segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Dia 29 de novembro de 2021

 

          O primeiro dia útil da semana começou com aquela ventania típica de inverno, com a diferença de que a temperatura estava dez graus mais alta do que no período mais frio do ano. O uivo do ar a penetrar pelo vão das janelas tão mal vedadas e por debaixo do vão da porta do quarto lembrava, mais uma vez, o quão porco é o isolamento de nossas casas, more você num barraco ou numa mansão. 

          Não por acaso, quando esteve na cidade em agosto de 1942, o francês Albert Camus caracterizou Porto Alegre como fria - e feia, além de cinzenta -, e registrava no seu diário de viagem que fora recebido no aeroporto por homens vestidos com capotes, nossos famosos ponchos. Ficou em minha imaginação sua experiência com o típico sofrimento porto-alegrense, para provável surpresa do escritor laureado, cujo inverno não se compara ao de sua terra natal, mesmo visitando a cidade justamente durante a maior onda de frio daquele ano.

          Ao olhar para a paisagem limitada de minha residência, observei as nuvens "correndo" por sobre a cidade. As árvores, acostumadas aos temporais e aos dias ventosos do meio do ano, vergavam seus galhos, e um grupo de jerivás na residência à frente à minha ora punham seus galhos na horizontal, ora caídos na vertical, lembrando a passagem das rajadas de vento com a sonoridade de suas folhas alongadas.

          Como devem ter percebido, gosto das coisas do tempo, e nada melhor pelo apaixonado por suas loucuras do que a mudança constante. Nunca, jamais, de modo algum os ares são iguais de um dia ao outro, e aí está a beleza e a atração da coisa - com o devido parênteses aos dias de calor, esses, sim, dispensáveis na quase totalidade deles.

          Não fosse a incomum ventania para fins de novembro e seria mais um início de semana sem atrativos especiais. Não pela rotina, mas pela falta dela ou pela insatisfação, talvez um tanto juvenil, de encontrar alguma novidade num mundo que, apesar de estar em constante mudança, possui a estabilidade da ordem sem a qual a mudança não poderia fazer referência. 

          Há uma paradoxo entre se chatear pela mesmice e contemplar que é a ordem que traz beleza ao mundo. É a alma que cansa. Deus nunca dorme.

sábado, 20 de novembro de 2021

Dia 17 de novembro de 2021

          Para alívio dos que sofrem com o calor, foi uma alegria acordar pela manhã e ver o termômetro abaixo dos vinte graus na metade de novembro. No dia anterior, o calor seco havia feito o termômetro bater os trinta e dois, mas felizmente a chuva, essa entidade tão distante nesse seco mês, resolveu dar as caras e propiciar, entre uma ou outra trovoada, um pequeno alívio tanto para meu corpo quanto à vegetação agora sedenta de água.

          Aqueles que moram distantes do Rio Grande do Sul tem uma imagem romantizada do clima local, essa senhora de humores instáveis. Muitos acreditam piamente na permanência do frio ao longo de todo o ano com verão bem ameno e neve sempre presente no inverno. Essa realidade é distante ao ponto de vermos certos constrangimentos fashion para os desavisados dos extremos dessa porção meridional do Brasil.

          Há muito tempo atrás, nos primeiro dias de janeiro de 1999, encontrei um carioca perdido em Porto Alegre durante uma forte chuva de verão. Descendo do ônibus, o pobre homem firmou os pés na calçada com seu corpo desengonçado e todo encharcado, suado e reclamando do calor. "Não imaginava que aqui fosse tão quente", disse mais ou menos com essas palavras. E eu, abrigado na parada de ônibus em meio à chuva inesperada, tive de responder, com a franqueza que tanto incomoda o tão ensaboado jeito brasileiro de não querer desagradar o próximo, de que as coisas aqui não eram como o estereótipo nacional imaginava.

          Mas esse dia de frio incomum para o mês de novembro foi uma das poucas confirmações do imaginário carioca. Numa data em que o sol já faz arder a pele dos desavisados e a temperatura já não é tão agradável como no mês interior, o céu carrancudo e o vento úmido e frio retiveram o termômetro o dia todo abaixo dos vinte graus. Cumprindo o único compromisso do dia, estive no aeroporto da cidade. Encostei meu carro, caminhei pelo canteiro da avenida próxima, cruzei para o estacionamento; senti o ar incomum para o mês com o vento que soprava canalizado por um prédio ao lado. Uma atmosfera de campo aberto em meio ao asfalto, de um mês de maio no mês de novembro. Um garoa leve aqui, outra acolá; volta e meia uma branda cortina esbranquiçada passava pela cidade, e o vento reforçava sensação de ter recuado alguns meses no calendário.

          Os ares do inverno, acrescentado pelo fato de ocuparem o período em que o verão já dá seu primeiros sinais, foram para mim o brotamento de outra memória, o de sentir o aconchego do envolvente ar frio e de saber, para a realização de minha vingança particular, que o desconforto do calor ficou para outras bandas distantes deste país tropical. Talvez haja algum evento em meu passado que tenha encrustado em minha alma essa satisfação, quiçá mesmo um antepassado que tenha legado esta alegria ou nostalgia como a geada que se propaga pela árvore genealógica, que faça minha alegria crescer na medida em que a temperatura diminui. Nessa época, meus descendentes vindos da Itália já estariam se preparando para a chegado do inverno como manda o sábio e velho hábito de obedecer aos ciclos naturais. 

          O envolvimento emocional engendrado pelas mudanças no tempo pode ser a memória viva de um passado que se foi mas que ficou como parte de minha personalidade. Porque somos o extremo de uma árvore viva que fincou suas raízes em tempos imemoriáveis. Alguns de meus galhos estão cobertos pela neve que cobre toda a paisagem.

domingo, 14 de novembro de 2021

Dia 14 de novembro de 2021

 

          Ó, infelicidade essa de ter de se levantar todas as manhãs. Não importa o horário, se seis horas ou onze, meu corpo parece três vezes mais pesado do que realmente é. Não um cansaço, mas uma falta de energia, um desligamento da voltagem que percorre todo o ser de forma simultânea que induz à inércia de ficar estirado sobre o colchão aquecido e já marcado por longas horas de sono. E a vontade, essa potência da alma que não cessa de decidir, luta num jogo de empurra-empurra para ver se vence mais uma maçante batalha contra seu teimoso insubordinado biológico.

          Nesse domingo não foi diferente. Para evitar prolongar demais o sono, despertei às nove e quarenta, mas mesmo com quase oito horas dormidas sentia-me enferrujado e com o peso triplicado. Poderia ter deitado mais cedo na noite anterior, mas a má e velha procrastinação me fez perder mais uma vez a oportunidade de alongar o tempo de descanso e amenizar, mesmo que um pouco, a perda de energia no despertar.

          É claro que a culpa não é do corpo. Nem sou eu um vagabundo. Todas as manhãs há uma motivação: viver. Quando perdida por qualquer motivo que seja, essa motivação, a motivação base de todas as demais motivações - cumprir compromissos diários, trabalhar, ganhar dinheiro, realizar um desejo, cumprir mais uma tarefa no plano de longo prazo, cuidar das crianças, fazer o café da manhã para a família, ir ao banheiro para as necessidades básicas - sucumbem como que numa implosão silenciosa, um edifício feito de isopor mas com peso de chumbo que desaba sobre si mesmo.

          O despertar é a consciência que toma seu lugar no homem que decide sobre si e que tem em seu horizonte o limite de suas decisões. Mas às vezes parece que não queremos decidir por si, esperando supostamente que alguém ou alguma força oculta virá nos socorrer e, magicamente, injetar a força necessária para vitalizar o corpo triplamente pesado. Se não queremos decidir, quem decidirá por nós? Aí está o erro. Na manhã desmotivada jaz o homem que decidiu não viver.

          Todos têm sua luta diária, que se subdivide em vários rounds de socos e pontapés nos contratempos da vida ou por dribles dos mais despertos e audazes quando se está cheio de energia. Há um tempo essa tem sido a minha luta, revirar o corpo para que todos os demais rounds possam ser vencidos.

          Felizmente a alma não se sustenta por si mesma e o sol nasce para todos. 

Dia 13 de novembro de 2021

 

          Eu estou com quarenta anos e durante mais da metade de meu tempo de vida realizei uma busca, sem clareza do objetivo almejado, de minha vocação enquanto pessoa. A situação foi ainda mais complicada porque essa busca se confundiu muito com a ideia, profundamente arraigada na sociedade moderna, de vocação profissional, algo muito distinto mas alguma forma integrado à realização plena da personalidade. 

          Por vezes nossa alma recebe como que lampejos de consciência que nos situam nessa busca. São momentos que permitem ver, em instantes bastante precisos, onde estamos na caminhada de nossa realização, um estar no mundo onde vemos a integração de nossa pessoa com tudo o que há, um espécie de mapa cósmico e histórico que nos situa em nossa trajetória de vida. 

          Na obra Retrato de um artista quando jovem, o escritor irlandês James Joyce descreve, com o prolongamento e os detalhes que lhe são característicos, o processo de descoberta de vocação do jovem personagem Stephen Dedalus. Ao ler hoje o trecho a seguir notei o êxtase do personagem e pude lembrar de situações da minha vida que eram análogas à sua experiência:

O seu coração tremeu; a sua respiração tornou-se mais apressada; e um espírito selvagem passou por sobre os seus membros como se ele fosse escalar o sol. O seu coração tremia num êxtase de medo e a sua alma estava num voo. A sua alma estava se alando ar acima para lá do mundo, e o corpo, sabia ele, estava purificado, libertado da incerteza, e se tornara radiante, diluído no elemento mesmo do espírito. Um êxtase deslumbrado de voo tornava radiantes os seus olhos, desordenada a sua respiração, e trêmulos, selvagens e radiantes os seus membros arrebatados pelo vento. (p. 173)

          A experiência de Stephen é a tomada de consciência de quem era e quem queria ser enquanto pessoa. Ele acabara de ser questionado por dois padres jesuítas se não gostaria ser sacerdote, e vagando pelas praias próximas a Dublin foi descobrindo seu verdadeiro caminho através de um turbilhão de emoções, recordações e iluminações.

          Gostaria de dizer muito mais aqui, mas apenas sei que, enquanto estava à rede absorvendo esse momento especial da obra, notava que não estava tão consciente de meu caminho quanto o jovem Stephen com mais ou menos metade de minha idade. Ou como uma então amiga minha que, em 2003, descrevia num e-mail seu momento de êxtase e felicidade profunda enquanto caminhava nas ruas de uma cidade na costa leste do Canadá. Era um anúncio, à vista de todos, de como era feliz, e como aquele momento era revelador de sua bem sucedida caminhada de vida.

          A descrição da iluminação interior do personagem pode identificar muitas experiências reais nesse universo infinito que dimensiona a alma humana, ao exemplo da amiga no Canadá. A iluminação tem como alvo a consciência e se traduz num acontecimento secreto, mas profundamente real e palpável para quem o vivencia. É a sensação fulgurante de estar fazendo a coisa certa no momento certo, de ver a própria vida em sua totalidade onde tudo passa a fazer sentido, e se tem plena consciência de que a caminhada percorrida era a que deveria ter sido percorrida como se houvesse algo de providencial a guiar toda a trajetória de vida.

          A distância entre o momento em que lia James Joyce e a experiência que o escritor narrava no seu livro parecia infinita. Como ontem, o vento soprava de leste, a temperatura estava um pouco amena, e não havia nada de novo nos ares, tanto em seu plano físico quanto existencial. Mas talvez essa seja a grande surpresa: por detrás do dia a dia um universo inteiro vai se revelando, e se caminhamos conscientes de nossa busca, tateando aqui e ali, andando na beira da praia ou perdido numa rua, de repente somos arrebatados e nos vemos com o Livro da Vida em nossas mãos.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Dia 10 de novembro de 2021

 

          Para quem gosta de meteorologia como eu e tem como um dos entretenimentos observar as condições do tempo nada mais chato do que dias e dias na mesma condição.

          Este é o padrão do tempo desde fins de outubro, e hoje não foi diferente: manhã fresca, tarde agradável; tempo bom com sol e nuvens, vento soprando de sudeste ou leste devido a um centro de alta pressão no oceano; ao final do dia as nuvens diminuem, o vento continua mas um pouco mais fraco, e a sensação de frio leve aumenta. Enfim, um enfado atmosférico que parece não ter fim e que faz esquecer o agitado mês de setembro, quando tivemos pelo menos quatro episódios de temporais aqui em Porto Alegre, um deles durando mais de dois dias, para minha empolgação e alegria.

          Essa eternidade coincidiu com um assustador e impressionante trecho da obra Retrato de um artista quando jovem, do escritor irlandês James Joyce. Sentado na rede e sentindo o vento leve que soprava trazendo as nuvens algodoadas típicas desta época, fiquei impactado com a longa descrição do que seria o inferno pela fala de um dos personagens do enredo. 

          Seu nome é Pe. Arnall, que realizava um impactante sermão durante um retiro em que participava o personagem principal, o introspectivo Stephen Dedalus, com seus colegas do Belvedere College. Vivendo uma vida cinzenta e atormentado na consciência por ter se entregue aos prazeres de uma prostituta, os ouvidos de Stephen estavam atentos a toda a explanação do que era o inferno.

          A descrição de Joyce é incrivelmente bem construída, didática e muito profunda. O leitor consegue imaginar as cenas do que seria o inferno, com as almas esmagadas umas sobre as outras e sofrendo por tormentos interiores e exteriores dos mais diversos tipos, imersas na escuridão que não se vê mas se sente e, acima de tudo, que dura para sempre. O sofrimento é tão vasto e absoluto quanto a eternidade, apresentada na analogia que o Pe. Arnall faz com o trabalho de um pássaro que, de grão em grão, vai retirando a areia de muitos milhões de milhões de montes de areia amontoados uns sobre os outros. Assim é a indizível duração da eternidade, cravadas a fogo na consciência das almas condenadas, que sabem, agora e para sempre, quão duradouro é o seu sofrimento.

          Obviamente o tédio do tempo não muda não se compara ao sofrimento que não passa. Mas há algo de infernal nisso: para quem tem apreço pela mudança, se anima ao ver as radicais transformações do tempo com bigornas de vapor d'água a ejetar raios, clarões e estrondos, se agita com a chuva que cai com força e faz vibrar o telhado, se anima ao ver o efeito do ar gelado sobre a relva que congela, fica na expectativa de alguma neve num local próximo, e se impressiona - mas reclama - com o calor que parece fazer tudo derreter, nada pior do que o marasmo. Felizmente isso não é tudo, mas apenas um aspecto, um detalhe da vida cotidiana. Se o tempo não era atrativo, a obra de Joyce, que aos poucos revelava sua impressionante profundidade, o era. 

          No dia anterior, enquanto dava prosseguimento ao livro, meu gato se aproximou e se jogou aos meus pés como se quisesse me acompanhar, mesmo que fisicamente, na aventura ficcional ambientada na Irlanda de cem anos atrás. Na expectativa de que meus dedos, cobertos pela fina camada da meia azul que eu usava, lhe acariciassem o pescoço e massageassem o profundo das orelhas, ele rolou no chão, e meus membros inferiores não tardaram a lhe preencher os sentidos de conforto e alegria. 

          Se eu estivesse totalmente preso a um único desejo, a um único afazer, se minha vida se resumisse a um único prazer que é observar e analisar o tempo, sim, a vida seria um inferno, e o tédio, mesmo que durando alguns dias, se tornaria quase tão insuportável quanto a consciência de uma eternidade dolorosa. Mas a vida não é assim. Mesmo num momento de poucos afazeres, sempre há algo diferente ou uma agradável surpresa a brotar do mundo que nos rodeia ronronando aos nossos pés e ouvidos. Enquanto estivermos vivos teremos a chance de sermos salvos.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Dia 8 de novembro de 2021

          Após anos de participação em um grupo de oração aqui de Porto Alegre, comecei a notar que certas intuições em momentos de concentração eram, na verdade, indicativos de coisas que estavam acontecendo. 

          Mas é preciso não confundir as coisas. Tais intuições dependem de duas condições: oração e silêncio interior. Nada de dirigismos mentais, pois o que eu "vejo" é, na verdade, meus próprios pensamentos e não visões místicas que podem ocorrer em algumas pessoas, mas que não são tão banais quanto a intuição que brota através da mente.

          Minha mente fica como que suspensa com a devida paz e concentração, e surgem pensamentos que, se bem notados, fluem livremente ao sabor do momento meditativo e espiritual que pouco ou nada tem a ver com alguma intenção pessoal. Em outras palavras, os pensamentos surgem e se desenvolvem em mim sem que eu os dirija deliberadamente confirmando, momentos depois, que aquilo que vinha à mente dizia respeito a algo ou alguém próximo.

          E mais uma vez notei um insistente apelo da Mãe de Deus, dessa vez ao mundo. Era noite de segunda-feira, momento tradicional de um dos encontros do grupo, e as canções à Nossa Senhora, embaladas ao vivo pelo coordenador do encontro, também ele um devoto mariano e cantor profissional, enchiam a nave da igreja. Como que transportados para outra dimensão, o som do teclado e a voz ungida faziam o Céu descer, e sentíamos como que envolvidos por uma nova atmosfera, invisível aos olhos mas perceptível aos órgãos da alma.

          Apesar do momento ser para lembrar todas as pessoas próximas que necessitavam do auxílio de Nossa Senhora, pensei também, cá comigo, na situação do mundo, e me concentrei deliberadamente na mensagem de Fátima para a humanidade, mensagem que há tempo me atraía, mas que só recentemente resolvi conhecer de forma verdadeira. 

          Recordei-me do Anjo com a espada de fogo, que os três pastorinhos haviam visto na terceira parte da mensagem, descrita pela irmã Lúcia em suas memórias. Nessa passagem, o Anjo aponta sua espada com a mão esquerda em direção à Terra para incendiá-la, mas seu fogo é apagado pela luz que emana da mão direita de Nossa Senhora. Com a outra mão, o Anjo aponta para a Terra e diz com voz forte "Penitência! Penitência! Penitência!" Enquanto Deus, pela boca do Anjo, pede urgentemente que o homem se redima de seus pecados praticando sacrifícios, Nossa Senhora segura a ira divina com sua intercessão, dando algum tempo à humanidade para sua remissão.

          Por algum motivo, essa imagem em pensamento buscava tomar vida própria. Não havia mais Nossa Senhora, e o Anjo ficou apenas em minha lembrança. Notava que o fogo, agora tomando proporções mastodônticas, descia sobre a Terra não como labaredas, mas imensas bolas de fogo, tão grandes que pareciam quase não se mover em relação às enormes dimensões de terra que engolia. Cidades inteiras eram cobertas pelo fogo, que calcinava absolutamente tudo ao seu alcance.

          Eu tentava imaginar que locais poderiam ser esses, mas as especulações eram puramente artificiais. A importância não estava nos locais em si, e sim no fato de que Nossa Senhora já não poderia mais intervir para impedir o sofrimento que viria ao mundo por seus vastos e contínuos pecados. Passaram-se mais de cem anos, e a humanidade, após um início aparentemente promissor, deu as costas à mensagem de Fátima, e agora parece não haver mais tempo para evitar as catástrofes vindouras, a tão necessária purificação do mundo pela via dolorosa. E no meio da dor, haverá guerra.

          Escrevo isso porque é pelo menos a quarta vez que percebo em mim um forte apelo de Nossa Senhora para que rezemos, urgentemente, pela paz no mundo. Particularmente não creio ser mais possível evitar o fogo da espada do Anjo, cujo contexto se dá em meio a uma cidade parcialmente destruída, mas ao menos podemos evitar o pior ou amenizar as dores do parto que serão necessárias para o surgimento de uma nova humanidade, o triunfo do Imaculado Coração de Maria. 

sábado, 6 de novembro de 2021

Dia 4 de novembro de 2021

 

          Nesse dia comecei a leitura da livro Retrato do artista quando jovem, do escritor irlandês James Joyce. Logo fui pego um pouco com as calças na mão pela dificuldade na leitura, talvez devido à tradução da obra, porém o estilo de Joyce não me era familiar.

          Mas clássicos são clássicos, e como tais eles trazem no enredo um pouco da realidade que diz respeito a todas as pessoas na face na Terra. Do contrário, ficariam confinados à cultura local, muito mais significativos ao seu folclore do que à condição humana universal.

          Logo no início de Retrato, o personagem principal, o pequeno Stephen Dedalus, reflete sobre sua situação física no vasto mundo desconhecido. Após ler um lista que o situava geograficamente na vastidão indeterminada do Universo a partir de sua condição pessoal, o garoto salta ao seguinte pensamento (narrado por Joyce em terceira pessoa):

"Que é que haveria depois do universo? Nada. Mas haveria qualquer coisa em volta do universo para mostrar onde ele parava antes de começar o lugar do nada? Não poderia ser uma parede; mas bem que poderia ser uma linha fininha, bem fininha, lá bem em volta de tudo. Era uma coisa muito grande para poder pensar em todas aquelas coisas e em todos aqueles lugares. Só Deus podia fazer isso. Tentou imaginar que enorme pensamento poderia ser esse, mas só conseguia pensar em Deus." (p. 30)

          Joyce mostra a efusiva imaginação do garoto, mergulhada no universo da cultura irlandesa católica do início do século XX, mas ainda assim aberta ao mistério, esse grande mistério que ultrapassa os limites de qualquer cultura e que é preenchido não pela simples crença em si, mas pela confiante abertura espiritual. E continua: 

"Deus era o nome de Deus, assim como o nome dele era Stephen. Dieu era o nome francês para Deus, e era também o nome de Deus; e quando alguém rezava a Deus e dizia Dieu, então Deus imediatamente ficava sabendo que era uma pessoa francesa que estava rezando. Mas embora houvesse nomes diferentes para Deus em todas as diferentes línguas do mundo, e Deus compreendesse o que era que todas as pessoas que rezavam diziam em suas línguas diferentes, ainda assim Deus permanecia sempre o mesmo Deus e o nome verdadeiro de Deus era Deus." (p. 30)

          Fica bastante claro o apelo universal, não apenas da fé católica de Stephen, mas do amor à Verdade. Pois há só uma Verdade, e mesmo que haja vários prismas que a filtre e veja, essa Verdade continua sendo só uma. 

          Quando li essa passagem não apenas me identifiquei como me apaixonei por ela, pois são nesses momentos de mergulho em nós mesmos que encontramos o misterioso microcosmo que reflete o macrocosmo, uma espécie de ordem interior que tenta caminhar em consonância com a ordem exterior, e vemos que em nós há uma infinitude que também é reflexo da infinitude - ou pelo menos a indeterminação - do que há fora. Estamos no mistério e dele não podemos sair ou, como dizia São Paulo Apóstolo, "nele nos movemos, somos e existimos".

          Sentado na rede do lado de fora de casa, fui pego subitamente, mas de forma muito sutil, como que em oração, num momento de iluminação ignizado pela maravilha da obra. Por isso clássicos são clássicos. Cada um de nós traz em si um pouco da pureza de Stephen e da genialidade de Joyce.           

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Dia 3 de novembro de 2021

 

          Depois de vários meses, pisei novamente nas ruas do Centro de Porto Alegre. Sorte minha, justamente num dia de tempo nublado com nuvens cada vez mais espessas a bloquear a ardente luz do sol do miolo da primavera, capaz de tornar desagradável um dia de ar agradável. Bastaram alguns minutos em deslocamento para que uma chuva leve começasse a molhar a superfície. Meu guarda-chuva fora bastante útil.

          Cheguei ao destino numa travessa de nome curioso - Mario Três Paus, ó raios! - e me deparei com o edifício do lado contrário: um monstro de concreto em formato da letra "H", cujas paredes mais visíveis estão viradas ao norte e ao sul com janelas encravadas entre faixas retilíneas que bloqueiam as luzes laterais, formando o horrendo paredão típico da arquitetura moderna.

          Pude notar o quão insignificante eu era frente ao monstro de concreto, aço e vidro. A faixa central do "H", escondida pelas estrutura principais, era melhor notada na travessa de nome esquisito, ela mesma de design altamente duvidoso, formando o eixo a partir do qual irradiava toda sua estrutura. Ao seus pés, uma pequena fila de pessoas para o atendimento do INSS, tão insignificante quanto eu, mas incrivelmente desproporcional ao gigante que se destacava para quem o observava junto a Mario Três Paus ou ao Mercado Público logo ao lado.

          Impactado com as dimensões do edifício - que já conhecia há tempos mas nunca notara com atenção - resolvi investigar qual era sua identidade. Tão oculto quanto o seu estilo insosso e burocrático é o seu nome, pois demorei tempo para descobrir que o famoso "edifício do INSS" chama-se Edifício Getúlio Vargas, sede do então IPASE, construído na onda modernista que arrasou os belos estilos português e neoclássico das grandes cidades brasileiras entre os anos 1950 e 1970. Robusto, retilíneo e de bordas bem delimitadas, o gigante enquadrava-se perfeitamente nos cânones da arquitetura moderna, num estilo que um artigo escrito em 1990 classificou como miesiano, adjetivo derivado do nome do arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe. Uma olhada rápida no perfil da famosa personalidade evidencia as características do edifício: estilo racional, funcionalista e minimalista, uma obra voltada para fins utilitários.

          Grandes construções como a que encarei com espanto em minha breve visita ao Centro são opressoras, não pelo tamanho em si, mas por aquilo que significam. Quando estive pela primeira vez em Londres, em setembro de 2015, fiquei espantado com o tamanho do Big Ben, mas igualmente maravilhado com a riqueza de seus traços e a relevância de sua simbologia. O mesmo poderia ser dito com relação a muitas outras construções da cidade, que remetiam constantemente o visitante às glórias do Império Britânico.

          Em Porto Alegre, fiquei apenas espantado, e nada mais do que espantado, pois a racionalidade monumental da construção se impôs sobre mim como se eu estivesse submetido a uma força invisível e impessoal. Este é o efeito de uma obra gigantesca, que comunica, como que pela força da presença, a ordem à qual se refere. Ninguém estava ali a passeio e nem estaria caso fosse um dia de descanso, pois não há nada a admirar a não ser o inevitável fato de, ao olhar para alguma direção, se deparar inevitavelmente com um enorme objeto pura e simplesmente por sua dimensão. Em momento nada divertido, eu também estava lá cumprindo meu dever financeiro-burocrático, bem ao estilo da paisagem cinzenta e deprimente.

        A opressão desse estilo arquitetônico não poderia causar outro efeito senão a opressão de seu próprio fim. Grande parte do Edifício Getúlio Vargas ficou vários anos abandonado - e parece que ainda está - porque, no fundo, como dizia o filósofo Roger Scruton, ele é feio, e as pessoas não gostam de coisas feias. Se uma obra possui fins racionais e utilitários, ela perde sua razão de existir tão logo sua funcionalidade perca o sentido, transformando-se em uma obra morta. Salvo o discreto movimento do térreo, o trambolho do Centro da cidade era um ser quase morto respirando por aparelhos.

          Cumprido meu compromisso, saí do prédio em frente com a chuva agora moderada e, surpreendentemente, presenciei dois relâmpagos seguidos de trovoadas. O céu bradava contra a opressão da feiura sem alma. Bastou alguns minutos para que a revolta contra a beleza desabasse numa chuvarada. Eu estava de alma lavada.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Dia 1º de novembro de 2021

 

           Certo dia, quando estava na séries iniciais do colégio, eu e meus colegas realizamos um jogo onde apostávamos nossos desejos futuros. Citávamos a profissão que teríamos, com quem casaríamos e com que idade. Me recordo da idade do meu casamento - 25 anos - e o nome de uma futura pretendente.

          Quase três décadas depois, não só a pretendente sumiu do meu horizonte de relacionamentos como o casamento não veio, bem como a esquecida profissão que havia mencionado. O sonho do ingênuo garoto, construído sobre os dois ideais mais cobiçados da sociedade moderna - o sucesso no trabalho e o casamento feliz -, simplesmente não se tornaram realidade.

          Há algo de frustrante nisso, mas também de altamente pedagógico. Pois o casamento pode simplesmente não ser a vocação de uma pessoa ou seu tempo não ser o tempo imaginado, e o trabalho, necessário a todos que têm um mínimo de sanidade mental e capacidade de caminhar com as próprias pernas, pode ser qualquer um, na grande maioria das vezes diferente do que foi sonhado na infância. E mesmo na faculdade.

          A frustração está na entronização do sonho. O problema é muito simples: sonhos humanos são apenas isso, sonhos humanos, e não decretos divinos. Eles têm a fugacidade do vento, não a estabilidade indeterminada da sucessão de dias e noites. Somos muito mais limitados do que nosso vão desejo e as ficções grotescas de Hollywood - com naves espaciais super avançadas criadas num espaço de vinte anos - nos fazem imaginar. O mundo é o ensinamento do I Ching: tudo está em permanente mutação, menos a mutação mesma, ainda mais se consideramos uma época que aposta no princípio de que as coisas têm fins utilitários, até mesmo a vida humana, e que a essência de sua dinâmica é o movimento frenético e permanente. Os sonhos de uma vida feliz dentro dos cânones modernos é não apenas difícil, como artificial e questionável. Afinal, felicidade seria ter uma carreira bem sucedida e um casamento feliz, mas quem realmente sobe este monte? E alcançada a almejada conquista, o que fazer?

          A pedagogia está na destruição dos ídolos, pois o homem é um ser essencialmente religioso, condição que Peter Berger bem afirmou quando, em sua longa carreira acadêmica, notou que mesmo em sociedades altamente desenvolvidas a religiosidade - mais especificamente a espiritualidade - sobrevive, mesmo que em formas bastante distintas das sociedade tradicionais. O anseio pelo eterno está traduzido nesse perfil religioso. Dê carreira bem-sucedida e casamento feliz a todos e verá se instaurar o caos, a vida sem sentido que é contemplar o tempo que passa sem novas conquistas no limitado tempo de vida. Sem a perspectiva do plano transcendente, a caminhada é vã e a conquista morta no momento de sua concretização, um troféu que acumula pó num canto da prateleira. É a morte e, portanto, a esperança de uma eternidade, a medida de nossas ações.

          Assim como sonhos pessoais facilmente caem na idolatria e na inevitável frustação, impérios inteiros também são arrastados pelo vento, mesmo os aparentemente poderosos. Nesse primeiro dia de novembro, repassei alguns trechos do recém lido O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévich, e encontrei o depoimento de uma cidadã da antiga União Soviética declarando o seguinte:

"O poder soviético parecia eterno. Iria durar até os nossos filhos e os nossos netos! Foi inesperado para todo mundo quando ele acabou. Hoje já ficou claro que nem o próprio Gorbatchóv esperava por isso, ele queria mudar alguma coisa, mas não sabia como. Ninguém estava pronto. Ninguém!" (p. 82)

          Muitas vezes não estamos preparados para uma crise de relacionamento, uma demissão sem aviso prévio e muito menos para o desaparecimento de um império porque perdemos a visão daquilo que fixa as estrelas no alto e sustenta as civilizações. Felicidade mesmo, só no Céu.