sábado, 24 de dezembro de 2022

Feliz Natal | 2022

          Creio que o Cristianismo jamais será compreendido enquanto não for visto como realidade, e não meramente fé, como se essa fosse distinta do próprio mundo em que vivemos e, pior, como se fosse alheia à razão. Jesus Cristo é uma realidade, Seus milagres são realidades, Sua morte e ressurreição são realidades, Sua presença em pessoa na Santa Comunhão é uma realidade!

          O Natal, portanto, não é simplesmente história e tradição. É fato. É acontecimento!! E o mais impressionante é que Jesus, sendo Deus, que é o Eterno, o Infinito, o Absoluto, teve a infinita humildade de vir ao mundo e entrar na História como uma criança nascida numa estrebaria. Querem coisa mais chocante do que o Todo-Poderoso vir ao mundo da forma mais humilde possível? E mais, porque Ele quis? Porque foi Sua vontade? Ele poderia ficar lá, na Sua Glória, sorrindo eternamente para si mesmo.

          Mas não. Ele escolheu o amor. A maior prova de amor que o Natal traz é que um Ser tão poderoso se fez infinitamente pequeno por causa nossa, minha e sua. Ele se importa contigo. Isso é amor, meu camarada. Proporcionalmente você não é nada para Deus, mas por amor você é tudo para Ele. E Ele, ainda por cima, preparou-se por 33 anos para derramar todo o Seu sangue por você na cruz.

          O Natal é a celebração do amor mais profundo, mais largo, mais infinito que transcende a nossa inteligência. O amor de Jesus, de Deus, por nós é inimaginável! Absolutamente inimaginável!! Só o amor infinito seria capaz de cobrir o abismo intransponível entre a infinitude divina e a finitude humana. E Nosso Senhor Jesus Cristo, como Menino, cobriu esse abismo. O amor de Jesus por você é infinito, e por isso mesmo capaz de cobrir toda e qualquer distância, toda e qualquer solidão, toda e qualquer treva. O resto não importa. Só Ele importa. Só a Sua Pessoa, o Seu Amor importa. Tudo o mais é consequência.

          FELIZ NATAL!!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

O paradoxo da luz

 

          Poucas coisas me deprimem mais do que aqueles dias de calorão intenso, céu limpo e luz estourada ao ponto de enrugar o rosto ao pô-lo pelo lado de fora da janela. O calor opressivo e úmido desanima o corpo, a ausência de nuvens dissolve a esperança e a luz intensa - além da radiação emanada dessa mesma luz e que provoca o calor - exige proteção que, começando pelos olhos, acaba por puxar o corpo inteiro ao recolhimento.

          Psicologia à parte, tenho repulsa a essa experiência típica de final de ano e início das chamadas férias, onde a sociedade brasileira, refratária a tudo o que diz respeito à vida interior e ao senso mais básico de realidade, se joga ansiosamente ao culto de tudo o que essa época representa, virando a ordem de cabeça para baixo na medida em que a temperatura sobe. 

          Opressão, mal-estar, depressão e dispersão. Um caldo perfeito para os fracos de espírito se deixarem levar pelos três primeiros e, ao bater do desespero, se jogar de cabeça no quarto. Não por acaso o carnaval, tomado como o ápice de nossa "cultura" e "diversão", foi alçado às alturas muito além da festa da Páscoa no país que se ufana em dizer ser o "mais católico do mundo".

          Mas hoje, em meio à luz estourada do início de dezembro, vi outra luz. Não necessariamente com os olhos, pois os olhos veem o mundo, mas aquilo que a alma contempla e podemos chamar de graça. E essa graça não seria alcançável se o mundo não fosse também simbólico transcendente à sua forma imediata.

          A luz que cega é a mesma que ilumina, o calor que arde é o mesmo que dá a vida e a sensação de opressão que se abate é a mesma que nos impulsiona à vida interior. 

          Me recordo de uma viagem recente em fins de outubro quando voltava de Gramado para Porto Alegre num dia de céu limpo, e meu padrinho de crisma comentava sobre a luz forte já no miolo da primavera. Partindo dessa luz tropical intensa, dizia ele que os pintores europeus tinham à sua disposição a luz do sol das regiões de clima temperado, o que lhes conferia maior contraste de cores com as estações do ano. 

          Assim, se a luz menos intensa dá cores mais vivas, a luz mais intensa dá vida mais abundante, materialmente falando. Em ambos os casos ela realça a vida, ora pela estética, ora pela abundância.

          Mas a luz vai além do simbolismo, ela ilumina a alma, dá movimento e sentido à vida enquanto tal.

          São Boaventura chama Deus de Pai das Luzes, numa referência a Ele como origem da inteligência humana com sua capacidade de contemplar e transformar o mundo. Luz, aqui, é intelecção, inteligência, apreensão da realidade. Pois se a natureza não é apenas material, mas também simbólica, então ela nos diz muito mais do que a forma encerrada em si mesma. A natureza é o primeiro Evangelho, que nos exige contemplação e compreensão para uma vivência correta segundo a ordem estabelecida desde o Alto.

          Portanto, sem luz não haveria visão e, mais ainda, não haveria inteligência, atributo exclusivamente humano por graça divina. A luz compreende o tripé que permite o homem existir, ver e entender, e por isso mesmo se faz humano e tão próximo d'Aquele que o criou.

          Subitamente, a luz estourada desse início de dezembro que observei pela janela se transformou, por um instante, num chamado do Céu, como se dissesse: "Eu estou aqui". O ambiente opressivo se transformou em ânimo e força para um vida abundante, como se a radiação fosse transmutada em energia física, num alegoria da alma que se vivifica com a luz que vem do Céu.  

          Ninguém vive se não foi antes pensado pela mente divina. A luz é um fiat, o impulso vital que anima e dá a vida, como o ardente sol de verão que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que oprime dá a vida em abundância.

sábado, 5 de novembro de 2022

A corrida injusta

 

          Depois das eliminatórias, chegou a final da corrida mais especial do ano: os dois mil e oitocentos metros sem barreiras. Os finalistas, Lúcio e Jaime, estavam a postos para a largada. 

          O tempo nublava, ameaçava chuva com trovões à distância, e fazia muito calor. Na arquibancada absolutamente lotada, uma boa parte do público torcia para cada um dos seus atletas, e uma parcela menor, apesar de sentir o calor das torcidas, se mantinha indiferente preocupada apenas em ficar acomodada no seu lugar tomando um sorvete ou uma cervejinha. Pouco se importavam quem iria vencer e apenas se divertiam com as torcidas.

          Alessandro, o juiz da corrida, estava na largada para dar a partida, enquanto um subordinado ficava à linha de chegada. Olhava com fixação para a pista de saibro, seus olhos negros transmitiam determinação enquanto a careca lustrosa brilhava à luz do sol que ainda aparecia entre nuvens escuras.

          Levantou o braço para o alto com rigidez, revólver em punho e, pam!, Lúcio e Jaime largaram a todo o vapor!

          A torcida se animava, empurrava cada um de seus atletas, e por vezes xingamentos apareciam de um para o outro lado tentando incomodar e atrapalhar o grupo adversário. O juiz olhava para arquibancada e, ao invés de se concentrar exclusivamente na competição, mandava três subordinados averiguarem a suposta confusão do público. A parcela ainda indiferente continuava de sorvete e cerveja na mão, e um que outro começava a se animar com a disputa.

         Jaime sentiu os pés pesados, não entendia como poderia ser tão mais difícil correr do que nas eliminatórias. Não tardou para notar que dentro das solas do tênis - sim, dentro das solas, não debaixo delas - havia pequenas placas de chumbo que dificultavam a explosão muscular e o espaçamento das passadas. A torcida chiava, reclamava, inclusive xingava o adversário e o juiz pela trapaça. Não farão nada contra essa sacanagem? Quem forneceu a ele o par de tênis com peso adicionado?

          Imediatamente a polícia entrou na arquibancada e silenciou a barulheira levando alguns torcedores embora, devidamente orientados pelos subordinados do juiz. Do outro lado, a torcida adversária aplaudia, e os comentaristas de rádio e TV explicavam para a audiência o inusitado acontecimento sancionando as ações repressivas.

        Apesar da vantagem, Lúcio corria um pouco menos, sentia cansaço, mas seguia na liderança com Jaime logo atrás. Subitamente, ele notou que na pista ao lado havia uma barreira e, seguindo as normas da competição, corria exclusivamente em sua faixa sem se importar muito com aquele familiar objeto. Jaime se deparou com a barreira surpresa e pulou-a. Acertou a barra superior com a coxa esticada para trás e caiu ao chão, levantando logo em seguida e disparando com expressiva vontade ao ponto de compensar o peso adicional dos tênis.

        Alessandro fez sinal para continuar, Jaime olhou para trás, o ignorou e partiu na busca por Lúcio. Sua torcida chiava mais uma vez e xingava a torcida vizinha; como resposta, esta parte retrucava xingando e acusando os primeiros de trapaça. "Vocês não sabem jogar! Trapaceiros!" Era a primeira vez que uma parte do público acusava o outro de ser injusta, justamente aquela que fora injustiçada. Calúnia. Difamação. Os jornalistas, ouvindo a discussão, repercutiam a acusação nos meios de comunicação e comentavam a necessidade de se colocar ordem na baderna.

          O juiz ouviu as palavras pesadas, fitou obstinadamente os olhos no público e não teve dúvidas: mandou novos emissários para a arquibancada, que chamaram a polícia para acabar com o tumulto. Apontou para a pista e mandou colocar outros dois obstáculos.

          A polícia subiu na arquibancada, identificou os caluniadores, que apontaram os que estavam sendo caluniados, trocou de lado e cercou as pessoas apontadas. Além de caluniadas, agora tinham a polícia no pé. No bate-boca, mais gente foi retirada da arquibancada.

          Jaime começava a ultrapassar Lúcio, que suava muito e tentava se recompor com apoio de sua torcida, mas inesperadamente ambos encontraram os dois novos obstáculo à frente. Jaime pulou um dos cavaletes e... pulou o outro também! Ambos estavam na mesma pista! Bateu com o joelho detrás na barra de madeira e pisou com o pé esquerdo torto, causando muita dor no tornozelo e forçando excessivamente o músculo principal da coxa. Cambaleando, tentou se recompor, enquanto Lúcio abria novamente vantagem.

          Um dos subordinados apitou com força. Alessandro se aproximou dele, que apontou que Jaime havia tentado sair de sua faixa de corrida atravessando a linha divisória do adversário. Mesmo distante, correndo em velocidade pela curva, Jaime parou logo no apito e ouviu a punição: dez segundos imóvel. Não aguentou mais: abriu os braços, esperneou, as veias do pescoço saltaram e seu rosto se transfigurou num vermelhidão tomado pela raiva. Neste exato momento, um fotógrafo que cobria a competição captou uma imagem de Jaime, desfigurado como um monstro em fúria, e a esplendorosa figura saiu na TV e na internet. A audiência ficou assustada. Como pode um homem desequilibrado como este competir em algo tão importante? E Lúcio corria em disparada.

          A razão da parada e da fúria de Jaime tinham uma explicação: seu técnico apontou a trapaça do peso nos seus tênis, mas ao invés de averiguar a denúncia, Alessandro o mandou para fora do abrigo que fica à beira da pista e o descredenciou de frequentar o estádio pelo resto do ano. A torcida, revoltada com a punição, foi multada por cantar contra Lúcio e ironizou os uso dos pesos de chumbo. A polícia também agiu: entrou nas cabines da imprensa e ameaçou alguns jornalistas que criticaram duramente o juiz pelo arbítrio. Vendo o mau tempo invadir o local de trabalho, fizeram como a torcida de um dos lados: baixaram a bola e foram obrigados a não mais mencionar o nome de Alessandro na transmissão de rádio e TV.

          Passados dez segundos, Jaime retomou a corrida com tudo, enquanto Lúcio corria à frente em maior vantagem.

          O tempo nublou de vez, e as trovoadas aumentaram em barulho e frequência. A arquibancada ficou um pouco assustada, Jaime passou a suar mais e Lúcio, um tanto displicente, afrouxou o passo enquanto sua torcida demonstrava confiança na vitória. 

          Vendo o fim se aproximar, Jaime acelerou o passo, desta vez ainda mais do que antes, e sua torcida, apesar de menos confiante, retomou a gritaria e os cantos, mas de forma comedida. Seu atleta notou o canto contido, mas pisou fundo deixando a arquibancada mais em polvorosa. 

          A chegada deixou a quase todos tensos e nervosos. Jaime alcançou Lúcio, e este, lançando a cabeça sobre a linha de chegada, parecia ter vencido. Apenas parecia. A arquibancada ficou em silêncio, tensa, com suas respectivas bandeiras coladas entre as mãos e junto às bocas, que diziam: "Tem que dar. Tem que dar" ou "Ai, quem será que venceu?" ou ainda "Ai, meus Deus. O que houve?" A parte neutra da torcida também absorveu a atmosfera eletrizante, mas ignorou a tempestade que havia de cair. "Isso vai passar e vamos tocar a vida", diziam.

          O juiz correu até a linha de chegada e consultou seu subordinado, que mostrou a fotografia eletrônica tirada no exato momento em que os corredores atravessaram seu limite. E ali estava o resultado: Lúcio chegou à frente por um nariz enquanto Jaime estava de cabeça abaixada como quem olhava para seus pés pesados. A posição da cabeça foi determinante para sua derrota.

          Parte da torcida do segundo chiou questionando a posição da câmera, que não parecia estar perfeitamente alinhada à chegada, e reclamando do peso no pés, que atrapalharam seu corredor por todo o trajeto. Alessandro levantou a mão, os policiais na arquibancada viram e a torcida voltou a se acalmar imediatamente.

        Lúcio foi proclamado vencedor. Jaime se recusou a cumprimentá-lo, inclinou a cabeça, resmungou de canto com alguns de sua equipe de treinamento e se afastou na direção no vestiário.

          Não havia sequer tempo para a premiação: a tempestade que se armava estava chegando, e enquanto uma parte do público se retirava às pressas, outra protestava e batia boca com a adversária. Pela imprensa e os celulares da multidão, chegava a notícia de que esta mesma tempestade havia destruído toda a cidade vizinha. "Mas não acontecem tempestades deste tipo na nossa região", disse uma das pessoas que tomava sorvete. "Só vai chover".

          Ao ver como o tempo se armava, Alessandro fixou o olhar nas nuvens de tempestade e sorriu, Lúcio ficou tranquilo, pois bastava esperar um pouco para que a premiação acontecesse, e Jaime se dirigiu para o banho sem saber o que fazer.

          Neste momento, um enorme raio atingiu um grupo de pessoas na arquibancada e um estrondo ensurdecedor fez todos curvarem seus corpos num instinto de proteção. Do sorriso, o rosto de Alessandro passou para o terror, e todos viram o que estava preste a acontecer.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A unidade virá, você queira ou não

          Chegará o dia em que a Igreja será una na sua dimensão histórica e geográfica. Não haverá mais divisões entre cristãos, talvez com exceção de pequenos grupos muito isolados. Haverá unidade plena e total, a desejada unidade de Jesus Cristo para que "todos sejam um". Uma só Igreja em comunhão com um único Deus.

          Para isso, haverá o mundo de se purificar do profundo, doloroso e escandaloso pecado da divisão. Isso significa que é necessário antes o arrependimento para que a unidade seja efetiva, seja no seio do mundo ocidental, seja com os cristãos do oriente. E todo o arrependimento passa pela libertação do erro, portanto, do pecado e suas consequências. Levada à escala secular e global, a unificação da Igreja significará uma libertação espiritual em escala universal. Será uma purificação do mundo numa dimensão talvez nunca antes vista.

          Por isto mesmo vejo que para haver paz no mundo tem de haver necessariamente a unidade cristã. Sem seus demônios expurgados, não haverá unidade e não haverá paz.

          Chegará um tempo em que a Terceira Roma se unirá à Primeira, tanto mais agora com a tão atrasada e angustiante consagração da Rússia realizada e sua consequente conversão prometida. Chegará um tempo em que a Segunda Roma se converterá à Primeira, pois reconhecerá que o profeta Jesus não é "apenas" um profeta, mas Deus mesmo. Creio - e podem discordar de mim - que a aparição de Nossa Senhora justamente no único local de Portugal que carrega um nome muçulmano tenha esse indicativo, que não caberia explanar aqui. Constantinopla será reconquistada não pelas armas, mas pelo espírito.

          Chegará também o dia em que o mundo todo se encontrará em Roma. Os russos serão católicos, os ingleses também, a França voltará a ser a flor da Igreja, toda a Europa do norte não mais se afastará e esfriará sua fé; a vastidão do mundo árabe reconhecerá a Cristo como as nações da África, paulatina e silenciosamente, aos poucos vêm reconhecendo. Não poderia falar dos demais povos, pois quase nada ou nada sei sobre a fé que carregam, mas mais de meio mundo clamando pela conversão do restante parece um apelo irresistível. China católica? Não sei como, mas necessariamente será.

          Enquanto a unidade não chega, bem como a paz também não - aparentemente cada vez mais distante -, o clamor dos peregrinos é pela conversão e unidade do mundo inteiro. 

          Nossa Senhora prometeu que Seu Coração triunfaria. Isso significa necessariamente o triunfo do Sagrado Coração de Jesus, pois ambos corações estão tão profundamente ligados que um não pode avançar sem o outro. Dela virá o triunfo de Cristo, Rei soberano das nações. As nações que hoje não O aceitam acabarão por aceitá-Lo, pois antes do fim, em algum momento, a Palavra de Deus tem de ser plenamente cumprida. Está escrito e assim será.

          Na Terra, uma só Igreja; no Céu, a Eternidade. 

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Até quando?

          Até quando as pessoas vão acreditar nos "jornalistas" da velha "mídia"? Até quando as pessoas vão acreditar em institutos de pesquisa? Até quando as pessoas vão acreditar que a televisão informa imparcialmente e se baseia na ciência? Até quando as pessoas vão acreditar que os termos que circulam na boca da esmagadora maioria dos formadores de opinião não falam de realidade, mas foram fabricados justamente para moldar o comportamento das pessoas? Até quando as pessoas vão parar de acreditar em "nossas" instituições e no chamado "Estado democrático de direito"? Até quando as pessoas vão acreditar que a solução de nossos problemas está na política?  Até quando?

          No último dia 2 tivemos eleições onde um condenado pela justiça pleiteava o maior cargo da república, cuja disputa era organizada e monitorada por uma ditador e criminoso afoito por impor aos seus desafetos e inimigos do sistema o ostracismo do silêncio ou a cadeia. Isso por si só punha por terra a legitimidade do pleito que, desmoralizado desde dentro, não tinha validade alguma fora o fato de se impor como realidade imediata inescapável. 

          As informações em circulação são, em grande parte, moldadas por um consórcio que se diz de comunicação munido por números de um outro consórcio, o dos institutos de pesquisa, cuja margem de erro foi, em massa, pelo menos três vezes o que este grupo previa. A favor do condenado, é claro.

          Muito feliz foi a definição do primeiro grupo ao se chamar de "consórcio", pois talvez seja o melhor termo para definir uma máfia sem chamá-la pelo nome. 

          E não se enganem que a força política contrária ao sistema falso e podre é capaz de salvar a pátria. Não é. Pois seu drama - e do país inteiro - jaz em deitar no berço esplêndido do artificialismo estéril da república, que há cento e trinta anos tenta absorver tudo à dimensão da política e criar a nação à imagem e semelhança de seus erros e falsidades. 

          Há multidões inteiras acreditando que basta um bom executivo para virar a maré das mazelas nacionais. Quem dera bastasse arrumar o corpinho sem antes arrumar a cabeça. Num sujeito que está louco e metido em macumba até a goela, pouco vai adiantar ficar bonitinho e regular o colesterol.

          O problema está na cultura; o problema está no espírito. Porque se muitos acreditam que tudo passa pela política, então a dimensão existencial, alongada infinitamente pelo elevado mistério da vida, é rebaixada e achatada ao manejamento das coisas do mundo. Para essa massa, Cristo é impotente sem o braço do poder de César. Sua fé está depositada no lugar errado, e tudo é esmagado pela horizontalidade da dimensão política.

          Uma boa dose de ceticismo manejada pela prudência é garantia de sanidade mental. Ninguém consegue se manter são e sustentar uma esperança verdadeira apostando suas fichas neste hospício republicano, agora dominado pelos consórcios e o juízes de capa preta, aliados na luta contra uma nação que insistem em querer governar.

          O primeiro passo é colocar a própria cabeça além de seus limites, acima do buraco aberto no teto da cela hospitalar. É no alto que depositamos nossa confiança. O exemplo arrasta, e as pessoas não conseguem acreditar numa mentira para sempre. 

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ratio Studiorum. O pó de ouro dos jesuítas


          Numa época em que as pessoas tanto falam em educação, que governos e organizações traçam grandes planos pedagógicos a nível nacional e que meios de comunicação exortam a todos que contribuam para seu desenvolvimento, passa completamente esquecido aquele que foi, talvez, o maior plano educacional de todos os tempos. Provavelmente não só o maior, mas também o mais bem-sucedido em seus frutos, espalhados pelos quatro cantos do mundo.

          Estou falando da Organização e Plano de Estudos da Companhia de Jesus, conhecido como Ratio Studiorum – resumo de seu nome latino, Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu – organizado e compilado definitivamente em 1599 após uma série de experiências pedagógicas de dezenas de colégios que a Companhia possuía na Europa e no mundo.

          Foram em torno de cinquenta anos entre a fundação do primeiro colégio jesuíta plenamente organizado em Messina, em agosto de 1548, até a Ratio de 1599, tempo que abrangeu não apenas a larga experiência pedagógica acumulada em diversos locais do mundo, como também sintetizou aquilo que era considerado o mais belo e perfeito tanto para a educação quanto para a salvação das almas e a glorificação de Deus.

          Através de comissões designadas por Santo Inácio de Loyola e seus primeiros sucessores e colaboradores, como os padres Jerónimo Nadal, Diogo Ledesma e Cláudio Aquaviva, uma série de estudiosos extremamente sábios, eruditos e piedosos se empenharam em compor um plano pedagógico que incorporou o pensamento clássico de Grécia e Roma, com destaque à filosofia e à retórica, a filosofia medieval, particularmente a escolástica e o método disputatio da Universidade de Paris, e a cultura renascentista alinhando essa magnífica herança com a revelação e a tradição cristã emanadas das Sagradas Escrituras.

          A seleção não era aleatória e baseada unicamente na experiência pois, como afirmado, ela se fundamentava na fé católica e de seus valores derivados. A pedagogia visava o desenvolvimento integral dos alunos, valorizando primeiramente a linguagem e a capacidade de expressão, ao exemplo do estudo dos gramáticos e retóricos da Antiguidade – literatos pagãos não apenas eram utilizados como também muito bem-vindos nos estudos devido à eficácia de seus ensinamentos e o bem que resultava para o crescimento pessoal -, seguido por todo o conhecimento histórico, cultural e mesmo de ciências experimentais. Cumprida essa longa e paulatina trajetória, o aluno possuía pleno domínio da linguagem e estava apto a se empenhar na Filosofia e na Teologia, consideradas as ciências mais elevadas no mundo ocidental.

          A concepção de desenvolvimento integral da pessoa transcendia, e muito, a definição limitada de homem para os pagãos ou de cidadão para a sociedade moderna, pois sua visão se baseava no homem como filho de Deus, cuja origem e destino são a eternidade. Isso implicava que o conhecimento e a reta educação fossem meios de contemplação da Criação divina e uso dos dons por Ele inculcados em cada um de nós. Como lembra o Pe. Leonel Franca, citando o Papa Pio XI, a pedagogia cristã visa o “homem sobrenatural que pensa, julga e opera constante e coerentemente, segundo a reta razão iluminada pela luz sobrenatural dos exemplos e da doutrina de Cristo; ou, por outras palavras, é o verdadeiro e o perfeito homem de caráter”.

          A impressionante disseminação das escolas jesuítas pela Europa e o mundo mostra não apenas o empenho, mas a validade e a eficiência do que se propunha. Quando promulgada a Ratio Studiorum em 1599, a Companhia de Jesus possuía 245 colégios; em 1773, ano que a Igreja Católica suprimiu a Ordem por pressão política, eram 865 estabelecimentos de ensino em todo o mundo, a maioria colégios, com milhares de alunos e uma tradição educacional consolidada e reconhecida, inclusive pelos críticos dos jesuítas e da Igreja.

          Talvez alguns dissessem que a pedagogia jesuíta fora por demais “humanista” ou “contaminada” pela mentalidade moderna com a chegada dos século XIX, XX e XXI particularmente pela ascensão da ciência moderna e a ingerência dos Estados-nacionais em seus currículos. Santo Inácio já previa que os colégios da Companhia deveriam se adaptar às regionalidades e necessidades, práticas e legais, onde atuassem. Apesar dos percalços e mesmo perseguições, a simples existência de um legado histórico e cultural, principalmente em regiões em que a cristianização e a educação jesuítas foram determinantes na formação e coesão de sociedades inteiras, como no Brasil, mostra que esse empreendimento não é apenas valoroso como concretamente verdadeiro. Em algum grau, os jesuítas alcançaram o ideal almejado. 

          Se hoje notamos a destruição do que há de mais elevado, certamente uma das razões foi o esquecimento, por parte da esmagadora maioria dos educadores e professores, desse pó de ouro depositado no fundo do baú que é a Ratio Studiorum. O que foi válido no passado também o é para o presente e o futuro, pois o fundamento sobre o qual se fincou esse grande empreendimento pedagógico da Companhia é eterno. Suas propostas visavam o homem sobrenatural, que não muda com a mudança dos tempos.

 

Fonte:

FRANCA, Leonel S. J. O Método Pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum. Edições Hugo de São Vítor. Porto Alegre, 2019.   


As origens pouco glamorosas do Leste de Londres

 

(Leytonstone Road em Stratford, Leste de Londres. Agosto de 2022.)


(Trecho inicial do capítulo The stinkin pile do livro London. The Concise Biography
de Peter Ackroyd.) 

          Tem sido frequentemente sugerido que o East End é uma criação do século XIX; certamente a frase em si não foi inventada até a década de 1880. Mas na verdade o East End sempre existiu como uma entidade distinta e separada. A área de Tower Hamlets, Limehouse e Bow se localiza numa faixa separada de cascalho, a dos cascalhos de Flood Plain que foi criada durante a última erupção glacial em torno de 15.000 anos atrás. Se essa longevidade desempenhou algum papel na criação da atmosfera única do East End talvez esteja em aberto, mas a importância simbólica do leste versus oeste não deve ser ignorada em qualquer análise do que se tornou conhecido no final do século XIX como "o abismo".

          Há uma característica interessante e significativa da zona leste que sugere uma tradição viva que remonta ao tempo dos romanos. No final do século XIX e início do XX foi encontrado evidência de uma grande "muralha" que corre ao longo da porção oriental do Tâmisa, descendo a margem do rio e ao longo das margens do Essex, para proteger as terras das depredações dos rios de maré; era constituído de bancos de madeira e terraplanagem. No fim do muro em Essex, próximo à área conhecida hoje como Bradwell Waterside - que pode plausivelmente ser traduzido, mesmo após dois mil anos de mudanças, como Broad Wall - foram descobertas terraplanagens de uma fortaleza romana bem como as ruínas de uma capela posterior, St. Peter-on-the-Wall, que se tornou um celeiro. Outros antiquários locais também encontraram pequenas igrejas ou capelas ao lado do que poderia ser chamada esta grande muralha oriental. Mantendo a água na baía e ajudando a drenar o pântano das áreas ao leste, se criou o East End ou o lado negro de Londres. Toda cidade deve ter um. 

          E onde começa o "East"? De acordo com certas autoridades urbanas o ponto de transição é marcado pelo Aldgate Pump, uma fonte de pedra construída ao lado do poço na confluência da Fenchurch Street com a Leadenhall Street; a bomba existente se localiza a poucos metros a oeste da original. Outros antiquários argumentam que o verdadeiro East End começa no ponto onde a Whitechapel Road e a Commercial Road se encontram. A mancha de pobreza, já aparente no fim do período medieval, de qualquer forma se estendeu gradualmente. Stow (1) observou que entre 1550 e 1590 havia "uma rua ou passagem estreita imunda contínua com becos de pequenos cortiços ou cabanas construídos... quase até Ratcliffe." Um relato de 1665 descrevia a superlotação criada por "pobres indigentes e pessoas ociosas e relaxadas". Portanto, as "cabanas imundas" do relato de Stow estavam cheias de pessoas "imundas". É a história de Londres.

          As indústrias do bairro leste gradualmente se tornaram imundas também. Muito de seu tráfico e comércio vinha do rio, mas no curso do século XVII a região se tornou cada vez mais industrializada. O "Easterly Pyle" (2) se tornou lar do que ficou conhecido como "as indústrias de fedor"; representava o foco do medo de Londres à corrupção e à doença. Portanto, o voo para o oeste continuou. A partir do século XVII o traçado das ruas e praças se moveu inexoravelmente naquela direção; os ricos, os bem-nascidos e os elegantes insistiram em morar no que Nash (2) chamou "as respeitáveis ruas do extremo oeste da cidade". 

          Tem sido observado que o West End tem o dinheiro e o East End tem a sujeira; há lazer para o Oeste e trabalho no Leste (3). Ainda nas primeiras décadas do século XIX, o East End não era apontado como sendo a mais terrível fonte de pobreza e violência. Era conhecido principalmente como o centro da navegação e da indústria e, portanto, lar dos trabalhadores pobres. Mas a indústria e a pobreza se intensificaram constantemente; tinturarias e químicas, fábricas de adubo e fábricas de fumo negro, fabricantes de cola e de parafina, produtores de tinta e farinha de osso, todos agrupados em Bow, Old Ford e Stratford. O Rio Lea foi por séculos o local da indústria e do transporte, mas ao longo do século XIX foi ainda mais explorado e degradado. Uma fábrica de fósforos na sua margem dava à água um gosto e aparência de urina, enquanto que o cheiro em toda a área se tornava desagradável. Toda a sujeira de Londres rastejou para o leste.  

     Mas então, em algum ponto da década de 1880, alcançou o que poderia ser chamado de massa crítica. Ele implodiu. O East End se tornou "o abismo" ou "o mundo inferior" de estranhos segredos e desejos. Era a área de Londres na qual se amontoavam mais pessoas pobres do que qualquer outra, e dessa congregação de pobreza surgiram relatos de maldade e imoralidade, selvageria e vício inominável.

(Atual marco da Aldgate Pump. Fenchurch St ao fundo e Leadenhall St no primeiro plano. Setembro de 2022. )

(1) John Stow (1525-1605), historiador e antiquário de Londres. 

(2) Um dos nomes dado ao East End. "Pyle" faz referência a um amontoado em grande quantidade.

(3) O autor utiliza os nomes "West" e "East" como trocadilhos dos pontos cardeais.



 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Bispo ortodoxo e sua diocese na Ucrânia se unem à Igreja Católica

          Segue abaixo a tradução livre de uma reportagem da mídia digital católica The Pillar que conta como foi o processo de conversão de um bispo ortodoxo da Ucrânia à Igreja Católica e sua diocese, e também as causas dessa mudança.

          Boa leitura!


Na Ucrânia, um bispo entra na Igreja

Como um bispo ortodoxo ucraniano levou sua diocese à comunhão com Roma

(por Anatolii Babynskyi, 6 de setembro de 2022)

(Ihor Isichenko, ao centro.)

          O arcebispo Ihor Isichenlko é um bispo incomum. Ele é um intelectual formidável e um estudioso literário sério. Tem sido um líder entre os fiéis ortodoxos ucranianos por mais de duas décadas. E sete anos atrás, iniciou um caminho que levou sua diocese ortodoxa à plena comunhão com a Igreja Católica, mesmo em meio a cismas e fraturas entre os fiéis ortodoxos ucranianos e durante uma guerra que mudou dramaticamente a vida em seu país. 

          O arcebispo Isichenko entrou em plena comunhão com a Igreja Greco-Católica Ucraniana no início desse ano; as paróquias da diocese que ele liderou são agora parte do Exarcado Católico Ucraniano de Kharkiv e da Arqueparquia de Kiev. Com o status de um arcebispo emérito, Isichenko liderará agora uma filial da Universidade Católica Ucraniana.

          A notável história do arcebispo começou décadas atrás, quando a Ucrânia declarou sua independência, a União Soviética caiu e o Patriarcado de Moscou perdeu seu monopólio sobre a religião no país. 

          Em 1989, a Igreja Grego-Católica Ucraniana, que havia sido destituída de seu stratus legal em 1946, foi legalmente autorizada a existir novamente na Ucrânia. A maior das 23 Igrejas Católicas Orientais em plena comunhão com Roma saiu da clandestinidade.

          Ao mesmo tempo, alguns fiéis ortodoxos ucranianos começaram a pressionar por um tipo de autocefalia - por uma Igreja Ortodoxa separada de jurisdição e supervisão do patriarca ortodoxo russo em Moscou.

          O movimento não foi homogêneo. Ao invés disso, duas estruturas surgiram no início dos anos 1990 reivindicando jurisdição autocéfala no país: a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana (IOAU) e a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev (IOU-PK).

          Ambas as estruturas possuíam problemas internos. Mas em meados dos anos 1990, a IOU-PK ficou sob liderança do Patriarca Filaret, que durante a era soviética serviu como exarca da Igreja Russa na Ucrânia e foi um dos principais candidatos ao trono do Patriarca de Moscou em 1990.

          Com Filaret no comando, a IOC-PK conseguiu estabilizar sua estrutura. Com o tempo, a instituição começou a reivindicar o papel de igreja "estatal" ucraniana.

          A IOAU foi menos bem-sucedida na Ucrânia. Em vez disso, concentrou-se nas igrejas ortodoxas ucranianas na diáspora, nos EUA e no Canadá, que com o tempo se retiraram dos assuntos ucranianos. Muitas paróquias se afastaram gradualmente da IOAU e entram na jurisdição de Constantinopla.

          Dentro de uma década, a IOAU começou a se fragmentar. Desde o início dos anos 2000, ela existe como uma coleção de dioceses quase independentes unidas apenas por um nome comum.

          Em 2018, a recém criada Igreja Ortodoxa da Ucrânia absorveu a maioria das igrejas, clérigos e recursos da IOU-PK e da IOAU. Como a maior estrutura que reivindica jurisdição ortodoxa autocéfala na Ucrânia, ela recebeu um reconhecimento de autocefalia do Patriarcado de Constantinopla em 2019.

          Mas nem todos seguiram esse caminho.

          A diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU, que cobria o nordeste da Ucrânia, estava se movendo numa direção bem diferente.

          A diocese se tornou um importante centro para o movimento autocéfalo logo depois de sua fundação em 1992. Sua catedral, São Demétrio, em Kharkiv, se tornou ao longo dos anos um centro cultural e educacional que forneceu treinamento teológico para os futuros padres da IOAU.

          E sete anos atrás, o arcebispo Isichenko e a diocese Kharkiv-Poltava da IOAU decidiram que as divisões entre as facções ortodoxas ucranianas haviam se tornado muito profundas, e a unidade entre as Igrejas Ortodoxas da Ucrânia era improvável.

          A diocese decidiu tornar-se católica - unir-se à Igreja Greco-Católica Ucraniana (IGCU).

          Em primeiro de abril de 2015, uma assembleia eparquial declarou que estava "convencida da impossibilidade de unificação canônica com as igrejas ortodoxas ucranianas na diáspora, rejeita[va] formas não canônicas de unificação de igrejas e acredita[va] na perspectiva de uma comunhão da Igreja Ucraniana com as igrejas da antiga e da nova Roma."

          Numa requisição formal, a diocese pediu ao sínodo dos bispos da Igreja Greco-Católica Ucraniana "por conselho fraternal para alcançar a comunhão eucarística e a unidade administrativa da diocese de Kharkiv-Poltava da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia com a Igreja Grego-Católica Ucraniana."

          O processo para alcançar a unidade não foi fácil; levou quase sete anos. E de acordo com o arcebispo Isichenko, que liderava a diocese desde 1993, nem todos nela aderiram ao plano de unir sua diocese local para a Igreja Católica - em vez disso, algumas paróquias se juntaram a outras comunhões ortodoxas. 

"Devo dizer que a maioria dos padres se assustou. Por várias razões: seja pelo medo de perder o apoio do rebanho, devido à falta de compreensão dos fiéis de tal passo, porque estavam sobrecarregados de vários tipos de mitos anticatólicos, ou devido ao conservadorismo humano comum, de medo algo novo," disse ao The Pillar.

          Mas "as congregações mais maduras apoiaram a ideia, e agora se juntaram ao exarcado de Kharkiv e a arquidiocese de Kiev da IGCU."

          Embora as paróquias tenham sido totalmente incorporadas à estrutura da Igreja Católica ucraniana nos últimos dois anos, o status do arcebispo não era claro até esta primavera, após o início da invasão em larga escala da Rússia na Ucrânia.

          "Eu me aposentei e agora sou arcebispo-emérito com a manutenção de minha autoridade como chefe do Collegium do Patriarca Mstyslav, que este ano adquire o stratus de um projeto da Universidade Católica em Kharkiv," explicou o arcebispo.

          Desde seus primeiros dias, o arcebispo Isichenko era um figura um tanto atípica na ortodoxia ucraniana. Na época de sua tonsura monástica e ordenação como sacerdote, era professor de história literária na Universidade Estatal de Kharkiv.

          Ele liderou uma diocese por 27 anos sem parar suas atividades acadêmicas e docentes. É o autor de tratados acadêmicos sobre a história da literatura medieval e barroca ucraniana, literatura ascética, e a polêmica ortodoxa-católica dos séculos XVI-XVII. Na verdade, ele é um dos maiores especialistas do mundo no seu campo.

          Mas para explicar a decisão que sua eparquia tomou - a decisão de se tornar católica - o arcebispo olhou para a história mais recente.

          Ele disse que a sabedoria de seus planos não pode ser compreendida sem entender a experiência dos ucranianos ortodoxos durante o século XX e o colapso da União Soviética.

          "A restauração da independência da Ucrânia também possibilitou a restauração da IOAU, cujas estruturas na época sobreviveram apenas na diáspora. Mas as igrejas nos EUA e no Canadá estavam bastante esgotadas e não poderiam prover assistência efetiva à igreja reavivada em sua terra natal. Por outro lado, a comunidade ortodoxa autocéfala ucraniana precisava reconstruir a identidade da ortodoxia de Kiev como era antes de sua subordinação a Moscou no século XVII. A tarefa não era reviver, mas reconstruir," disse o arcebispo.

          "Ainda assim, as fraquezas nessa tarefa foram imediatamente evidentes: uma base espiritual fraca, uma falta de durabilidade da tradição monástica, etc. A IOAU nunca foi capaz de criar um único monastério ou uma única escola acadêmica séria. E havia vários cismas infames que a igreja sofreu e, o mais importante, esforços constantes dos funcionários do Estado e de algumas forças da igreja para formar uma igreja "estatal". Tudo isso levou à decepção na perspectiva desse caminho."

          O arcebispo Isichenko afirmou que se tornou evidente com o tempo que uma tendência permaneceu constante na Igreja Ortodoxa desde os tempos bizantinos, a saber, a inclinação à governamentalização da Igreja e uma maior cooperação entre a Igreja e o Estado.

          "Servi como bispo governante na IOAU de 1993 a 2020, quando renunciei. Me convenci de que a ideia da Ortodoxia como uma alternativa ao catolicismo leva à formação de Russkiy mirs - mundos russos em miniatura, ou no sentido pleno da palavra.

          "Seja na Sérvia ou na Rússia... Infelizmente, essa tendência também existe na Ucrânia. Tal particularismo suspende a natureza universal da Igreja, sua catolicidade."

          O arcebispo disse que sua diocese começou a considerar a perspectiva de unidade com a Igreja Católica quando a agressão russa contra a Ucrânia começou em 2014; afirmou que assistiu ao uso da Igreja Ortodoxa Russa para promover o imperialismo russo.

          "O que está sendo feito com a ortodoxia de Moscou é o grande drama do mundo inteiro. A ideologia da 'Russkyi mir' mostra a todas as igrejas ortodoxas o perigo de inverter o sistema de prioridades - a perda de prioridade dos valores cristãos sobre as prioridades nacionais, estatais, políticas ou partidárias," disse ao The Pillar.

          Os padres da antiga diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU, que entraram na Igreja Católica Ucraniana com suas congregação este ano, disseram ao The Pillar que se sentiam seguros de suas escolhas devido à sua confiança no arcebispo Isichenko. 

          Padre Ihor Lytvyn, que comandou uma paróquia da IOAU em Polatava, explicou que mesmo antes de 2015 as relações entre a IGCU e sua diocese eram amigáveis. Os greco-católicos frequentemente ensinavam no Collegium do Patriarca Mstylav, onde ele recebeu sua educação teológica.

          E em sua paróquias, os paroquianos sentiam uma afinidade em relação aos católicos ucranianos, afirmou.

          "Não foi surpresa para os meus paroquianos. Então, quando nossa diocese estava em crise, eles se solidarizaram com o caminho escolhido pelo arcebispo. A maioria votou pela transição, embora alguns tenham se afastado da paróquia. Pessoalmente, sempre estive convencido de que se você não é ortodoxo, é um herege, e se você não é católico, é um cismático. Portanto, para mim, nunca houve oposição entre os conceitos 'ortodoxo' e 'católico'," disse o padre Lytvyn.

          O padre Oleh Bondaruk, que agora serve na arquidiocese de Kiev da IGCU, foi ordenado sacerdote em 2016, quando a diocese de Kharkiv-Poltava já havia começado seu diálogo de reunião com a IGCU. Em 2018, sua paróquia optou por se transferir para a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, mas Bondurak decidiu se tornar católico. 

          Padre Bondaruk disse ao The Pillar que seu caminho foi um pouco diferente do de outros clérigos da diocese, o que tornou mais fácil para ele se tornar um padre católico.

          "A maioria dos padres que não se juntaram à IGCU foram ordenados anos atrás. E penso que a fronteira mais difícil para uma pessoa cruzar na vida é a fronteira interconfessional. Fui ordenado na época em que a diocese de Kharkiv-Poltava já havia começado seu movimento para se unir à IGCU. Foi minha escolha consciente."

          "Por outro lado, embora tenha sido batizado na Igreja Ortodoxa, cresci num ambiente católico romano na região de Khmelnytskyi, e tenho muitos poloneses na minha família. Desde a oitava série, frequentei uma igreja católica romana. Até fui para um seminário católico romano por um ano. Mas depois me mudei para Bovarka, próximo de Kiev, e me afastei um pouco da igreja. Um dia me pediram para dar uma carona para o arcebispo Ihor para Kaniv, e nosso contato deixou uma grande impressão em mim. Assim, me tornei um padre ortodoxo."

          O padre Viacheslav Trush de Lozova, na região de Kharkiv, disse ao The Pillar que, diante de uma questão tão difícil, ele e sua congregação buscaram acima de tudo discernir a vontade de Deus sobre qual caminho deveriam seguir.

          "Um fator importante que influenciou minha decisão foi também estudar e compreender a experiência da Igreja Católica, me familiarizar com sua doutrina, dogma e história, tanto globalmente quanto na Ucrânia. Portanto, nossa decisão se baseou não apenas na confiança em nosso bispo, mas também no aprofundamento de nosso conhecimento da Igreja Católica," explicou.

          Na paróquia, discutimos muitas questões e estudando a história da Igreja. Tudo isso deu frutos. Temos uma atmosfera bastante familiar em nossa comunidade, com o padre e os fiéis discutindo tudo entre si, então não há segredos. Assim, quando anunciei a decisão do conselho diocesano, os fiéis a enfrentaram com confiança em mim e no arcebispo Ihor."

          Ksenia Pidopryhora, da Igreja São Demétrio em Kharkiv, foi forçada e deixar a cidade em março de 2022 devido à guerra e agora vive em Lviv.

          Ela disse ao The Pillar que sonhava em retornar à sua cidade natal e sua paróquia, à qual pertence desde os seis anos de idade. Pidopryhora afirmou que ela começou com perguntas sobre a nova unidade da paróquia com Roma, mas disse que agora estava favoravelmente inclinada à mudança.

          "Em primeiro lugar, foi a familiarização pessoal com o clero e os paroquianos da IGCU em Kharkiv, bem como a observação de figuras bem conhecidas que representam a IGCU no mundo, como o ex-líder da IGCU Lumobyr Husar, de abençoada memória, ou o extraordinário intelectual bispo Borys Gudziak. Suas palavras e ações correspondiam à minha ideia do que deveria ser a vida de um cristão num mundo moderno, vida na unidade. Consequentemente, o desejo de fazer parte dessa unidade era natural."   

          "Além disso, a própria IGCU como instituição tinha - e tem - uma reputação excepcionalmente positiva pela consistência e unidade, em contraste com a comunidade da Igreja Ortodoxa na Ucrânia, cujas divisões e brigas experimentamos como paróquia. Também, a transparência em responder quaisquer questões do clero de nossa diocese e a própria possibilidade de ver, conversar e fazer perguntas durante o processo contribuíram para uma conscientização da conveniência e lógica dessa 'transição'," disse Pidopryhora.

          Apesar de sua tradição litúrgica bizantina comum, existem algumas diferenças litúrgicas entre a Igreja Greco-Católica Ucraniana e a ortodoxia ucraniana. Pidopryhora disse estar grata que as paróquias da antiga diocese de Kharkiv-Poltava mantiveram alguns costumes específicos de culto, mesmo quando se tornaram católicos.

          "Felizmente, a ausência de mudanças na ordem do culto e o direito de observar o calendário da Igreja como era antes da 'transição' ajudaram os paroquianos de nossa Igreja a se integrarem suavemente na vida paroquial como membros plenos da IGCU," explicou ela.

          O bispo Vasyl Tuchapets, exarca de Kharkiv da IGCU, disse ao The Pillar que as diferenças litúrgicas entre as paróquias da IGCU e as antigas comunidades da diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU não eram fundamentais, mas diziam respeito a nuances rituais.

          Mas em todos os outros aspectos, as comunidades estão plenamente integradas na vida do exarcado. Seus pastores participam em retiros e encontros conjuntas, cursos de formação do exarcado e outros projetos da Igreja.

          De sua vez, o padre Trush disse que a "integração" tem sido uma experiência positiva para ele e sua paróquia.

          Sua vida paroquial antes parecia isolada - cercada pelas divisões e políticas das Igrejas Ortodoxas na Ucrânia. Mas agora, disse, as coisas haviam mudado.

          "Agora sentimos que pertencemos a uma comunidade global - a Igreja Greco-Católica e a Igreja Católica espalhadas pelo mundo, há um sentimento de apoio. Para mim pessoalmente, como um sacerdote, isso é muito importante," concluiu o padre.


* tradução livre



segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Londres. O nascimento da Babilônia imperial


(Edifícios neoclássicos da Era Vitoriana na Regent Street. Agosto de 2022.)

(Trecho inicial do capítulo How many miles do Babylon? do livro London. The Concise Biography, de Peter Ackroyd.)

          Em torno da metade da década de 1840, Londres tinha se tornado conhecida como a maior cidade da Terra, a capital do império, o centro internacional de comércio e finanças, um vasto mercado mundial dentro do qual o mundo se derramava. Em fotografias e desenhos contemporâneos as imagens mais marcantes são as do trabalho e sofrimento. Mulheres sentadas e curvadas com seus braços cruzados; uma família de mendigos dorme sobre bancos de pedra debaixo de uma ponte com o contorno escuro da Catedral de São Paulo aparecendo detrás deles. Como Blanchard Jerrold (1) colocou: "Os velhos, os órfãos, os coxos e os cegos de Londres encheriam uma cidade comum." Essa é uma concepção estranha, uma cidade inteiramente composta por mutilados e feridos. Mas isso é, em parte, o que Londres era. Também o número de crianças e vagabundos sentados resignadamente na rua é infinito; infinitos são também os vendedores de rua, geralmente retratados contra um fundo maçante de tijolo ou pedra.

          Os interiores pobres da cidade vitoriana geralmente são crepusculares e imundos com trapos pendurados entre lâmpadas de sebo fétidas; muitos dos habitantes parecem não ter rostos, uma vez que estão voltados para a sombra, e em torno deles vigas de madeira dilapidadas e escadarias numa confusão maluca. Muitos, ao ar livre e dentro de casa, parecem encurvados e pequenos como se o próprio peso da cidade os tivesse esmagado. Há ainda um outro aspecto da cidade vitoriana que as fotografias e imagens evocam: de vastas inumeráveis multidões, as ruas cheias de vida fervilhante e combatente, a grande inspiração para o trabalho de mitógrafos do século XIX como Marx e Darwin. Há também lampejos de sentimentos - piedade, raiva e ternura - a serem observados ao passar dos rostos. E ao redor deles pode ser imaginado um ruído forte e permanente como um grito interminável. Essa é a Londres vitoriana.  

          "Londres vitoriana" é, obviamente, um termo genérico para uma sequência de mudanças de padrão de vida urbana. Nas primeiras décadas do século XIX, por exemplo, ainda se mantiveram muitas das características dos últimos anos do século anterior. Ainda era uma cidade compactada. Ainda era apenas parcialmente iluminada por gás, e a maioria das ruas eram clareadas por poucas lamparinas de óleo com garotos de tocha carregando luzes para escoltar os últimos pedestres para casa; havia mais "Charleys" (2) do que policiais fazendo suas rondas. Ainda era perigoso. Havia plantações de morango em Hammersmith e em Hackney, e as carroças ainda percorriam seu caminho em meio a outro tráfego puxado a cavalo para o Haymarket. Os grandes edifícios públicos, com os quais a base do império logo seria decorada, ainda não tinham surgidos. Os entretenimentos típico também eram aqueles do final do século XVIII com as brigas de cães, as rinhas de galo, o pelourinho e as execuções públicas. Todas as ruas e casas possuíam janelas rebocadas e pintadas como se fossem parte de uma pantomima. Havia ainda mascates ambulantes vendendo literatura popular barata, e cantores de bailes com a última novidade; havia teatros baratos e gráficas exibindo em suas janelas caricaturas que poderiam sempre segurar uma multidão; havia jardins de delícias e cavernas de harmonia (3), salões de bebidas e salões informais e de dança. Era uma cidade excêntrica. Ainda não havia sido padronizada ou submetida às agências vitorianas de uniformidade e propriedade.

          É impossível calcular quando essa transformação ocorreu. Certamente Londres tomou um outro aspecto quando continuou a crescer e se estender por Islington e St. John's Wood no norte; então por Peddington, Bayswater, South Kesington, Lambeth, Clerckenwell, Peckham e todos os pontos da bússola. Se tornou a maior cidade do mundo justamente no momento em que a própria Inglaterra se tornou a primeira sociedade urbanizada do mundo.

          Ela se tornou a cidade do relógio e da velocidade por si só. Se tornou o lar dos motores e da indústria movida a vapor; se tornou a cidade onde as forças eletromagnéticas foram descobertas e divulgadas. Também se tornou o centro da produção em massa, com as forças impessoais de oferta e demanda, lucros e perdas, intervindo entre fornecedor e cliente. No mesmo período negócios e governos eram supervisionados por um vasto exército de funcionários e escriturários que costumavam usar trajes escuros uniformes.

          Era a cidade do nevoeiro e da escuridão mas, também em outro sentido, estava cheia de escuridão. Uma população de um milhão no início do século cresceu para aproximadamente cinco milhões no seu fim. Em 1911, havia crescido para sete milhões. Tudo estava se tornando mais sombrio. Os trajes do homem londrino, como aqueles dos funcionários, mudou de cores variadas e brilhantes para o preto solene da sobrecasaca e da cartola. Se foi, também, a particular graciosidade e cores da cidade do início do século XIX; a simetria decorosa de sua arquitetura georgiana foi substituída pela forma neogótica ou neoclássica imperialista dos edifícios públicos vitorianos. Eles incorporavam o domínio do tempo bem como do espaço. Também nesse contexto emergiu uma Londres que era mais massiva, mais cautelosamente controlada e mais cuidadosamente organizada. A metrópole era muito maior, mas também se tornou mais anônima; era uma cidade mais pública e esplêndida, mas também menos humana. 

          Desse modo, se tornou o clímax, ou a epítome, de todas as cidades imperialistas anteriores. Se tornou Babilônia.


(1) Autor e jornalista inglês. Viveu entre 1826 e 1884.

(2) O termo "Charley" é, possivelmente, uma referência a pessoas solitárias.

(3) Locais públicos, como bares, onde intelectuais londrinos se reuniam.



  

terça-feira, 24 de maio de 2022

Uma vida não vivida

          Você está aí, no alto de um grande edifício. A brisa bate no rosto, o sol esquenta sua pele, nuvens algodoadas transitam lentamente pelo céu. Vez ou outra alguns pássaros atravessam o alto e soltam cantos e burburinhos em línguas não compreensíveis. A cidade se estende a grande distância e depois há uma floresta a perder de vista. Abaixo, carros, ônibus, pessoas em movimento. Tudo aberto e funcionando: crianças indo à escola, consumidores entrando e saindo das lojas, moradores abrindo e fechando as janelas, ora para ventilar os cômodos, ora para barrar a luz direta do sol. Mas você está aí, em pé sem dar um passo adiante num mundo cuja única regra é não parar.

          Esta é a melhor forma de não viver: deixar de escolher, desistir dos objetivos, não cumprir com as necessidades e não se comprometer com as circunstâncias que lhe são apresentadas. A pessoa que não vive não decide e, por isso mesmo, não arrisca. Diria melhor: decide não arriscar pois, seja por comodismo ou trauma de um maldito evento passado, acredita ser melhor deixar o mundo andar por si mesmo. Mas não é.

          Porque o mundo que anda assim o faz porque decide. É claro que as nuvens e mesmo os animais não decidem por si, vivem plenamente a condição de seu ser conforme lhes imputa sua natureza, mas há uma razão para as nuvens virem de leste e não de oeste e os pássaros voarem em bando e não sozinhos. Assim como há razão para sua inércia, nascida da apatia da vontade, da não decisão, ou melhor, da decisão de não viver. Só nós podemos escolher, atitude essencialmente humana e necessariamente moral: somos livres para trilhar o caminho do Bem e do Mal. Somos responsáveis pelo bem e o mal que fazemos, a começar a nós mesmos. 

          O caminho se abre a cada momento, a cada instante, e é definitivamente mau não decidir. Sabe aquela garota que você sonhava que um dia estaria contigo? Você não teve coragem e não fez nada ou não disse nada. Sequer tentou e agora está aí unicamente submerso em seus sonhos e desejos. Onde estão os seus amigos que há anos você não vê? Acreditou que a eles caberia a atitude de chamar para um encontro ou puxar uma conversa. Toda a atitude exigida dos outros é primeiro nossa, sempre. Você acha seu trabalho um porre e nem de longe imagina fazer o que mais lhe dá prazer? Abdicou de sua óbvia vocação profissional e preferiu seguir uma carreira mais segura. Ou ainda pior: deixou o trabalho de lado para apenas "fazer o que gosta". Nunca, jamais pare de trabalhar. Não há sonho sem sustentação material mínima, e não há sonho mais estúpido do que acreditar num trabalho de prazer constante ou viver unicamente de amor como se o sustento brotasse de bons sentimentos.

          Não viver é uma decisão cujas implicações não são apenas materiais, mas morais, pois aqueles à sua volta vivem o fardo de seus erros, isso quando não têm de sustentar materialmente este erro. Viver começa por decidir, e a primeira luta está na contemplação do fardo, de sua própria cruz, de que ela nunca é tão pesada que não se possa carregar.

          Um mundo que se move é um mundo vivo. No arrasto do tempo, até os cemitérios estão em movimento.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A loucura do ciclone

(Imagem de satélite da Tempestade Subtropical Yakecan na tarde de 17 de maio.)

          Na chuvosa e ventosa tarde de quarta-feira passada dirigi da orla do Guaíba, em Porto Alegre, até minha casa, distante dez quilômetros do local. Meu temor não se confirmara: trânsito livre durante todo o trajeto, poucos carros se comparado à hora do rush. Deveria ficar parado por alguns momentos, disputar espaço com alguns carros e ter um pouco de paciência. Nada disso. Dirigi tranquilo como se estivesse numa manhã de domingo.

          Passei pela rua de um grande colégio particular. Ninguém na calçada, os alunos foram dispensados porque o incomum ciclone subtropical ameaçava a segurança da gurizada. Até aí sabia do fechamento de algumas escolas e universidades, obviamente um exagero, mas ainda assim parecia ser algo pontual. Até dobrar uma esquina e ver uma academia sempre lotada às escuras. Onde estava o pessoal? Como vim chegar tão rápido em casa justamente na hora mais movimentada do dia e sob chuva?

          Só então percebi que boa parte de Porto Alegre estava paralisada pelo alerta do Ciclone Subtropical Yakecan, nome indígena utilizado para batizar o fenômeno e que significa "som do céu" na língua tupi-guarani. O ciclone, considerado tempestade devido às rajadas de vento acima dos 62 km/h, limite mínimo para essa classificação, paralisou não só parte de minha cidade com mais de trinta no Rio Grande do Sul. Escolas, universidades, parte de comércio e serviços fechados, trânsito à míngua, quase ninguém nas ruas.

          Já vi ventanias muito piores do que a do referido ciclone, um fenômeno raro devido à sua trajetória, dado que os últimos ciclones subtropicais que acompanhei em vários anos passados nunca chegaram em terra com seu centro. Ventos muito fortes, um pouco menos do que o previsto com rajadas que poderiam chegar à força de um furacão. 

          A diferença, porém, é que as chamadas "rajadas de furacão" (de 120 km/h para mais) não são ventos como de um furacão, que se caracterizam pela velocidade sustentada, ou seja, contínua de 120 km/h ou mais. Curiosamente Porto Alegre parou parcialmente por ventos que já vira muitas outras vezes, como ciclones extratropicais que causaram ventanias piores do que nosso querido Yakecan.

          Se formos levar em consideração o alerta não havia razão para paralização. O histórico não evidenciava risco de vida, fora fatalidades que pudessem ocorrer pela navegação em alto-mar ou em alguma circunstâncias fatal pela grande população de uma metrópole. Dezenas de outros ciclones e temporais, seja de verão ou por frentes muito ativas, não levaram a qualquer fatalidade, e não havia cabimento a paralisia pela tempestade que se avizinhava.

          Fiquei impressionado - e incomodado - pela reação exagerada e patológica ao ciclone. Se a cada alerta meteorológico tivermos de tomar medidas draconianas do tipo como poderemos planejar coisas de médio prazo como planos de aula para um trimestre, viagens e obras? Como organizar uma agenda de negócios e atendimentos para uma semana? Se o ciclone exige, pelo suposto risco à segurança, paralisar todas as atividades, por que não fazer o mesmo num alerta de chuva muito forte e volumosa devido a um outro sistema meteorológico que venha despejar baldes de água sobre a cidade ou áreas montanhosas com risco de deslizamentos? E num ciclone extratropical subindo ao longo do litoral, coisa muito comum no período do outono à primavera na costa sudeste da América do Sul, não deveríamos nós ficarmos forçosamente em casa num dia de muito vento seguindo à risca alertas meteorológicos baseado em previsões - sim, previsões, não profecias místicas - ignorando toda a variabilidade da própria margem de erro da previsão e da complexidade e espontaneidade da vida cotidiana?

          Sim, o Ciclone Yakecan foi incomum por ser subtropical e raro pelo trajetória e força, mas o precedente aberto pela paralisia deu margens para outras loucuras do tipo. Os dois grandes elementos dessa loucura foram, primeiro, o medo invisível que se mantém difuso pelos ares desde o auge da pandemia e, segundo, a má comunicação - e mesmo o conveniente exagero para angariar publicidade na internet - ao considerar a tempestade uma ameaça mortal como um furacão, ao qual o ciclone foi comparado.

          Dessa vez o inimigo não era invisível como um vírus, mas também não era identificável diretamente, pois ninguém pode ver um ciclone em todo o sem conjunto. Dependendo do suporte informativo de terceiros, as pessoas ficaram à mercê de alguns porta-vozes que não sabiam muito bem como se dirigir a elas para falar de algo novo, outros fizeram um desnecessário sensacionalismo para chamar a atenção e ganhar notoriedade, outros ainda afirmaram, sem saber, que o Yakecan poderia virar um furacão e repetir a tragédia do Catarina em 2004. 

          O que fazer, então, com uma ameaça que não podemos ver e que a qualquer momento pode ameaçar a sua vida? O único remédio evidente era evitá-lo, não tocá-lo, tomar distância e ficar em casa. Tudo já condicionado pelos últimos dois anos de loucura. As pessoas ficaram com medo, o comércio fechou e a debandada foi geral. 

          Mas a novidade foi que a paralisia veio não por imposição, mas por alertas e recomendações de órgãos públicos e privados, como a Defesa Civil Nacional e alguns institutos de meteorologia. Com medo, muitas pessoas decidiram acatar as recomendações, e muitos locais, como uma universidade aqui em Porto Alegre que visitei no dia seguinte, paralisaram as atividades por pressão das próprias pessoas. 

          De forma um tanto confusa, o Yakecan causou uma espécie do lockdown climático parcial e abriu o perigoso precedente que busco alertar aqui, o de manipular a opinião pública e impor por meios tirânicos a paralisação e controle de tudo em nome da "segurança" e do "bem comum". Lockdown e comportamentos condicionados, como bem sabemos, com base supostamente científica e prontamente declarada por ditadores de província, engenheiros sociais e ativistas ávidos por transformar a sociedade para um mundo melhor, todos com suporte e patrocínio do velhos meios de comunicação.

          Nada impede que uma nova tempestade ou mesmo um fenômeno meteorológico comum reative o fechamento geral e a censura em bloco. Afinal, quem irá contra o "senso comum" fabricado pelas redações de jornais cujo objetivo é exatamente esse, o de forjar um senso comum?  

          O Yakecan provou que isso é possível e que muitas pessoas, talvez a maioria delas, estejam dispostas a baixar a cabeça ante uma nova tempestade de decretos e aceitem uma nova censura e um novo lockdown. Todas de forma absolutamente passivas como árvores ao vento.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Essa é a nossa guerra

 

          Em determinando momento do dia de hoje estive pensando um pouco na guerra em que vivemos atualmente. O pensamento me ocorreu enquanto fazia uma corrida durante o crepúsculo do sol de verão. A tarde havia sido quente, mas o vento do fim do dia tornava tudo muito mais agradável, e sem fones de ouvido centrei-me nessa guerra a fim de suportar a ansiedade de um passo a passo monótono.

          Muitos talvez pensem em guerra no seu sentido estritamente material. Não falo de guerras mundo afora, da Síria ou da possível guerra na Ucrânia, nem da violência urbana ou do problema das drogas, mas da guerra espiritual. É lá que está a batalha decisiva, esteja você no meio de um tiroteio ou não. Isto é o que importa.

          Destruída a autoridade divina no coração dos homens, o que resta? Nada. Ou melhor: qualquer coisa. Dostoiévski ensinava, em Os Irmãos Karamázov, que se Deus não existe tudo é permitido. Ou pior ainda: podemos realmente acreditar em Deus, mas não aceitar, por uma profunda revolta espiritual e demoníaca, o mundo que Ele criou. Essa era a atitude de Dmitri, irmão de Aliócha, no romance escrito pelo grande escritor russo, em que o personagem descrente em Deus declarava abertamente que jamais aceitaria o mundo como ele é mesmo que Deus existisse. Estava declarada a guerra de uma alma que já havia perdido a própria guerra. 

          Este é o nosso mundo, a ordem criada por almas confusas e obscurecidas pela obstinação do erro. Parece que cada vez mais pessoas decidem pela rebelião, seja por acreditar que estão se libertando ao aderirem às ideias, modas e movimentos do momento, seja porque simplesmente não aceitam o mundo que existe e querem mudá-lo à sua imagem e semelhança, mesmo que isto signifique bater de frente com o Criador. O pior é que os dirigentes deste mundo, do alto de seus castelos civis, econômicos, militares, intelectuais e mesmo religiosos, estão empedernidos em sua luta contra o espírito tentando, a todo o custo, enclausurar o restante da humanidade num lockdown existencial eterno.

          Vejam à sua volta os frutos da revolta: confusão, insegurança e medo. Do espírito nascem a clareza, a segurança e a paz. Abolida a referência que permite medir todos os nossos atos, tudo se torna não apenas permitido, mas relativo. Não há medida ou poder que forneça a paz necessária, pois a paz precisa de ordem, e só há ordem quando a fundamento dela mesma é admitido como princípio e fim de todas as coisas, que se ordenam no passar da linha do tempo

          Se na guerra escolhermos o lado da luz, poderemos ao menos enxergar e identificar os perigos que nos rodeiam, inclusive em sua dimensão física. Este é um dos papéis da sabedoria, tão rara numa época em que o Espírito Santo é contrito pela obstinação humana, pela rigidez dos que apelam pela retidão da razão. A sabedoria é o cruzamento da ciência, outro dom do Espírito, com o amor. Sabemos, por exemplo, qual pessoa se faz digna de uma ajuda desesperada e qual, cobrindo seu rosto com a face de um cordeiro, é apenas digna de pena. Por isso pouco importa o bem-estar físico se a vida afunda na desesperança, pois os recursos transformam-se em bodes expiatórios dos próprios erros, quando não instrumentos de desgraça. 

          Para evitarmos a desgraça do medo ou a guerra que se avizinha no horizonte é necessário adentrarmos nas tropas do espírito. É ali que o exército dos anjos atuam e onde encontramos - pasmem, meu amigos mais humildes - milhares e milhares de empregados a trabalhar para nós, desde que estejamos dispostos a trabalhar com eles. Por isso a atitude de abertura confiante a Deus é tão relevante, pois esta é a garantia de nunca estarmos sozinhos.

          É necessário dizer sim e agir sobre o sim. Seja com o Rosário ou a cruz na mão, seja invocando o nome do Criador à forma da sua tradição, esta é nossa trincheira, esta é nossa batalha. No mundo, nenhuma guerra ou desgraça cessará por completo sem que peçamos auxílio a Quem fez todas as coisas, inclusive as que permitiram a criação das armas. "Rezem o terço todos os dias para alcançar o fim da guerra.", disse certa vez a Mãe de Deus. Essa é a nossa guerra, a única necessária para vencer todas as guerras.