido.

          Não surpreende a grande quantidade de pessoas jovens doentes e infelizes, numa sociedade como a brasileira onde proliferam farmácias a cada esquina. Da frustração acumulada, da narrativa diária não realizada milhares de vezes, surgem a tristeza, o medo e a raiva, sentimentos que se tornam modos de vida e que acabam em consultórios e clínicas, quando não na cadeia e no cemitério.

          Vidas sem narrativas são vida sem esforço ou esforço desperdiçado em vão, de anos perdidos em dias onde nossa história não foi contada para nós mesmos. São como dias inacabados que, acumulando-se ao longo dos anos, tornam-se cruzes pesadas deformam nossa personalidade. Da criança feliz e sonhadora passamos ao adulto infeliz e desesperançado; realiza-se a fórmula da infelicidade.

          Criar uma narrativa é caminhar diante de si, é exercitar diariamente a consciência para que ela guie nossos rumos. Esta consciência é nosso senso de existência que sonda nossa pessoa e a realidade na qual estamos inseridos. Isto é o que chamamos de caminhar diante de Deus, pois sendo Ele a Consciência Primeira, nossa consciência é Dele derivada e, portanto, reflete a Vontade que governa o mundo, mas que deveria governar nossas vidas.

          Cada dia não realizado é um dia onde nossa consciência estava adormecida. Não basta apenas acordar e levantar da cama; é necessário que acordemos também a cada dia e façamos, de forma consciente e deliberada, a seguinte pergunta: "Meu Deus, o que Você quer que eu faça hoje?"

          

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Educação e a descoberta do Universo


"A educação deveria ser a luz dada a um homem para que explorasse todas as coisas,
especialmente as que lhe estão distantes. A educação hoje tende a ser um holofote;
coisa centrada inteiramente em si mesma. (...) Mas a única cura definitiva
 é desligar a sua luz e deixar o homem ver as estrelas."
(G. K. Chesterton, em "O Essencial de Chesterton")

          A educação não é apenas saber coisas, acumular informações compartimentadas tal qual se concebe hoje, muito longe disso.
          Educar é formar uma personalidade, e que tem nos pais seu principal executor. Dentro disto, educar é também habilitar a pessoa para a descoberta do mundo, possuir os meios pessoais de ação para com as coisas e as pessoas
          Chesterton expressa este segundo ponto na passagem aqui reproduzida, onde a alma humana se habilita para descobrir o mundo e olhar longe, ampliar não apenas seus horizontes físicos, mas principalmente os da alma de forma a conseguir realizar as experiências mais verdadeiras e profundas.
          Nossa formação pessoal é uma luta que se tensiona com a educação formal em escolas e universidades, que compartimenta e abstrai a realidade em ciências estanques e frequentemente inconciliáveis, privando a pessoa da experiência do real.
          Além de desvirtuar a própria experiência cotidiana e o sentido mais profundo da vida, tal educação, por estar abstraída do mundo que afirma representar, centra-se e enche-se a si mesma criando o efeito ilusório de ser ela mesma autossuficiente e dando ao seu portador a mesma soberba que contamina seu conteúdo.
          Por isto Chesterton afirma ser a educação de hoje um holofote, porque ela não apenas foca num ponto específico abstraído do real como chama a atenção para si, como se esta fosse a importância máxima, a realidade suprema.
          Um holofote no escuro apontado contra os olhos do homem o cega. Para evitar que fiquemos presos apenas em sua estreita cosmovisão é necessário desligá-lo, ao menos por um tempo, e contemplar a infinitude do Universo que nos rodeia.

sábado, 27 de junho de 2020

O real perigo das armas


"As armas, como qualquer outra aventura da arte do homem, têm dois lados,
e podem ser invocadas para infligir ou para desafiar os males."
(G. K. Chesterton, em "O Essencial de Chesterton") 

          Chesterton é um escritor que transita com enorme desenvoltura dentre aqueles temas que a sociedade atual chama de "polêmicos".
          "Polêmico" muitas vezes é o nome dado pela grande imprensa e boa parte dos intelectuais, principalmente os progressistas, aos temas cujo pensamento político já está por eles pré-determinado e cujas posições conservadoras já foram previamente rejeitadas.
          Os temas como aborto, racismo, minorias, ecologia e diversidade já têm sua forma pré-concebida nesta discussão. E a posse e uso de armas é uma delas.
          Os objetos inanimados têm uma razão de ser, mas por si mesmo não podem realizar qualquer ato. Estão ali, sempre com suas potências guardadas e prontas para serem levadas à ativa por alguém de posse de sua livre decisão.
          Com as armas não é diferente. Elas, de fato, foram feitas para matar ou persuadir um inimigo, humano ou animal.
          Mas num mundo onde o Paraíso é uma realidade impossível e onde homens não são anjos (nem demônios, reconheçamos), as armas, como qualquer outro objeto, enquadram-se antes de tudo em circunstâncias específicas que justificam sua razão de ser.
          Em outras palavras, elas são úteis à defesa num ambiente violento; mas ao mesmo tempo podem ser um problema quando esta mesma violência é potencializada por sua posse sem que haja quem a refreie.
          Da mesma forma, elas são úteis para a defesa de um povo, mas se tornam um problema quando a tirania se volta contra este mesmo povo que não possui outro meio de defesa.
          Nos dois casos, o problema não está na arma em si, mas na forma de seu uso que se manifesta objetivamente de que lado do cano estão a pessoa de bom senso e o criminoso.
          As armas são uma faca de dois gumes cujo fator decisivo não está nela, mas fora dela. Este fator chama-se decisão.

A experiência espiritual da beleza


"O espanto diante do universo não é misticismo senão bom senso transcendental."
(G. K. Chesterton, em The Independent)

          O homem moderno está anestesiado à beleza. Não vê nas coisas belas do cotidiano, o quão incrível e exuberante são coisas simples como a luz do dia, a chuva, a vegetação das ruas e os gestos das pessoas.
          Quem dirá este homem conseguirá ver o belo naquilo que convencionalmente classificamos como "feio".
          Ocorre que temos um senso inerente de beleza que se manifesta na nossa percepção de ordem; e isto ocorre porque temos uma natureza, uma ordem interior que se relaciona com a exterior e, portanto, a entende.
          É normal, é absolutamente natural que fiquemos surpresos com o universo que nos rodeia. Talvez não devêssemos ficar assim, dado que nosso senso de beleza é inerente à alma, mas perceber o belo é espantar-se!
          Jamais ficamos exauridos, cansados ou "de saco cheio" da beleza. Ela é constante, como que se "emanasse" do conjunto das coisas. E sua constância é reflexo direto da ordem. Ficamos continuamente surpresos ao percebermos como tudo de encaixa e faz sentido.
          Para que o universo deixasse de ser belo teria ele de decair para o caos, deixar de ser ele mesmo. Pois onde há existência, há ordem e, portanto, beleza.
          Neste enunciado, Chesterton é muito certeiro e profundo. O espanto com o universo não é (e nem poderia ser) um misticismo, no sentido da prática religiosa, ainda que sua manifestação seja uma experiência espiritual. Esta experiência manifesta-se pelo simples bom senso perante a realidade, uma aceitação, manifesta no senso comum, de que as coisas são como são.
          Porque se a percepção da ordem e do belo é natural ao homem, também é sua natureza essencialmente espiritual e religiosa.
          Podemos negar a existência de Deus se quisermos, mas não podemos negar a sua obra, autoevidente por excelência. Não crer em Deus pode ser uma decisão, mas deixar de vivê-Lo não é uma opção.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Nossa insistência no erro e o papel da providência


"Problemas humanos são, na maioria das vezes, de dois tipos: há o tipo acidental, 
que você não pode ver porque ele está tão perto que você tropeça nele co se fosse
um supedâneo; e há o outro tipo, o tipo real, o qual um homem buscará,
 (...) indo sempre mais para baixo, em direção ao abismo perdido." 
(G. K. Chesterton, em "Ortodoxia")

          A vida é sacrifício, esforço, luta diária.
          Todos os dias as pessoas enfrentam problemas que estão fora de seu alcance e cuja superação depende de calma e bom senso.
          Às vezes saímos e casa sem guarda-chuva, mas a chuva aparece inesperadamente; um acidente de trânsito engarrafa a cidade e nos atrasamos para o trabalho; comemos um pouco demais na noite anterior e acordamos no dia seguinte enjoados e com dor de cabeça.

          Estes são acidentes, situações cotidianas que fogem de nossa compreensão precedente, seja porque não tínhamos informações suficientes sobre o problema, seja porque estávamos desatentos.
          Mas há problemas que são muito mais do que simples problemas. Casamentos arruinados, envolvimento com o crime, ações mal-intencionadas ou uma vida inteira vivida sem sentido são, no fundo, deliberações humanas.
          Chesterton nos mostra nesta passagem que os verdadeiros problemas humanos são aqueles criados pelo próprio homem.
          Não que as pessoas queiram sofrer por querer, mas que nossos maiores problemas são justamente aqueles advindos de escolhas erradas. Mesmo as ações mal-intencionadas não visam o próprio sofrimento, pois a pessoa que escolhe este caminho perpetra um mal esperando com isso receber algum bem.
          Mas o orgulho humano, a insistente manifestação do pecado original coloca vendas em nossos olhos e nos torna incapazes de ver as reais consequências de nossos atos. O homem insiste no erro por vezes por má intenção, mas também pela cegueira advinda de seus múltiplos defeitos.
          Nossa constante corrida para o abismo corrige-se na tomada de consciência de nossa realidade e de um coração que reconhece em si a presença do Bem.
          Há algo profundamente paradoxal em errar com frequência e ainda assim o mundo sustentar-se acima do caos. A harmonia que subsiste pelas mãos da Providência é maior do que os erros humanos, porque os contém, os integra e, portanto, delimita-os, dotando-os de sentido ao situá-los num contexto maior.
          Uma abertura interior para a realidade exterior de nosso cotidiano, dentro da qual nossas decisões são tomadas, é a atitude que permite vermos nossos erros se integrarem na realidade e fazerem sentido, dotando os tortuosos e misteriosos rumos de nossa vida de um sentido mais amplo.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

A perenidade da literatura clássica


"A literatura clássica e imortal faz a sua melhor obra ao nos lembrar perpetuamente 
da verdade completa e contrabalançar ideias outras, mais antigas, 
com ideias às quais por um momento podemos estar propensos."
(G. K. Chesterton, em "O Essencial de Chesterton")

          A literatura clássica recebe este carimbo por ser capaz de ressoar em todas as épocas e lugares.
          Esta qualidade é possível graças à penetração que realiza, pela ótica de uma cultura específica, na alma humana, que é comum à humanidade inteira.
          Por isto ela é, como bem nos lembra Chesterton nesta passagem, imortal. Mesmo que "morra" por algumas gerações, ela pode voltar num futuro indeterminado, porque sua melodia narrada é capaz de encontrar morada nos homens do porvir, tão iguais quanto nós em sua natureza.
          Sua imortalidade só é possível porque revela traços essenciais desta natureza. Nos apresenta uma verdade que, justamente por ser verdade, não podemos escapar.
          Mas, ao mesmo tempo, a literatura clássica também nos apresenta ideias novas que, no fundo, não são novas verdades, mas diferentes percepções acerca dela. Mantém-se a beleza fundamental da ordem suprema; mas muda a lente que a filtra, seja em seu modelo inglês ou brasileiro, italino ou russo, do século XIV ou XIX, todos com os pés fincados na Criação, ao mesmo tempo mutável e imutável tal qual nossa essência e nossas culturas.
          Porque o que é permanente não muda; muda, isto sim, a cultura, o olhar da pessoa, a linguagem, a perspectiva de nossa história. O impacto e o legado dos grandes homens das letras permanecem, porque mergulham por sob as muralhas que dividem os homens na babel das civilizações.
          Chesterton é um destes homens capazes de revelar coisas fundamentais de nossa vida, de nossa realidade. Do contrário, pouco interesse despertaria hoje; seria arrastado por seu microcosmo regional e dissolvido pelo ciclo do tempo.
          Nossa lembrança de sua obra não é apenas por seu estilo, mas porque ele tem muito a nos dizer sobre nós mesmos.

sábado, 20 de junho de 2020

Muito além de um jargão


          Todo mundo que passa por um problema sério e aparentemente insolúvel sente a situação como se estivesse fechado num beco sem saída, sem luz no fim do túnel. A atual crise relacionada ao coronavírus, com consequências muito além da própria doença, traz esta mesma dimensão, mesmo que jargões como o "vai passar" seja repetido constantemente, mas que, no fundo, reflete um mero desejo sem causa objetiva que o sustente.

          Do túnel escuro surge o ditado popular que diz "a esperança é a última que morre", mesmo que tudo esteja desabando ao redor.

          Mas o cético sabe, apesar da esperança, que não há luz em situações aparentemente insolúveis. Na verdade, qualquer pessoa dotada de alguma inteligência advinda das experiências da própria vida sabe disto. Há, portanto, uma dimensão da alma humana que mantém a pessoa viva apesar de todo o ceticismo ou jargão vazio. 

          Nesta dimensão está a esperança, que se justifica e se resguarda em dois planos: no futuro e no mistério. No primeiro caso, porque o futuro é indeterminado. O momento presente, cuja existência consiste num instante de duração nula, que não pode ser medida, e cuja estrutura consiste numa infinita conjugação de sua carga precedente, ou seja, o passado, é o ponto de partida a partir do qual se abrem todas as possibilidades futuras. Dito de outra forma, o momento presente é resultado de infinitas possibilidades passadas que se fizeram reais e que, portanto, podem se conjugar em infinitas possibilidades futuras a partir de sua carga atual. De forma ainda mais resumida, no futuro qualquer coisa pode acontecer. 

          Um exemplo simples: há um ano eu estava desempregado. Demoraria menos de dez dias para, de repente, ser chamado para o emprego atual. Havia em mim o desejo, possível pelas circunstâncias da época, de que uma porta se abriria para mim. Mas o processo foi melhor do que o esperado dado que a iniciativa do novo emprego não partiu apenas de minha pessoa, mas de um futuro colega de trabalho. O acontecido poderia ter tido outro rumo caso eu dissesse "não" ou buscasse outra alternativa, ou ainda se desistisse da busca. Tudo poderia acontecer.

          O segundo caso, o mistério, é justamente o plano no qual o futuro está em potência, mas que é maior do que o próprio futuro. O mistério consiste numa realidade que é tão grande que não podemos compreende-la por completo, nem mesmo imaginá-la, porque a própria imaginação faz parte de sua dimensão. Nossa limitação no tempo e no espaço limita necessariamente nosso conhecimento. Não podemos conhecer o passado porque lá não estivemos, bem como todo o futuro, porque em algum momento morreremos. O mesmo é válido para a nossa presença física, especialmente limitada. 

          A limitação do conhecimento é alargada e preenchida pelas tradições religiosas, que nos apresentam uma estrutura coerente do mundo e de sua relação com o para-além. tanto físico quanto não físico. Ou seja, nosso desconhecimento é preenchido pela fé, que não nega, mas amplia e complementa o conhecimento existente. A infinita dimensão do mistério, da mesma proporção daquilo que chamamos de Deus, infinito por definição, nos leva a acreditar que as possibilidades futuras se conjuguem conforme o desejado por um ato de fé; e a fé é precedida pela esperança, uma das virtudes teologais. Esperamos, assim, que do futuro indeterminado consigamos realizar o que buscamos.

          Portanto, por mais fundo que seja nosso buraco ou do nosso mundo, em nós vive uma esperança que é ainda mais profunda do que este buraco; e a fé, nosso sustentáculo último, não só abarca a escuridão como a transcende e dá sentido a ela por situá-la e defini-la no plano da totalidade.

          Para os doentes, amargurados, pessimistas, deprimidos e desencorajados pela situação do mundo, há a certeza, pelo ato de fé, de que tais situações são transitórias. Este é o único "vai passar" que faz sentido. O resto é propaganda da televisão. 

          

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Porque sempre casamos com a pessoa errada


"Conheci muitos casamentos felizes, mas nunca um compatível. O objetivo do casamento é lutar contra o instante em que a incompatibilidade torna-se inquestionável, e sobreviver a ele.
Pois um homem e uma mulher, tais como são, são incompatíveis."
(G. K. Chesterton) 

          O casamento nunca é com a pessoa "certa", porque não há casamento com a pessoa certa, mas com aquela que amamos.
          Assim, o casamento é a união entre dois incompatíveis compatibilizados pelo amor. É o amor, o desejo profundo e sincero de ser um com o outro, que transcendente e abrange os defeitos do parceiro e os desajustes da relação.
          Quando Chesterton afirma que "o objetivo do casamento é lutar contra o instante em que a incompatibilidade torna-se inquestionável, e sobreviver a ele", nosso escritor está afirmando que a união deve se firmar sobre a realidade das personalidades do casal, inevitavelmente conflituosas em diversos pontos, mas que tem justamente na união os meios de superá-las.
          Dito de outra forma, o casamento depende do amor, e o amor caminha necessariamente junto ao perdão. Afinal, como suportar os defeitos alheios e superar os conflitos da relação senão pelo perdão?
          Jesus Cristo não pediu que nos suportássemos, menos ainda que tentássemos nos entender. Pediu que nos amássemos, e na dimensão do casamento isto significa escolher alguém para amar sempre com os mesmos defeitos de sempre até o fim dos dias.
          Fosse o casamento com a pessoa certa, fossem homem e mulher totalmente compatíveis, e não haveria porque esforçar-se no amar sempre, indefinidamente, sem restrição; e não haveria também porque esforçar-se para perdoar sempre, eternamente, independente dos erros do outro.
          Apenas os que amam e perdoam sem medida têm passaporte para adentrar as portas do Paraíso.          
          Abençoado seja o casamento, porque ele é o meio mais belo, singelo e usual meio de salvar-se através da salvação do outro, nosso presente dado por Deus para toda a eternidade.

O amor não é cego


"O amor não é cego; cegueira é a última coisa que se lhe pode atribuir. 
O amor ata; e tanto mais atado quanto menos cego."
(G. K. Chesterton, em "Ortodoxia")

          Dizer que "o amor é cego" é apenas modo de falar para enfatizar que aquele que ama não se importa primordialmente com os defeitos do amado.
          O amor diminui a relevância destes defeitos na medida em que eles fazem parte da pessoa, e justamente por isto ele não é cego; pelo contrário: perscruta o amado com a finalidade de encontrar os meios de unir-se a ele apesar de seus defeitos.
          E quanto mais intensa é a união, mais atento é o amor aos defeitos alheios para melhor integrá-los na dinâmica da relação a dois. Por isto, nesta passagem de seu livro "Ortodoxia", Chesterton afirma que o amor quanto mais consegue atar as pessoas menos cego ele é.
          Esta unidade advinda do amor tem um fundamento divino. Deus, o Infinito, puro Amor, abrange, por definição, todas as coisas. "Nele vivemos, nos movemos e existimos" (At 17,28), diz o Apóstolo São Paulo.
          Há uma integração perfeita, um contínuo entre Deus e a existência, uma união que se dá pela estrutura da realidade mesma. A Criação é um livro aberto que mostra o amor em sua concretude.
          Dizer "eu te amo" é dizer "eu quero ser um contigo", e tal atitude consuma-se na presença física, no compartilhamento de experiências e sentimentos, na criação de uma nova vida conjugada pelo pai e pela mãe.
          Não pode haver cegueira onde tudo está unido. O cego é, na verdade, o que não ama, porque decide por afastar-se do fundamento maior que integra todas as coisas dispersando-se no seu erro.
          Por isto a única dimensão onde reina a ausência do amor é o fogo eterno, onde tudo está deformado, desintegrado e disperso, e que não por acaso é chamado de trevas, a cegueira absoluta.

terça-feira, 16 de junho de 2020

A experiência do Mal e a misteriosa pedagogia da redenção


"Quando definimos e isolamos a coisa má, as cores de todas as outras coisas são reavivadas. Quando as coisas más são definidas como tal, as coisas boas, então, tornam-se também distintas. 
Há homens que são tristes porque não acreditam em Deus; mas há outros que são muito mais
tristes porque não acreditam no Diabo." (G. K. Chesterton)
     
          Nesta passagem impactante, Chesterton está definindo as coisas da realidade por contraste, mais especificamente o Bem e o Mal.
          É característico da percepção humana ver as coisas desta forma. Por que podemos falar da existência do belo? Porque há o feio. Por que sabemos identificar a luz? Porque há a escuridão. E por que sabemos que somos homem ou mulher? Porque há mulher e homem.
          As pessoas que têm profunda experiência das coisas do Mal, seja no plano físico, na vivência social ou no plano espiritual, conseguem vislumbrar o seu oposto, o Bem, fonte de toda a luz.
E por isto mesmo o Mal é perceptível, porque a luz o ilumina e o define.

          O Mal é difinível não só por contraste com o Bem como por sua limitação intrínseca. Se temos a experiência do Mal e a ele não sucumbimos é porque estamos sustentados por uma condição, estrutura ou força que nos mantém de pé.
          O Mal se manifesta, portanto, dentro da dimensão incomensurável do Bem apontando, por contraste, o caminho que o homem deve seguir. E por sua condição inerentemente boa, por seu senso de realidade que lhe é quase instintivo, o homem intui para que lado pender nesta ordem definida.
          Por isto o Mal exalta as cores de todas as coisas, porque sua ecuridão torna latente o brilho de seu entorno. Da mesma forma, o diabo exalta a beleza e veracidade de Deus, porque expõe a sua feiúra e falsidade.
          E por isto que o homem que descrê no diabo não pode ser alegrar com o Deus da verdadeira luz. É da condição humana ser limitado e, portanto, necessitado do contraste para conhecer o Bem. Não seria possível contemplar a luz divina num clarão difuso. Temos de ver a fonte.
          Não podemos ver o Bem absoluto da mesma forma que não podemos suportar o Mal absoluto. Quem percebe que o diabo existe e age descobre, por uma pedagogia misteriosa e redentora, que há sempre uma força deliberada, uma vontade, um Senhor que nos sustenta para que não precipitemos no abismo.

domingo, 14 de junho de 2020

A banalização do sexo


"A libertinagem aniquila o sexo; torna-se algo muito pior do que a mera anarquia
e que pode verdadeiramente ser descrito como maldade; é uma guerra, não
contra as restrições exigidas pela virtude, mas contra a própria virtude (...)
O sexo é a isca, não o anzol; mas nesse ponto extremo do mal 
o homem quer o anzol, não a isca." (G. K. Chesterton) 

          A libertinagem aniquila o sexo porque o destrói enquanto ato que abrange a integralidade da pessoa e movimenta uma dimensão incomensuravelmente maior do que ela.
          Em primeiro lugar, o sexo visa a procriação humana, mas não só isso. É também o deleite completo de um para com o outro, a entrega absoluta de corpo, alma e espírito que arrisca, por amor, a consolidar uma nova vida.
          A criança nascida de um pai e uma mãe é a materialização da promessa do casal em ser uma só carne e um só espírito, o amor em sua forma concreta, um vínculo eterno inquebrantável, por mais que se deseje o contrário, e a continuidade de uma árvore genealógica que finca raízes em tempos imemoriáveis. O sexo tem uma dimensão cósmica.
          A libertinagem banaliza o amor, eliminando-o, porque desconsidera a integralidade de si e do outro. Faz do homem e da mulher objetos a serem descartados no primeiro desgosto, tal qual o tempero indesejado num arroz à grega.
          Ele também brinca, como um bárbaro irresponsável, com a dimensão cósmica do ato, onde Deus, anjos e milhares de almas esperam o momento glorioso de uma nova vida enxertada pelo sopro do Espírito, que ali faz Sua morada e imprime na nova alma a herança de múltiplas gerações para sempre.
          Ela é má porque é contra a virtude. Destrói o amor, destrói a grandiosidade do sexo e destrói o valor intrínseco da vida humana ao rebaixá-la a um mero acidente de percurso, cuja "solução" desejada é esquartejar e jogar num balde o desagradável obstáculo por prazer estúpido e banal.
          Chesterton alerta com argúcia a natureza maligna da libertinagem com todas as suas consequências. Porque o sexo é o ato mais sublime, um palácio de cristal que se arrisca a ser demolido pelo vandalismo da libertinagem.
          Olhando apenas o ato em si, o homem libertino esquece seu fim cravando uma isca em seu coração enquanto ignora a pérola depositada no fundo da alma da pessoa amada.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

A narrativa dos intolerantes


          Nos dois últimos dias tentei, em vão, colocar neste espaço alguns assuntos do momento de forma clara e direta. Mas eis que fui travado por um mal brasileiro: o de falar sem saber. Nada é mais inútil e nada semeia mais confusão e ignorância do que falar sobre o que não se sabe ou se sabe muito pouco.

          Toda a escrita, bem como toda a palavra falada, depende de um domínio pleno e seguro da palavra mesma. Porque a palavra é a expressão de uma realidade apreendida, e quando falta apreensão de realidade que se deseja expressar, seja por não a ter vivido, seja por não a ter estudado, a palavra sai vazia, sem substância. Seu efeito nada mais é do que de comunicar algo que não é real, mas a impressão puramente subjetiva de seu autor. Transmite-se não o real, mas o "acho que".

          Daí a importância de se falar apenas o que se sabe. Do contrário, a palavra terá o impacto apenas segundo o desejo daquele que a expressa, impondo sua visão de mundo ao outro ou gerando confusão. A tirania é traço característica da ignorância, e por isto mesmo o ignorante de posse de certezas é tão intolerante.

          A situação é ainda mais trágica quando se tratam de narrativas. Ao ligarmos a televisão logo somos inundados por narrativas em uníssono em todos os canais sobre "racismo", "preconceito", "pandemia", "mudanças climáticas" e assim por diante. O problema é que estes conceitos são abstrações e não realidades em si mesmas. O espectador, incapaz de ver a pandemia, ouvir o racismo ou identificar a mudanças climáticas acaba por apreender não o que realmente está acontecendo, mas o que os jornalistas querem que você apreenda com base pura e simplesmente no que estão falando.

          Não importa se as "mudanças climáticas" existem ou se a pandemia é a maior tragédia da História humana; importa que ambas simplesmente existem e são, portanto, inquestionáveis, mas não pela existências em si, e sim por sua repetição exaustiva. Em outras palavras, o domínio da narrativa cria uma realidade paralela como se fosse a realidade mesma, que por efeito retroativo é identificado, ao exemplo do derretimento das geleiras nas montanhas e da contagem diária de mortos pelo covid 19, como algo tão concreto quanto o telhado de sua casa.

          Isto é o que Eric Voegelin chamava de segunda realidade: o sujeito concebe uma visão de mundo que não condiz com o mundo real e tenta enquadrar o que vê segundo sua visão. Um dia de calor é "mudança climática", uma crítica a um estilo de vestimenta é "preconceito", a preferência pela alemoa de olhos azuis é "racismo". 

          Não importa o que você diga da realidade vivida. No mundo atual, onde o que importa é a opinião, a mera abstração ou a impressão subjetiva, se impõe não o que mais sabe, mas aquele que é mais astuto, mais esperto, mais malicioso. E de preferência quem tem mais dinheiro para financiar ativistas, acadêmicos e meios de comunicação para fazer do mundo um laboratório de engenharia social ao ritmo de sua próprias palavras.

          É necessário prudência, humildade e muito estudo. Não por acaso Deus nos deus dois olhos, dois ouvidos e apenas uma boca para falar.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Sobre a mulher


"As mulheres se preocupam com as coisas pequenas 
mesmo quando estão sendo torturadas pelas coisas grandes."
(G. K. Chesterton, em "O Essencial de Chesterton")

          A mulher possui um perfil que lhe é muito peculiar. Age como esteio do casal e da família, é um contrapeso à impulsividade do homem, menos sensível aos detalhes e às coisas da vida interior, e circula, com delicadeza, em meio aos meandros dos relacionamentos humanos.
          É neste universo sutil que mora a força feminina. Chesterton nos mostra, nesta passagem, onde se manifesta sua força deixando por indicar onde esta reside.
          Pois a força da mulher reside na sutileza, fruto de sua contemplação perspicaz. Não que ela não possa estar à frente de ações e empreendimentos grandiosos, mas ela conhece, por sua natureza, o que está por detrás destas mesmas ações e empreendimentos.
          Este é o sentido do ditado que afirma que "por trás de um grande homem existe uma grande mulher".
          E conhecer o que está por detrás significa que ela vê, compreende e, portanto, manipula (seja para o bem, seja para o mal) os elementos sutis da psique humana que firmam nosso comportamento.
          Por exemplo: o homem pode se impor à mulher através da força ou da ameaça física, mas um olhar feminino de desprezo ou uma simples ignorância deliberada podem derrubar o homem que porventura acredita poder se impor pela autoridade pura e simples.
          A mulher resiste melhor às tempestades do que o homem. As tempestades vêm de fora, mas não necessariamente arrastam os alicerces da cada interior, fincada nos detalhes obscuros.
          Tal força também se revela no vínculo íntimo da mulher com seu filho, pois a fragilidade da criança exige um papel especial de proteção necessária não apenas na condição física da criança, mas nos fundamentos mais profundos de seu comportamento que se constroem através do exemplo dos pais, e da mulher em particular.
          Um gesto simples de amor e acolhimento pode salvar a vida de um bebê. Neste gesto reside a força interior que ele jamais esquecerá. O mesmo vale para a mãe ausente e omissa, que fere as profundezas do coração da criança.
          O amor é a base de tudo, e ninguém tem habilidade mais perspicaz do que a mulher para penetrar nas entranhas do filho este amor que será seu alicerce eterno.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Geração ingrata


"Não se orgulhe por não se chocar com algo que ainda escandaliza a sua vó. 
Talvez isso se dê por ela ser uma pessoa viva e vigorosa, enquanto
você é um paralítico." (G. K. Chesterton)

          Os progressistas se envaidecem de serem pessoas de seu tempo, "cabeça aberta" ou de estarem na vanguarda dos acontecimentos.
         Dito em outras palavras, se orgulham de pensar de acordo com a última moda fabricada em laboratórios, academias e divulgadas repetitivamente pelos meios de comunicação.
          O que vemos hoje de vanguarda? Toda a forma de comportamento e estilo de vida que vêm romper com a antiga ordem social, a tradição, vida familiar e princípios civilizacionais.
          Aborto, suicídio assistido, luta contra as "mudanças climáticas", "crimes de ódio", o sistema capitalista, pelos direitos dos animais, "casamento" homossexual (ou qualquer outra forma de união civil), liberação das drogas; tudo isto poderia perfeitamente chocar as gerações mais antigas.
          Não porque os mais velhos fossem velhos, mas porque até meados da década de 1950 havia um relativo consenso de como viver uma vida feliz sobre a esteira da herança cultural e religiosa advindas de séculos.
          A demolição civilizacional realizada a toque de caixa por ativistas, acadêmicos e jornalistas é a expressão de uma profunda ingratidão a todos aqueles que nos legaram o mundo que "está aí".
          Mas este mundo só está aí porque muitas milhões de pessoas suaram a camisa para legar os bens, o conforto e a segurança aos atuais revolucionários de apartamento, cuja vida se finca sobre os princípios que ele ignora e, no fundo, odeia.
          Chesterton acerta em cheio nesta passagem pela forma precisa e firme com que atinge o alvo. Uma pessoa moralmente paralítica não vai começar a andar porque foi avisada do erro que está cometendo.
          É preciso que ela veja, na linguagem proporcional ao erro que comete, o desastre que se avizinha no horizonte desta época decadente.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Luta inglória


"Os céticos não conseguem arrancar o cristianismo; mas conseguem arrancar as raízes das vinhas e das figueiras de todo o homem ordinário; de todos os jardins dos homens e de todas as estufas dos homens" (G. K. Chesterton, em "O Essencial de Chesterton")

          Os ataques contra o cristianismo não atingem a Revelação em si, mas unicamente os homens.
          Porque a luta anticristã acaba por eliminar as referências culturais da fé, podando suas representações simbólicas e práticas cotidianas para, assim, esterilizar o solo fértil a partir do qual brota a árvore da vida.
          Mas Deus continua Deus, a Revelação continua viva, ainda que num espaço mais restrito, e a chama da fé continua a flamejar entre os homens, ainda que em menor número.
          Atacar o cristianismo não elimina sua presença no mundo, mas priva as demais pessoas, que em sua grande maioria nada têm a ver com isto, da graça de receber a graça divina e ter acesso a experiências que não só elevam o espírito e trazem benefícios até a eternidade, mas que de imediato lhes proporcionam um pouco de paz.
          Chesterton não só não ficaria surpreso, mas confirmaria mais ma vez, nos tempos atuais, sua mensagem aqui reproduzida.
          O anticristianismo, por vezes feroz no martírio dos cristãos, tal qual vemos no Oriente Médio, na África e na China, por vezes tênue e sorrateiro como vemos no Ocidente, tem o grande mérito de nada mais do que privar a todas as pessoas do Bem Supremo.
          A secularização forçada e deliberada encobre, no fundo, uma revolta contra Deus cuja inspiração espiritual brota debaixo da terra.
          Prometendo a liberdade humana, a luta anticristã nada mais faz do que sufocar o espírito do homem até amputar seu anseio mais profundo, enclausurá-lo numa gaiola e convencê-lo, pelo banimento de todas as representações da fé, de que assim é livre e feliz mesmo que tenha morrido para sempre.

domingo, 7 de junho de 2020

Nossa dúvida mais essencial



"O mais profundo de todos os desejos do saber é o desejo de saber 
para quê serve o mundo e para quê nós servimos."
(G. K. Chesterton, em "O Essencial de Chesterton")

          Objetivamente, a existência humana se dá num quadro de mistério completo, porque não sabemos de onde viemos nem para onde vamos.
          Em outras palavras, não sabemos o que havia antes de nós, porque, apesar de termos acesso sobre a história de nossa família e do mundo, não tivemos a experiência deste período do tempo, muito menos do que havia antes de todos os tempos.
          Da mesma forma, não sabemos o que haverá depois, seja o mundo que haverá depois de nossa partida e a caminhada que haverá no plano de transcendência.
          Há, portanto, uma dúvida inexpugnável que é respondida pelas tradições religiosas (pensemos mais especificamente no cristianismo), mas que não pode ser vista nem tocada pelos sentidos.
          Esta dúvida é a dúvida essencial, porque a totalidade de nossos dilemas não apenas estão dentro dela e são menores que ela, como tudo depende de sua resposta.
          Se a vida acaba na morte e tudo o que vivemos não passa de vazias reações físico-químicas, que sentido há em amar nossos filhos? Se não sabemos, nem pelo ato de fé, o que nos espera após a morte, porque cumprir nossa missão como boa pessoa se nada disso valerá para sempre, e sim apenas para benefícios imediatos e temporários?
          Enquanto a grande dúvida existencial sobre o sentido do mundo e de nossas vidas levantadas por Chesterton no trecho acima citado não for respondida, não repousaremos em paz.
          O ato de fé de confiar que Alguém, por Sua infinita misericórdia, nos criou e nos acompanha é a resposta mais confortante, mas é na luta diária que os planos de Deus se manifestam e, para lembrar Viktor Frankl, é no cumprimento de objetivos fundamentais da vida que a vida responde o sentido que ela tem.
          Esta resposta, no fundo, é a própria Providência, que a todo se apresenta para que respondamos aos Seus desígnios, tirar nossas dúvidas e reconfortar nosso coração aflito.

sábado, 6 de junho de 2020

O século do genocídio


          As pessoas que se interessam por História já devem ter percebido o quanto o Brasil é ignorado quando se trata de História Geral. Nosso país mal é citado no livros e raramente recebe uma análise mais detalhada.

          Um interessante exceção é a obra "Tempos Modernos", do historiador Paul Johnson. A narrativa começa com a observação do eclipse do sol em 29 de maio de 1919 na ilha de Príncipe, no oeste da África, e em Sobral, no Ceará. Esta observação comprovou a Teoria da Relatividade, formulada por Albert Einstein catorze anos antes.

          Mas o que chama a atenção na obra não é o papel do Brasil no século XX, e sim seu início, que começa com um capítulo de nome muito sugestivo: "Um mundo relativista". 

          Esta é a característica fundamental do século XX para Johnson: a propagação de uma mentalidade relativista que tornaria possível a ascensão de tiranos e genocidas como Lênin, Hitler e Stálin, que concebiam o mundo como algo plástico aos seus desejos e ideologias. 

          Como lembra Hannah Arendt, ao analisar o fenômeno do totalitarismo, as revoluções só eram possíveis com a destruição dos valores precedentes. Não é possível instaurar uma nova ordem sem antes demolir a anterior abrindo espaço aos planos dos tiranos.

          Sobre a demolição das bases civilizacionais, no primeiro capítulo Paul Johnson levanta brevemente os papéis de Marx, Freud e Einstein no processo e conclui o seguinte: 

"Marx, Freud e Einstein, todos transmitiram a mesma mensagem para a década de 1920: o mundo não era o que parecia ser. Os sentidos, cujas percepções empíricas moldaram nossas ideias de tempo e distância, certo e errado, lei e justiça, e a natureza do comportamento do homem em sociedade, não eram confiáveis. Além disso, a análise marxista e freudiana se juntaram para minar, cada uma à sua maneira, o sentimento de responsabilidade pessoal e de dever para com o código da verdadeira moral, que era o centro da civilização européia do século XIX. A impressão que as pessoas tiravam dos ensinamentos de Einstein, de um universo em que todas as medidas de valor eram relativas, servia para confirmar essa visão (...) de anarquia moral."

          O que o autor chama de "código da verdadeira moral" do século anterior era a ainda existente moral "tradicional" ou, sendo mais exato, a moral religiosa a partir da qual se ergueram as normas de conduta que se refletiram na sociedade como um todo.

          Derrubado o edifício religioso, esvaziada a vida espiritual a partir da qual as pessoas guiavam suas vidas, entrou a mentalidade do mundo que, na época analisada por Johnson, eram as correntes filosóficas, psicológicas e científicas cujo substrato cultural tornava relativa o guiamento moral das pessoas e, por consequência, o ordenamento da sociedade. 

          E as consequências da queda da religiosidade não foi apenas o mero relativismo. Como conclui Johson ao final do capítulo:

"Entre as raças mais adiantadas, o declínio e, em última análise, o colapso do impulso religioso deixaria um vácuo de grandes proporções. A história dos tempos modernos é, em grande parte, a história de como aquele vácuo foi preenchido. (...) No lugar da crença religiosa, haveria a ideologia secular. Aqueles que se tinham filiado ao totalitarismo clerical tornar-se-iam políticos totalitários. E, sobretudo, a Vontade de Poder produziria um novo tipo de Messias, livre de qualquer sanção religiosa e com um insaciável apetite pelo controle da humanidade. O fim da antiga ordem, com um mundo à deriva num universo relativista, era um apelo a que estadistas gangsteres emergissem. E eles não demorariam a fazê-lo."    

          Do relativismo, que rebaixou a condição humana à massa de manobra de tiranos que julgavam o mundo à sua imagem e semelhança, ergueu-se o totalitarismo, que ficou sem barreiras fortes o suficiente que pudessem freá-lo; e do totalitarismo iniciou-se o genocídio, que viria a marcar toda história de todo o século XX sob a justificativa do "mundo melhor".

quinta-feira, 4 de junho de 2020

A estrada segura da tradição


"O sujeito mais tímido e canhestro que siga a tradição
conseguirá melhor envolver-se no fluxo da vida."
(G. K. Chesterton)

          A tradição pode ser compreendida, de forma genérica, como toda a forma de valores e hábitos que se consolidam numa sociedade e perpassam as gerações.
          Quem fixa sua vida sobre ela adquire certa estabilidade e perspectiva de futuro, dado que pode mais ou menos construir seus planos e antever os resultados de suas ações.
          Disto independe o quão reservado ou extrovertido seja a pessoa. Por isto Chesterton, nesta passagem que aqui apresentamos, dá o exemplo da pessoa tímida que, fincando os pés na tradição, conseguirá "envolver-se no fluxo da vida".
          Sendo ela a base da ordem social e a referência pela qual as decisões são tomadas, a tradição funciona como um porto seguro para os acontecimentos e um norte para as ações.
          O sujeito tímido que for religioso e pouco se expõe para um relacionamento sabe que terá numa família religiosa maior chance de encontrar uma esposa que comungue de seus valores.
          Da mesma forma, sabe que, ao realizar uma compra num supermercado, não precisará peitar o caixa para lhe cobrar o troco devido caso seja trapaceado, dado que espera encontrar ali uma pessoa honesta que aja com base na reciprocidade, tão presente nos valores religiosos.
          Não é necessário que alguém questione demais ou exija que autoridades de fora dela, como a polícia ou um burocrata, dê conta de colocar as coisas nos eixos quando a tradição se faz presente.
          Onde falta concordância sobre princípios reclama-se a intervenção de uma autoridade que imponha a ordem e regule uma determinada relação.
          Por isto, viver de acordo com a tradição é preservar o que se tem para viver em paz, sem a necessidade que alguém lhe apresente normas de conduta, ou que se dispenda energia para reclamar por direitos e justiça.

terça-feira, 2 de junho de 2020

O símbolo de uma época

        

          O rosto é a característica física mais peculiar de uma pessoa. É um resumo de sua identidade e singularidade, dado que nenhum rosto é igual a outro. E caso seja igual, como é o rosto do gêmeo em relação ao seu irmão, carrega experiências distintas que se revelam no mover dos traços que delineiam uma história única.

          Os decretos anacrônicos e o uso compulsório da máscara apagam nossa característica mais elementar. Cria-se uma interface entre a pessoa, antropologicamente sufocada pela membrana que, dizem, protege de doenças, e a realidade à volta, que perde sua presença essencialmente humana e torna-se um jardim de flores sem cor ou árvores sem folhas.

          Razão pela qual ficamos despidos de nossa identidade mais elementar, a máscara massifica a todos numa espécie de distopia em que a pessoa, com sua história e vida interior expressa nas feições da face, torna-se membro da massa, um homem-massa no sentido literal do termo, mera estatística na contabilidade demográfica e sanitária.

          Mas a massificação da pessoa não é apenas estética com suas consequências advinda do universo simbólico que nos comunica toda uma nova realidade opressiva. Ela se ergue como sinal de seu último objetivo.

          Alegadamente, a máscara deveria nos proteger de doenças, fato questionado pela organização apresentada como modelo de "ciência", a Organização Mundial da Saúde, em abril deste ano.

          Alegadamente, ela é para nosso bem, como bem pretendem as autoridades "democráticas", segundo os "porta-vozes" da "ciência" fabricada nas redações dos jornais, que afirmam tal sentença com base em "evidências" coletadas em artigos científicos publicados em última hora e nos acontecimentos em escala planetária num espaço de semanas.

          Seu objetivo maior, mas não declarado, é fechar a fonte da palavra, a capacidade de criação do homem que está na sua liberdade de expressão. E falo aqui da expressão no sentido mais rudimentar do termo, porque um simples "ah!" é marca de quem o diz, o primeiro passo para fora do padrão "cientificamente" pré-estabelecido

          Se a palavra é criadora, por qual razão amputar esta liberdade? No mundo em que "democratas" se revelam verdadeiros autocratas e a ciência é apresentada como autoridade por meio de falastrões frente às câmeras, a nova epidemia foi o elemento perfeito para,  por meio dos meios democráticos de ação, finalmente "melhorar" o mundo.

          A soberba demoníaca que contaminou a sociedade e erigiu o Estado e todo o aparato institucional, seja ele público ou privado, com objetivo de melhorar o mundo se apresenta na síntese de uma tecnocracia cientificista, ou seja, pretensamente científica, legitimada através dos meios de comunicação. Uma aliança entre políticos, cientistas e formadores de opinião em nome do mundo melhor.

          Na cosmovisão mecanicista que concebe o mundo como uma engrenagem de peças e máquinas não há espaço para erro no grande e novo plano de engenharia social. Não cabe, entre drones de patrulha, rastreamento por celular, monitoramento de distanciamento, quarentena forçada, paralisia geral, ordens policiais, notícias "verdadeiras", repetição massiva de slogans midiáticos e toda a sorte de medida draconiana "científica", a imprevisibilidade da opinião, da ação, do gesto genuinamente humano, imprevisível, incalculável e, portanto, incontrolável.

          É urgentemente necessário cobrir nossa humanidade para que ninguém a veja.  

segunda-feira, 1 de junho de 2020

A pessoa frívola


"A frivolidade nada tem a ver com a felicidade. A frivolidade só faz patinar na superfície das coisas, e a superfície das coisas é sempre áspera e irregular. A pessoa frívola é incapaz de apreciar inteiramente o pessoa e o valor de qualquer coisa."
(G. K. Chesterton, em "O essencial de Chesterton")

          A pessoa frívola não mergulha em nada, fica na superfície e, por isto mesmo, como diz Chesterton num dos artigos de "O Essencial de Chesterton", patina sobre as coisas e os acontecimentos da vida.
          Mergulhar em algo significa adentrar a realidade que está em jogo, absorver na nossa história a experiência do contato com esta realidade (a vivência com uma pessoa, um acidente, o ato de dormir, degustar uma comida, pensar em algo) de forma consciente.
          Quem toma consciência daquilo que viveu adquire domínio sobre esta experiência, seja ao lidar com ela em outra situação, seja nos efeitos futuros sobre a própria vida.

          Portanto, quem mergulha nas coisas da realidade tende a dominar seu próprio destino e torna-se capaz de mudar o rumo de sua vida, bem como do mundo à sua volta.
          Por isso, a pessoa frívola não pode mudar sua vida, ao menos não como realmente deseja, retendo-se na banalização das coisas essenciais ou na supervalorização do fútil e passageiro.
          Porque a superfície, como lembra Chesterton, é áspera e irregular. Quem é frívolo, ou tropeça no banal, ou, pela mesma irregularidade da superfície, não percebe a sutileza do essencial.
          Na geração preocupada em "curtir" a vida até o limite e avessa às responsabilidades até mesmo do corpo biológico, que clama por uma vida que se perpetue através das gerações, não surpreende que abundem confusão, frustração e doenças psíquicas.
          Quem se recusa a ver as coisas como são não toma jamais as rédeas de seu destino, essencial para um vida plena e com sentido. O frívolo vive como se não tivesse amanhã acreditando viver a vida plenamente enquanto está, na verdade, sem rumo e embriagado por seu desejos mais risíveis e passageiros.