quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Santos, doutores e analfabetos: os leitores do livro da vida


          Há momentos no meu dia-a-dia em que percebo que estou percebendo algo. Isto mesmo: tomo a consciência de que estou vendo, entendendo o que se passa ao meu redor. É como se eu tomasse posse de parte da realidade, aquela parte que me é apresentada num determinado instante.

          Explico: às vezes estou na rua e vejo o trânsito de automóveis e as pessoas caminhando. Vejo que cada um faz seu caminho próprio e que ao mesmo tempo tem que se movimentar sem se chocar com os outros e os objetos à volta. Porém, ninguém sabe com exatidão se alguém ao lado realizará o movimento esperado. Isto é comum no trânsito: sabemos que o carro à frente seguirá seu curso, mas temos a real certeza de que ele realmente fará isto? Não estará o motorista pensando em dar uma guinada à esquerda de surpresa ou encostar subitamente sem dar sinal? Ou o pedestre à beira da calçada, ele olha para nosso carro em movimento, mas será que temos absoluta certeza de que ele está concentrado em nós e não está distraído com algum pensamento, consciente apenas à sua própria mente, e irá se jogar na frente do carro sem perceber? 

        Nesta situação tudo para mim parece claro, objetivo, evidente. Não que eu saiba o que os demais estão pensando, mas eu vejo, intelectualmente, que todas as pessoas partilham da incerteza sobre o que todas as demais irão fazer, e mesmo assim as coisas funcionam perfeitamente bem. E se há um acidente (uma batida entre dois carros, por exemplo), eles são infinitamente raros se observamos a infinidade variáveis que entrelaçam um fato, que em volta do acidente são milhares, milhões ao mesmo tempo. Podemos ver isto num único toque, num único olhar. É o que chamamos de intelecção, a capacidade de entender a realidade entorno. 

          Este é o meu deleite e talvez o de alguns leitores deste texto. Eu morreria de tédio e de desgosto se pudesse viver momentos assim. Não fico entendendo tudo o tempo todo, mas minha vida correria o risco de perder o sentido caso eu perdesse esses momentos de maravilhamento da realidade que, no fundo, são comum a todos. É neste sentido que a vida é um livro aberto: tudo à nossa volta induz à leitura do mundo e esta leitura se torna, no seu acontecer, uma leitura da alma, porque ler a realidade é tomar consciência de uma operação da alma que se revela na relação com o mundo. Isto é entendimento, isto é intelecção, isto é vida. Portanto, para o ser humano viver é necessariamente entender por mais ignorante que a pessoa possa parecer aos olhos das convenções sociais. 

        Quanto mais límpidos são os olhos da alma, mais clara é esta intelecção, mesmo que a pessoa não tenho inteligência segundo a erudição e a ciência. É neste sentido que a alma santa, mesmo analfabeta, sabe muito mais do que os doutores: ela lê o mundo e não precisa de meios ou instrumentos rebuscados para entender o que precisa ser entendido. O instrumento está nela mesma, está em todas as pessoas. Basta entender, ato este que é um dom dado desde o Alto. A alma santa entende tudo ainda que lhe faltem palavras.