sexta-feira, 3 de julho de 2020

Ainda a traição dos intelectuais: a tragédia na avidez em transformar o mundo


          Quem ler minhas breves e pontuais postagens sobre os aforismas do escritor G. K. Chesterton verá comentários críticos voltados principalmente aos chamados "progressistas".

          Progressistas são aqueles que acreditam num progresso, numa evolução linear da humanidade, principalmente no campo moral justificado pelo avanço da técnica. 

          Para o progressista, se no passado as pessoas buscavam explicar os fenômenos pela fé em Deus, hoje buscam pela razão; se antes o divórcio era mal visto, hoje ele é moralmente aceito quando não bom; se as pessoas reverenciavam os mais velhos, hoje devem lutar para se manter jovens; se antes valorizavam a vida humana, hoje valorizam a animal tanto quanto a humana; se antes amavam a família, hoje amam genericamente a humanidade ou o planeta. Em suma, as pessoas "evoluem" moralmente ao longo da História. 

          Uma das últimas modas progressistas foi a ideologia diversitária cuja ideia, inicialmente propagada pelo movimento LGBT, alega ser a identidade de gênero um construto social e, portanto, passível de mudança por uma questão puramente subjetiva. Não haveria associação direta entre corpo biológico e auto-identificação. Disto deduz-se que alguém pode ser o que bem entender desde que tome consciência de sua identidade sexual. 

          A diversidade foi erigida como valor absoluto, dissolvendo desde dentro a família nuclear e o casamento, instituições arraigadas no passado. É a "evolução", diriam os progressistas.

          Ocorre que tal mentalidade, uma cosmovisão baseada na distorção do real, distingue-se da da maioria das pessoas, a quem Chesterton chama de Homem Comum. Este vive na realidade direta do cotidiano, preocupa-se com seu sustento material e dos seus próximos e pouco ou nada tem a dizer sobre problemas abstratos ou problemas distantes como guerras e catástrofes ambientais do outro lado do globo.

          É aqui que entra o papel dos intelectuais, que, na obra de 1927, Julien Benda alertou para o desvio de seu ofício original, a dizer (e nunca é demais relembrar): a busca pela justiça, a verdade e a razão.

          A principal traição desta classe privilegiada pela capacidade de compreensão do mundo está na luta pela causa, na adesão a uma paixão de caráter político e, portanto, prático. 

          Os intelectuais distinguem-se das pessoas comuns, os homens comuns, a quem Benda chama de "leigos", por não se preocuparem primordialmente pelas coisas do mundo. Eles "não perseguem fins práticos" e "dizem, de certa maneira, 'Meu reino não é deste mundo." E continua o autor:
"De fato, desde mais de dois mil anos até estes últimos tempos, percebo através da história uma série ininterrupta de filósofos, de religiosos, de literatos, de artistas, de cientistas - pode-se dizer quase todos ao longo desse período - cujo movimento é uma oposição formal ao realismo das multidões."
          Não que se preocupar com as coisas do mundo seja ruim em si, pelo contrário, é necessário, mas a ação exige uma compreensão prévia segura e profunda das coisas, papel que cabe à intelectualidade. Mais adiante Benda continua:
"...a ação desses intelectuais permanecia sobretudo teórica; eles não impediram os leigos de encher toda a história com o ruído de seus ódios e de suas matanças; mas os impediram de ter a religião desses movimentos, de acreditar-se importantes porque agiam para realizá-los. Graças a eles, pode-se dizer que, durante dois mil anos, a humanidade fazia o mal mas honrava o bem. Essa contradição era a honra da espécie humana e constituía a fissura por onde podia se introduzir a civilização." [grifos do autor]
          Esta passagem revela a extrema importância dos intelectuais pois, ao não se comprometerem propriamente com as coisas do mundo (planos políticos, movimentos sociais, planejamentos administrativos, ideologias, doutrinas, etc), eles dirigem os acontecimentos dando-lhes o norte daquilo que é o bem e o verdadeiro, os valores necessários para a convivência humana apesar dos erros da humanidade. O intelectual é o guia que permite sustentar a civilização e garantir a própria sobrevivência do homem.

          Mas a coisa mudou na era moderna:
"Ora, no final do século XIX produz-se uma mudança capital: os intelectuais passam a fazer o jogo das paixões políticas; os que formavam um obstáculo ao realismo dos povos tornam-se seus estimuladores." [grifos do autor]
          Benda aponta aí a traição: não mais comprometidos com a compreensão da realidade, a intelectualidade começa a buscar a direção do rumo dos acontecimentos. Ela deseja mudar o mundo.
"Ter por função a busca das coisas eternas e acreditar em um engrandecimento ao se ocupar da cidade, tal é o caso do intelectual moderno. - Que essa adesão do intelectual às paixões dos leigos fortalece essas paixões no coração desses últimos, é algo tão natural quanto evidente." 
          Ou seja, o intelectual moderno continua a aspirar as coisas eternas, perenes e, portanto, não práticas, mas passa honrar sua vocação nas coisas do mundo. Em outras palavras, busca a realização prática de seu ideal, o paraíso nas coisas terrenas, e tenta convencer o leigo de que deve lutar por esta mesma realização. 

          A traição do intelectual moderno alertado em Benda é a figura do revolucionário, que não se contenta em buscar a verdade para apresentar às pessoas de forma que tenham uma vida boa e feliz, mas transformá-la, e fazer das pessoas sua massa de manobra para seus sonhos utópicos. O intelectual moderno de Benda é o inimigo por excelência do Homem Comum de Chesterton.

          Não é necessário voltar à história recente para ver em figuras como Lênin e Stálin, eles próprios intelectuais, Hitler e Mussolini, insuflados por movimentos nacionalistas e ocultistas, e os extremistas islâmicos, embebidos de doutrinas religiosas, fascistas e revolucionárias, o fruto do ávido desejo destes de mudar o mundo, e o que o desvio do pensamento para coisas impróprias pode fazer.

          A loucura do mundo de hoje não é apenas consequência das catástrofes recentes, mas da insistência dos gênios em consertá-lo e dirigi-lo a objetivos que mudam ao sabor das épocas.

          Até recentemente, estávamos mergulhados na propaganda massiva da ideologia diversitária, na luta pelos direitos das mulheres e no combate às "mudanças climáticas". Subitamente, em meio ao medo generalizado, fomos forçados a mudar todo o cotidiano em nome da saúde, e agora, mais uma vez, vemos emergir a luta "antirracista". 

          Todos estes são objetivos políticos voltados para criar um "mundo melhor"; são estes os frutos mais evidentes da ação dos intelectuais no seu desvio das coisas do espírito para as coisas do mundo. Como diz Benda:
"...eles puseram no topo dos valores morais a posse de bens concretos, da força temporal e dos meios que os proporcionam, e votaram ao desprezo dos homens a busca dos bens propriamente espirituais, dos valores não práticos ou desinteressados." 
"Esse deslocamento da moralidade é com certeza a obra mais importante dos intelectuais modernos, a que mais deve reter a atenção do historiador."
          Pela atmosfera de loucura que paira sobre o mundo, podemos deduzir a confusão que passa pela cabeça dos que traíram seu ofício original e arriscam jogar o mundo, hoje mais complexo e munido de armas e tecnologias antes inexistentes, numa tragédia ainda maior do que as do passado recente.

         Transformar o mundo significa transformar para algo. Não necessariamente para melhor.

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