domingo, 7 de março de 2021

Cazaquistão: um possível encontro entre Francisco e Kirill

(Kirill e Francisco em Havana, Cuba, 12 de fevereiro de 2016)

          Enquanto escrevo este texto, o Papa Francisco está realizando uma viagem pelo Iraque. É a primeira vez na história que um Papa visita este país, e é a primeira viagem de Francisco após a suspensão das viagens devido à crise do covid-19.

          Em junho, o Papa deverá realizar outra visita relevante (que ainda não está confirmada) ao Cazaquistão. Trata-se do VII Congresso de Líderes Mundiais e de Religiões Tradicionais, evento criado pelo "presidente eterno" do país realizado, Nursultan Nazarbayev, e realizado desde 2003. Um novo encontro ocorre a cada três anos.

          Neste evento também estará o Patriarca de Moscou, Kirill, chefe da Igreja Ortodoxa Russa.

          Em 24 de setembro de 2019, o recém falecido sacerdote ortodoxo russo, Vsevolod Chaplin, comentou, em um jornal de seu país, que Francisco e Kirill poderiam se encontrar durante o congresso. Seu tom de "alerta" veio logo após convite oficial feito ao Papa, a quem Chaplin considera um "quinta coluna" do globalismo. 

          O convite foi realizado em em 18 de setembro através do Monsenhor Khaled Akasheh, chefe da Secretaria para as Relações com o Islam do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso da Santa Sé, através da filha de Nazarbayev, Dariga Nazarbayeva, senadora do Cazaquistão e chefe do Secretariado do Congresso.

          A reação incisiva de Chaplin não surpreende. Há um setor fortemente antiecumênico na Igreja Ortodoxa Russa. Após o primeiro encontro entre Francisco e Kirill, ocorrido em Cuba em 2016, sacerdotes russos trouxeram ao público o estado de tensão e discordância dentro da igreja.

          A sensibilidade do diálogo no lado ortodoxo também se evidencia pela discrição nas negociações realizados para o histórico encontro em Cuba. Devido à resistência de parte dos ortodoxos russos, seu anúncio ocorreu apenas uma semana antes do encontro, realizado em 12 de fevereiro. 

          Do lado católico, criaram-se muitas expectativas sobre o que seria discutido, dado problemas sensíveis relacionados aos greco-católicos da Ucrânia, o histórico de sua supressão e imersão forçada na Igreja Russa durante o período soviético e a dificuldade de relacionamento que vem de longa data. A partir do século XX, a presença de greco-católicos em território ortodoxo tem sido o grande obstáculo para que a Santa Sé e o Patriarcado de Moscou estabelecessem um diálogo mais aprofundado.

          No encontro de 12 de fevereiro de 2016, Francisco e Kirill divulgaram uma Declaração Conjunta enfatizando o histórico comum das igrejas, o martírio dos cristãos no Oriente Médio e, claro, a questão da Igreja Greco-Católica Ucraniana e o conflito na Ucrânia. 

          Apesar de ambos os líderes tratarem de questões religiosas e pastorais, muito caras principalmente ao ortodoxos, é necessário lembrar que do lado russo há ainda um terceiro elemento que complica a equação do diálogo Roma-Moscou: o Kremlin, grande patrocinador da Igreja Russa após o período comunista. Como lembrou o sacerdote greco-católico Adriy Shirovsky, do Canadá, Kirill não teria encontrado Francisco sem pelo menos ter discutido o caso com Vladimir Putin

          Num possível encontro no Congresso no Cazaquistão, estes deverão ser os espinhos os quais Francisco e Kirill terão de enfrentar: do lado católico a situação dos greco-católicos ucranianos, cuja menção na Declaração de 2016 não agradou aos seus membros, e do lado ortodoxo a resistência antiecumênica dentro da própria igreja.

         O Congresso de Líderes Mundiais e de Religiões Tradicionais traz ainda um outro elemento político: o pensamento neo-eurasiano, criado pelo filósofo russo Alexander Dugin, com grande influência política na Rússia e replicado no Cazaquistão por Nursultan Nazarbayev. 

          O "presidente eterno" fundou por decreto a Universidade Eursaniana Lev N. Gumilëv (nome do principal pensador eurasiano do período soviético), em 1996, e  nesta o Centro Eurasiano, para promover uma política baseada no eurasianismo. Criou ainda uma Assembleia do Povo, cujos membros são apontados pelo próprio presidente, para representar minorias nacionais dentro deste novo escopo político-ideológico. Assim, o eurasianismo cazaque tornou-se ideologia oficial, com modulação e patrocínio do Estado. É dentro deste prisma no qual se insere o Congresso, apresentado ao mundo como um espelho da nova identidade nacional do país.

          Um encontro entre Francisco e Kirill no VII Congresso traria, além da necessária anuência do Kremlin para a viagem do Patriarca, uma projeção mundial ao Cazaquistão, dando relevo tanto à política russa quanto à cazaque. 

           Portanto, não se pode negar o fator político de um possível segundo contato, onde Vladimir Putin se destacaria no seu papel como "campeão dos cristãos perseguidos", para usar as palavra do sacerdote Shirovsky, e o eurasianismo ganharia maior visibilidade.

          Até lá, porém, não saberemos se o Papa e o Patriarca se encontrarão pessoalmente para tratar de temas complicados e espinhosos e mexer em feridas muito profundas. Ao exemplo de 2016, talvez o encontro seja anunciado em cima de hora para evitar reações contrárias como a de Chaplin.

          O que sabemos, como cristãos católicos ou ortodoxos, é que o racha da Igreja Universal, que dura quase mil anos, é um escândalo, e que é vontade de Deus que esta unidade seja reestabelecida. Só o tempo dirá quando.