segunda-feira, 6 de julho de 2020

A politização de todas as coisas


          Nos últimos anos, os brasileiros foram vítimas e algozes das disputas políticas pela internet. Foram inúmeras as histórias de brigas, rompimentos, sepultamento de longas amizades que tiveram como estopim temas políticos.

          Lula e Bolsonaro à parte, este é um efeito característicoa da era moderna e fruto direto de um declínio espiritual: a politização de todas as coisas. Diminuída a relevância da vida religiosa pelo processo de secularização, o mundo, isto é, as coisas do imanente, a prática do dia-a-dia, o sensível, o visível o manipulável, tomou a gigantesca dimensão antes atribuída às coisas do espírito.

         O mundo, antes confiado à Providência pelo sentimento religioso do povo, agigantou-se e tornou-se assustador aos olhos do homem moderno, que, em sua cosmovisão limitada, vê apenas uma saída possível (e falsa) para apaziguar o medo: domar o mundo pelo poder político.

          Nas últimas postagens tenho citado a obra "A Traição dos Intelectuais", de Julien Benda. Para o autor, o principal traço desta traição está no abandono à investigação desinteressada da realidade pelos intelectuais e seu empenho pelas coisas práticas, que toma forma de ativismo político. Antes buscando entender o mundo, os intelectuais modernos agora querem transformá-lo, subjugando todos os seus princípios a este objetivo.

          Mas esta politização de tudo não seria possível sem antes uma revolução na cultura. Outro autor aqui mencionado recentemente, o historiador Paul Johnson, afirma que foi justamente o relativismo, advindo das transformações filosóficas enraizadas no século XIX, que permitiu a ascensão de poderes tirânicos e totalitários. Sem antes relativizar a própria vida humana, não seria possível que o poder revolucionário e opressor dos regimes nazista e comunista fossem possíveis. Não se pode matar dezenas de milhões de pessoas tratando-as como pessoas. É preciso desumanizá-las.

          Ao analisar o período pós-colonial do século XX, Johnson afirma que "o político profissional de tempo integral herdou a terra no século XX". Ainda que antes houvesse pessoas do tipo, o político permanente, aquele que vive da política e da agitação, é um traço característico dos últimos pouco mais de cem anos. Para Johnson, os comunistas russos e chineses e os novos líderes do então terceiro-mundo eram exemplos típicos desta classe.

          Esta classe, porém, não poderia se manter de forma permanente sem uma máquina que a sustentasse, e o Estado moderno, com seu aparato burocrático gigantesco necessariamente provido por impostos compulsórios na mesma proporção, não só foi o resultado inevitável do político profissional como é por ele retroalimentado.

          O enorme crescimento desta classe foi possível tanto pela corrupção moral dos intelectuais apontado por Benda quanto pelo próprio processo de modernização, que tem como efeito a complexização da vida cotidiana e o sufocamento da vida religiosa. A era moderna "matou" velhos deuses para colocar reis, chefes de Estado e ditadores no seu lugar.

          A relação entre modernização e crescimento do poder do Estado pode ser encontrada na principal obra de Bertrand de Jouvenel, "O poder. História natural de seu crescimento", diversas vezes citado nos escritos de Olavo de Carvalho e muito bem apresentado no artigo "O Estado e a razão", onde o autor afirma ser o Estado "a mais vasta e complexa criação da inteligência humana, a encarnação suprema da Razão".

          Mas em sua obra "O Jardim das Aflições", Olavo demonstra bem de que forma este crescimento do poder estatal se difunde na sociedade provocando a politização de todas as coisas. Como apontei acima, esta politização é precedida pela dissolução dos valores religiosos.

"O Estado liberal, que professa nominalmente a liberdade religiosa, é dos três o mais eficiente no combate à religião, como se vê pelo fato de que as massas, tendo conservado sua fé religiosa sob opressão nazifascista e comunista, facilmente cedem ao apelo das 'novas éticas' disseminadas pela indústria de espetáculo nas modernas democracias, e abandonam, junto com a religião, até mesmo os preceitos mais óbvios do direito natural: exercendo livremente seus 'direitos humanos' sob proteção do Estado democrático, as mulheres que praticam nos EUA um milhão e meio de abortos por ano logo terão superado as taxas de genocídio germano-soviéticas. Muito mais eficiente do que a tirania de Hitler e Stálin é o regime que, legalizando e protegendo todas as exigências tirânicas e autolátricas de cada ego humano, produz milhões de Stálins e Hitlers." (p. 180)
          
          Com a dissolução da religiosidade da população dissolvem-se, com o tempo, os princípios que sustentam a ordem social ameaçando a ordem mesma.  Assim, o cânone da nova moral secular substitui, mal e porcamente, a ordem espontânea anterior.

"Do outro lado, compensando astuciosamente o desequilíbrio que a liberação desenfreada de desejos poderia causar, o Estado neoliberal produz novos códigos repressivos que, descarregando a reação violenta do superego em alvos moralmente inócuos (o fumo, os beijos roubados, as cantadas de rua, o machismo, o vocabulário corrente, as piadas), dão um Ersatz de satisfação ao impulso natural da moralidade humana, impedindo-o de expressar-se numa condenação frontal de um estado de coisas marcado pela impostura obrigatória universal. (...) ... o Estado, sem deixar de ostentar o prestígio da lenda democrática, acaba por se imiscuir em todos os setores da vida humana, por regulamentar, fiscalizar e punir até mesmo olhares, risos e pensamentos." (p. 180-181)

          Hoje, as denúncias constantes por governos e emissoras de televisão de aglomerações a céu aberto e o não uso de máscaras pelas pessoas comuns, bem como supostas ações racistas e preconceituosas, não apenas repetem literalmente o processo descrito acima, como se apresentam de forma muito mais ostensiva, moralista e repressora. 

          A politização invadiu tudo, da simples presença física nos lugares "errados" ao pensamento e a linguagem, e seu principal fruto é a proliferação ilimitada de Hitlers e Stálins que, em nome da "saúde" e da "democracia", agem como censores da conduta alheia e acabam por instaurar a desconfiança mútua e a opressão de todos por todos.  

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