quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Praia da Armação, 15 de dezembro de 2021

          Nos seis dias em que fiquei em Florianópolis nesse mês de dezembro, a quarta-feira foi o mais movimentado. Conheci dois locais diferentes do município - Armação e Pântano do Sul - e ainda transitei brevemente por aqueles becos tipicamente nacionais, que na ilha são chamados de servidão.

          Cabe destacar que Floripa tem seis rodovias só para si, as SC's 401, 402, 403, 404, 405 e 406, sendo que a penúltima liga o Campeche ao Pântano do Sul. Se por vezes a pista é estreita e a velocidade é limitada, imagina o que não é num servidão, onde o espelho do carro quase bate nos muros das casas.

          A primeira parada foi na Armação, bairro criado em 1772 com o nome de Armação da Lagoinha, uma referência aos locais de beneficiamento de produtos vindos da pesca da baleia, prática que se espalhou na região a partir de 1730. Chegando ao seu minúsculo centro, damos de cara com uma igreja, a Sant'Ana e São Joaquim, com a inscrição "1772" sobre a porta de entrada. 

          Fiquei um tanto contrariado ao me deparar com a cor vibrante do amarelo recém pintado e a data estampada na fachada. O conjunto não combinava, havia algo de não-espontâneo naquilo. E sua torre, acrescentada ao prédio em 1953, parecia um pouco deslocada para um edifício religioso do século XVIII. Só depois descobri que, apesar de antiga, a tradicional igrejinha não é mais a mesma que fora no passado e nunca fora tombada tendo sofrido diversas intervenções. 

          Na sua frente, outro contraste, o asfalto largo que se abre até a beira da praia e os fios de alta tensão que recortam o limitado visual da igreja. A área aberta, disputada por alguns motoristas ansiosos para estacionar um automóvel - ou largá-lo sem muito critério num momento de emergência - também é arena de manobras ousadas de uma linha de ônibus que, para cumprir a rota, realiza um habilidoso retorno sem deixar marcas nos arredores. 

          A praia larga ao longo da rodovia pela qual havíamos passado uns minutos antes se torna mais estreita na medida em que se aproxima do conjunto de casas do bairro. A areia, farta e macia, se torna mais exígua entre o novo calçadão do bairro e a passarela que dá acesso a Ponta das Campanhas; as águas calmas mantém os vários barcos de pesca flutuando livremente sob a proteção da Ponta; as casas, que ainda lembram suas origens portuguesas, se mesclam com algumas construções mais modernas perfiladas ao longo da linha da praia; e o verdejante Morro do Matadeiro, ao fundo, comprime as construções junto ao oceano fechando o conjunto da obra com sua onipresença. Está formado o cenário perfeito para um refúgio de tranquilidade e paz.

         O dia abafado, depois transformado num cinza mais agradável que começava a tomar o topo do morro com uma neblina, parecia ideal para uma praia - até um grupo de três gurias se colocarem atrás de nós e uma delas, sem o menor pudor, resolver abrir sua vida privada para meia humanidade ouvir. 

          Passando pela passarela que dá acesso a Ponta das Campanhas, encontramos no alto uma imagem que, para minha frustração, não era de Nossa Senhora, mas de Iemanjá. É evidente que a expectativa para alguém apegado à Mãe de Deus era de que uma figura feminina, visível ainda na subida da Ponta, fosse Maria, mas logo percebi, pelo perfil da imagem, o cabelo negro e o tipo de vestimenta que a pessoa representada era alguém parecida com Ela, e não deu outra. Passando ao lado da imagem à beira do rochedo, me deparei com uma oferenda a Iemanjá de alguém que teve o bom senso de deixá-lo numa caixa protegido do vento. No alto do rochedo, a belíssima vista da Praia do Matadeiro, com a enseada arenosa, o pontilhado de surfistas - a praia está voltada ao mar aberto - e a foz do Rio Quincas (ou Rio da Armação) que recebe as águas do Rio Sangradouro e deságua para o mar num leito raso, travessia de acesso à praia vizinha. Se na areia reina - ou deveria reinar - a paz e a tranquilidade, no alto da Ponta das Campanhas a atmosfera é mais profunda, há um convite à contemplação, típica das paisagens amplas que transmitem, por sua vastidão, o senso de eternidade.

          A Armação continuava tranquila ao longo da tarde. Com o horário de almoço totalmente desregulado, com pastéis e caipirinhas aleatórias, entramos num café cuja rua dá acesso à frente da igreja, com o detalhe de que já eram quase quatro horas. O tempo carregado com a umidade vinda do mar desaguou num chuvisqueiro reforçando a percepção de que estávamos num local frio, apesar do ambiente, da cidade e da temperatura dizerem o contrário. E detrás da janela ampla que dava para a rua estreita passaram as escandalosas, ao menos expansivas do que na praia. Seria realmente estranho chamar a atenção no meio da rua. Até mesmo nas praias brasileiras as coisas têm limite.

          Com os bancos molhados e sujos pela areia deixados para trás, seguimos aos extremo-sul da ilha, na Praia do Pântano do Sul.

           

            

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Dia 13 de dezembro de 2021

 

          Sem dúvida, Santa Catarina é um dos estados geograficamente mais interessantes do Brasil, principalmente porque a porção leste de seu território tem a audácia de concentrar, num espaço muito pequeno, alguns dos extremos climáticos de um país de dimensões continentais.

          Subindo pelas veredas da costa atlântica, a BR-116 presenteia os motoristas com as paisagens das mais diversas numa sequência de morros, planícies, rios e cidades e, cedo ou tarde, se encontra com o oceano. E as nuvens, formadas pelo obstáculo do barlavento, crescem na medida em que os cumes apontam para o alto, contrastando o denso verde da Mata Atlântica com o cinza escurecido do vapor d'água que anuncia a chuva que há de vir.

          Pude reviver esta experiência no primeiro dia de semana útil numa viagem de família de Porto Alegre a Florianópolis. Na medida em que adentrávamos as terras de nossos vizinhos catarinos, a serra se elevava e voltava a se aproximar da estrada. Há quem quisesse nos corrigir dizendo que era a estrada que resolvera se aproximar da serra, mas da perspectiva de quem se deslocava em velocidade, a geografia se modelava e remodelava como se o automóvel estivesse parado. Sim, a estrada se voltava aos paredões verdes, e os vales encravados entre os morros abriam espaço para que o fio da estrada desse vida àqueles que corriam em busca de outros mares.

          Entrando em Santa Catarina, mudava também as condições do tempo. A atmosfera, apesar de arrefecida pela proximidade com o oceano e menos quente do que as terras que abandonamos ao sul, se tornava muito mais carregada, e o topo de alguns morros encontrava a base das nuvens, que de tão espessas e baixas tornavam visíveis as rendas de vapor d'água.

          Nesse momento recordei-me de um episódio de dezembro de 2013, também na mesma região. Eu estava em Garopaba, o dia era quente e úmido e uma chuva de verão se aproximava. Em poucos minutos a enxurrada cobriu a pequena cidade costeira, e intensos clarões dos raios que caíam por perto iluminavam mais do que a própria luz do dia. Tão intensos e rápidos quanto os relâmpagos eram os trovões, que evidenciavam a dinâmica explosiva do fenômeno. Ainda que temeroso pelos barulhos repentinos, fiquei fascinado com o evento, porque não só vivia como compreendia o que estava acontecendo, sabia que aquela bomba caída do céu resultava daquelas nuvens reprimidas nos morros e do caldeirão sufocante que se elevava dos vales detrás das praias.

          A memória era reativada nos dias de hoje por aquele cinza escuro engolindo as montanhas e cobrindo os vales, reproduzindo a situação ideal para desaguar no festival de oito anos atrás. Quanto mais avançávamos para Florianópolis, mais carregadas ficavam as nuvens junto à borda da serra e mais minha expectativa era instigada na espera pelo presente dos Céus. 

          Mas tudo não passara de alarme falso. Pude notar, com o passar das horas, que a suposta ameaça era apenas uma estética do perigo. O tempo estava abafado, mas não ao ponto de ebulir em tormentas; a atmosfera não estava convidativa a sequer uma chuvinha decente, quem diria a uma enxurrada com raios lançados como se viesse do alto dos montes. Soube não só pela observação, mas também pela internet - na era da técnica, enfiamos a meteorologia inteira no bolso da bermuda - de que toda aquela umidade e abafamento no final das contas era apenas isso: umidade e abafamento. O vento úmido do mar apenas enchia os morros com vapor d'água como alguém que tentasse, por irracional insistência, acumular travesseiros na parte de cima do roupeiro. E ficava nisso, num frustrante acúmulo de material sem finalidade alguma.

          Chegando nas proximidades da cidade de São José, a estrada se voltou para a costa, a serra ficou para trás e o sol voltou, ainda que vencendo com alguma dificuldade os ares úmidos da região. A atmosfera abafada e a claridade misturadas à agressiva feiura da cidade, que se adensava em bloquinhos de concreto, vias expressas e cabos de energia lados, anunciavam a proximidade da Ilha de Florianópolis. 

          A chamada "Ilha da Magia" ficou apenas no nome, não trouxe o festival de luz, sombras, raios e estrondos que pudesse justificar, pelas peripécias vindas do ares, o apelido da ilha. Muito pelo contrário. Aqui, sob o teto quase sempre cinzento, as nuvens passam e continuam a se perder para as bandas do interior. E sem as loucuras sobre minha cabeça, sinto momentos de paz.

                    

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Dia 7 de dezembro de 2021

          Há tempo notei a existência de um paradoxo: quanto menos tempo temos para fazer as coisas, mais disposição temos para realizar outras coisas; e quanto mais tempo temos, menos disposição temos para outras iniciativas. Pela lógica, deveria ser o contrário: se temos tempo livre, oras, então deveríamos ter mais disposição para agir. Minha afirmação surgiu basicamente por experiência pessoal, depois confirmada com outras pessoas.

          Olhar o tempo livre é contemplar o potencial que temos para ir além daquilo que somos. Em outras palavras, é a oportunidade de crescer, de realizar aquilo que os gregos chamavam de "ócio": o cultivo da alma e do corpo para melhorarmos enquanto pessoa, o que inclui nos aprimorarmos intelectual, moral e fisicamente através dos estudos, do cultivo das artes, do esporte, da oração, e assim por diante. Quem dera essa disposição surgisse automaticamente no contemplar do tempo livre, como se o cair de um gota de água límpida fizesse imediatamente a semente se transformar numa árvore de copa larga.

          Essa observação diz respeito às pessoas com rotina definida e que, após o trabalho, têm algum momento em que podem cultivar a si mesmas ou a vida em família ou com amigos.

          Quando fiz uma breve busca na internet na tarde de hoje para ver os concursos públicos disponíveis, me deparei com um "azar": um deles havia encerrado as inscrições vinte e cinco minutos antes de eu acessar o site; outro anunciava o dia do pagamento da inscrição no mesmo dia em que eu descobria o edital. Azar entre aspas, pois as coisas dependem da providência e de nossa iniciativa; no meu caso, da falta dela.

          Onde eu estava na falta da busca? Se estou com um problema a resolver, a questão é simples: dê o primeiro passo, vá atrás. Uma longa viagem da casa até a fazenda, do Brasil à China, do desemprego ao emprego começa com o primeiro passo. Se a casa se erguesse antes do primeiro tijolo, bastaria o desejo de conseguir um trabalho para que parte do caminho já estivesse trilhado antes mesmo de ser conhecido. Deus faz muito por nós, mas não o que cabe a nós fazer, pois somos os remadores que só encontram o rumo certo na vida ao remar guiados por aquilo que confiamos de coração.

          O tempo que sobra torna-se um fardo como num trabalho exaustivo quando o tempo do ócio confunde-se com o do negócio, para utilizar outro termo dos gregos antigos, agora referente à prática de nossas necessidades cotidianas. Por isso costumo dizer que o desempregado não tem férias, mas um problema a resolver que contrasta vivamente quando seu amigo ou vizinho, cansado mas realizado, despacha o próprio corpo à beira de uma praia. 

          Na ausência do primeiro passo o fosso só se alarga e aprofunda, engolfando ócio e negócio, lazer a trabalho, vida particular e pública numa grande sopa que apodrece à falta de luz do sol.  

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A Rússia me persegue

 

          Existe um país que me persegue. Ele é conhecido, entre bebidas destiladas e frio extremo, pela ostensiva prática de espionagem. Não que seja o único a praticar isso, obviamente, mas se convencionou a vê-lo do Ocidente como um mistério indecifrável, e o Brasil, fortemente influenciado por aquilo que dizem os americanos e europeus, entrou no roldão no carnaval desses estereótipos.

          A Rússia me persegue, ou talvez eu persiga a Rússia. E mais uma vez fui pego por uma espécie de espião invisível que, na hora "H", resolveu dar o ar da graça.

          O mais recente fato curioso foi neste último dia de novembro, quando estive mais uma vez no Centro de Porto Alegre para os afazeres burocráticos e aproveitei para dar uma esticadinha num sebo, na famosa ladeira que liga a Rua da Praia com a Praça da Matriz.

          Espremido entre elevadas paredes de livros, uma espécie de paraíso estreito, ao fundo do corredor mexi de forma um tanto aleatória nos livros sobre religião quando, de repente, um pequeno cartão de promoção da cultura soviética caiu ao chão. Não havia pensado em nada sobre a Rússia no momento, mas o cartãozinho comunista estava lá entre os livros quando, ao puxar um deles, veio num leve tombo ávido a se apresentar.

          O material comemorava os oitenta anos da Revolução Russa com a inscrição "1917 1987", e por entre os números se erguia a Torre Spasskaya, a principalmente do Kremlin de Moscou, com a sua famosa estrela vermelha ao topo, tendo do lado direito outras duas torres de seus muros avermelhados e do esquerdo a cúpula do Senado do Kremlin com a bandeira soviética tremulando. Ao centro, um exemplar de uma revista comunista em português e abaixo a chamada "Não se esqueça de assinar a tempo jornais e revistas soviéticas!".

          Não me furtei de pensar, no mesmo instante, que aquilo só poderia ser para mim. Não me refiro à propaganda comunista, mas à referência à Rússia, enorme nação imperial que, apesar de minha insignificância, volta e meia aparece para me dar um alô.

          Não sei quando comecei com o fascínio por esse país ao mesmo tempo tão distante e tão presente, mas algumas coisas dão o que pensar. Na juventude, sempre achei Moscou fascinante por sua arquitetura grandiosa e ruas largas, cujos projetos visavam remodelar a cidade como exemplo da cidade comunista ideal e uma portentosa capital imperial. Tanto as peculiares igrejas - com a emblemática figura da Catedral de São Basílio, símbolo máximo da Rússia - quanto as chamadas Sete Irmãs de Stálin, em parte inspirada na própria arquitetura russa com bordas e torres pontiagudas, apresentam Moscou como centro de um império. 

          Certamente fui atraído pelo imaginário popular ou, diria melhor, pela figura estereotipada e militante da "grandiosidade" comunista, que infundia nas consciências juvenis o sonho de transformação da humanidade em todas as suas dimensões. Grandiosidade, universalidade, ideal, uma sedução sem fim de um universo inteiramente novo representado pela Terceira Roma, agora sob vestimentas materialistas. Por detrás da imensidão material e espiritual da Rússia, pulsava o ímpeto revolucionário que fizera da nação hospedeira seu Cavalo de Tróia. Amarga ilusão regada a muito sangue.

          Recordo-me de um ex-professor de pós-graduação lendo um texto a respeito do cosmismo, ideologia tão exótica e misteriosa quanto o país que lhe dera origem, que propunha uma nova evolução da humanidade em sua exploração do espaço, cujo resultado seria - pasmem! - a vida eterna! Uma loucura tipicamente russa e sedutora para um país com mania de grandeza. No artigo, um integrante do governo declarava, abertamente, sobre "o caráter nacional do povo russo, acostumado a pensar em categorias globais e pronto a sacrificar a vida por uma ideia". Ora, ora, quão fascinado sou por ideias amplas, arrebatadoras e reveladoras a respeito da vida, do homem, da História humana, do Universo inteiro! 

          Este foi o principal motivo pelo qual sempre me senti atraído pela mensagem de Fátima. Uma atração que por muito tempo foi muito mais mental do que espiritual. Seduzido pela temática impactante e abrangente, via as revelações sobre a História como muito mais interessantes do que o plano divino de salvação das almas e de paz no mundo, suas verdadeiras razões de existir. E nessa história tão incrível quem estava lá com uma menção toda especial? A Rússia, como pivô de uma época, a minha época, chave para a paz no mundo. A mensagem se encaixava muito bem nas "categorias globais" como forma de pensar o mundo. Minha atração pelo conteúdo era inevitável, mas até então boiava em divagações ao estilo History Channel.

          Apenas recentemente, em 2019, entrei de roldão na mensagem de Fátima graças a uma paróquia próxima de casa que realizava a Devoção dos Cinco Primeiros Sábados, e só depois disso entendi claramente, lendo as memórias da Irmã Lúcia, que a Consagração da Rússia não era o único fator da paz mundial, mas um de seus pilares junto com a Comunhão Reparadora. Fisgado pelo interesse pessoal pela Rússia, fui parar na frente de Nossa Senhora de Fátima como que um participante não só da História humana, mas do tempo de Deus, que não se mede por padrões humanos nem se limita a fronteiras nacionais. 

          Estar com Fátima é estar na Rússia. Basta menos do que um passo e menos do que o pulsar do ponteiro do relógio para atravessar mais de meio mundo. Quando me dobro frente à Nossa Senhora de Fátima, sei que um pouco de meu espírito repousa no distante país, da foz do Rio Neva à tundra siberiana, pois foi de meu interesse pela imensa nação que descobri, para conforto interior, a real dimensão da devoção a que me vinculava.

          A revelação pessoal não pára por aí. Em fins de 2019, descobri o repositório digital do jornal Voz de Fátima, dedicado à difusão da mensagem e publicado todo o dia treze de cada mês desde outubro de 1922. 

          Este que voz escreve veio ao mundo em 12 de fevereiro de 1981, e dada as "coincidências" que surgem naqueles que buscam uma vida espiritual, resolvi investigar o que se publicava a edição do dia seguinte. A situação não poderia ser mais reveladora. Dizia o título da capa: "Fátima e a Consagração ao Imaculado Coração de Maria". Chamada chocante para quem se dispôs, há dez anos, realizar a Consagração Total pelo método de São Luís Montfort, uma devoção de entrega à Maria Santíssima. Mas as coisas não pararam por aí; o subtítulo continuava: "Em diversas manifestações, Nossa Senhora pediu a consagração ao Seu Coração Imaculado: Consagração do Mundo e Consagração da Rússia.", e no pé da capa, outra reportagem anunciava seu título: "O Coração de Maria e os Primeiros Sábados". 

          De boca aberta, fiquei a imaginar o por que da impressão desse jornal exatamente com esse conteúdo menos de vinte e quatro horas depois de sair do delicioso aconchego materno. Saído de um aconchego, já se preparava outro com material feito especialmente para mim no futuro. Sim, essa edição foi impressa para que eu pudesse lê-la trinta e oito anos anos mais tarde. Ninguém imaginava minha existência, mas Alguém desde antes do princípio das coisas não só imaginava como já havia decidido tudo.

          Outra impressionante "coincidência" é o salto no tempo e no espaço que me fez olhar para uma distante terra gelada no passado. Explico. Na Renovação Carismática, bem como em certos grupos de oração, realiza-se a cura da árvore genealógica, procedimento que é, pelas palavras do falecido exorcista Gabrielle Amorth, ponto de discussão na Igreja Católica dadas suas sensíveis implicações teológicas. Como nunca fui autoridade tarimbada no assunto, pude conhecer dessa árvore pelos frutos quando tive experiências com orações de libertação.

          Em meados de 2009, tive o enorme privilégio de receber umas dessas orações que penetram nas gerações passadas. Na ocasião, queria descobrir a origem das dificuldades de relacionamento com meu pai, algo que perpassou toda minha vida. 

          Fui colocado sentado no centro de um sala em frente a uma imagem de Jesus, que expressava um olhar simplesmente irresistível a causar um desarme da alma. Ao meu redor, um grupo de mulheres introduziam orações católicas e invocação a Santíssima Trindade, anjos e santos, e impunham docilmente as mãos sobre mim. Buscando responder à minha ansiosa dúvida, uma das mulheres presentes me informou que visualizava um cossaco, e este tentava impor ao seu filho modos de agir e até mesmo o que ele deveria ou não pensar. Isso mesmo, um cossaco, e na Rússia. O homem, distante no tempo e no espaço, era antepassado da linhagem paterna, coisa que jamais imaginei nem por desejo. Como não possuía dons e sensibilidades afloradas, muito menos tinha o conhecimento teológico de um Adolphe Tanqueray ou as experiências de Santa Teresa d'Ávila, tive de me contentar com a descrição do local: havia neve. E como poderia ser a Rússia? Pois era a Rússia, respondeu a mulher, e o homem era um cossaco, o que me faz concluir que a libertação retornava pela minha linha familiar até meados dos séculos XVII-XVIII.

          Outro laço com a Rússia foi mais indireto, mas não menos surpreendente. Ingressei no mencionado grupo de oração em 2012, e uma das mais marcantes experiências ocorreram com canções religiosas, mais especificamente uma versão específica da Ave Maria atribuída ao compositor italiano do século XVI Giulio Caccini.

          Todas as vezes em que ouvia o som pela voz de um dos coordenadores do grupo, meu peito borbulhava como se produzisse vapor a explodir pela garganta, e que subitamente transbordava como a caneca com leite fervilhante. Não era o curto Neva, mas o vasto Volga que vinha à tona. A combinação de sutileza, profundidade e força da melodia tiveram em mim efeito avassalador. Não só a melodia em si, mas quem a cantava foi determinante. Richard Emunds era cantor profissional e se tornou meu padrinho de crisma, instrumento providencial decisivo para minha volta à Igreja. Através da canção a Nossa Senhora, eu vivia aquilo que costumei chamar de "experiência de Deus", o "sentir", como diz a banal linguagem popular. As cicatrizes abertas pela canção eram como que buracos por onde penetrava e jorrava a graça. Nunca mais quis me curar. 

          Mas que raios esse episódio tem a ver com a Rússia? Nessa última semana de novembro descobri que a mencionada canção da Ave Maria não era de autoria de Caccini, mas de Vladimir Vavilov, compositor russo que criou a música em meados de 1970 na então Leningrado publicando-a de forma anônima. Um duplo sopro providencial que fez brotar uma canção profundamente espiritual num regime antirreligioso e a fez alcançar essa alma então desnorteada por sonhos ilusórios e sentimentos desequilibrados que pululavam em lágrimas. 

          Não sei se Vavilov pensava em conversões ou possuía alguma devoção mariana especial, mas por seu valiosíssimo instrumento Nossa Senhora fez comigo o que ainda pretende fazer - e fará - com a Rússia.

          Mas enquanto a conversão da Rússia prometida em Fátima e Garabandal não chega, a Santa Sé e o Patriarcado de Moscou trabalham sutilmente nos bastidores por uma aproximação. Um passo ousado foi dado após vinte anos de discussão quando ocorreu o primeiro encontro da história entre um Papa e um Patriarca russo, Francisco e Kirill. O encontro teve direto abraços, sorrisos e uma Declaração Conjunta com temas muito delicados O ano era 2016, e o dia - sim, acreditem - 12 de fevereiro. De tão pessoalmente representativa, a data soava quase como uma ironia. Era dia do meu aniversário, praticamente um presente pessoal. 

          Na época não pude esconder minha alegria, que brotou discretamente quando soube da novidade pela internet, como se eu tivesse colocado a mão na sensibilíssima diplomacia Santa Sé-Moscou e participado de algo tão surpreendente. Obviamente seria ingenuidade pensar que disso pudesse vir a definitiva união das igrejas, algo tão improvável como o Papa e o Patriarca acenderem velas num bolo de aniversário e cantarem "Parabéns pra você" para um habitante desconhecido nas plagas do Sul do Brasil.

          Voltando ao 30 de novembro, uma pequena coincidência se revelaria pouco menos de seis horas depois do cartãozinho soviético me dar um alô. Eu havia começado a escrever esse texto comentando da misteriosa perseguição que o mencionado misterioso país vem promovendo à minha pessoa quando interrompi a escrita, fui à missa e soube, pela voz do padre, que estávamos comemorando o dia de Santo André. 

          Um dos apóstolos de Cristo, André é considerado ninguém menos do que fundador do cristianismo no Oriente e o santo mais venerado na Ortodoxia. Coincidência? E no mesmo dia, o Papa exortava, junto ao Patriarca de Constantinopla, que os ortodoxos buscassem a unidade de ambas as igrejas. Este texto tinha de ser escrito. 

          Todos os dias somos pegos com as calças na mão ou com o cartãozinho que cai ao nossos pés. Se há algo providencial entre minha relação com a Rússia ou se ela é mais um instrumento da providência que Deus dispôs para minha conversão, só o futuro dirá. E o futuro a Deus pertence.