sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A unidade dos cristãos: o exemplo do Céu e o empenho na Terra

(João Paulo II recebendo no Vaticano o Patriarca Bartolomeu I do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, em 29 de junho de 2004.) 

          Em 25 de maio de 1995, o então Papa João Paulo II divulgou a encíclica Ut Unum Sint (Que Todos Sejam Um) exortando os católicos ao empenho no movimento ecumênico. A encíclica baseia-se principalmente no decreto Unitatis Redintegratio, do Papa Paulo VI, divulgado durante o Concílio Vaticano II em 1964 e que lançou as bases do ecumenismo da Igreja Católica. João Paulo II faz uma série de exortações e desdobra várias ações e análises a respeito do ecumenismo católico, principalmente com relação à Igreja Ortodoxa, principal foco do decreto de seu antecessor. 

          O movimento ecumênico tem por objetivo edificar uma única igreja visível, neste caso, uma união de todas as igrejas e comunidades cristãs na Igreja Católica. É desejo de Jesus Cristo: "que todos sejam um (...) para que o mundo creia que Tu me enviastes" (Jo 17, 21). As divisões e discórdias são um escândalo que ofende a Deus e dão contratestemunho de Sua palavra.

          Uma passagem da encíclica, porém, merece especial atenção por seu profundo significado. Ela pode soar surpreendente para católicos e outros cristãos desavizados ou negligentes com a misericórdia divina. O segundo parágrafo do número 84 da encíclica faz esta afirmação:

"Embora de modo invisível, a comunhão ainda não plena das nossas comunidades está, na verdade, solidamente cimentada na plena comunhão dos santos, isto é, daqueles que, no termo de uma existência fiel à graça, estão em plena comunhão de Cristo glorioso. Estes santos provêm de todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, que lhes abriram a entrada na comunhão da salvação." [grifo meu]

          Em outras palavras: há santos de outras igrejas e comunidades cristãs que chegaram ao Céu por meio de seus respectivos grupos, dado que participavam da economia da salvação. João Paulo II lembra em alguns momentos a existência de mártires de outras igrejas, sendo estes os principais testemunhos da existência de uma unidade verdadeira que ainda não se efetivou no seu sentido eclesiológico. As palavras reproduzidas acima são de um Papa canonizado pelo Papa Francisco em abril de 2014. Não é pouca coisa. 

        Não há heresia alguma aqui. Muito pelo contrário: há uma declaração oficial de reconhecimento da operação da salvação divina por outras igrejas que, por compartilharem princípios básicos da fé em Jesus Cristo, abriram a porta do Céu aos seus fiéis. 


          O trecho afirma que a unidade almejada pelo ecumenismo já existe no Céu. A unidade dos cristãos é efetiva no plano do Eterno, e esta unidade se dá não só na profissão de uma mesma fé como por dois pilares que a encíclica de João Paulo II e o decreto de Paulo VI exortam continuamente: o amor e a caridade. Não são palavras genéricas e vazias. O primeiro é o ânimo da ação pela unidade, o segundo a própria ação. No Céu, ambos existem de forma plena e, portanto, a divisão entre igrejas não só é desnecessária como contraproducente. São as coisas do mundo que causam a divisão, as paixões e os desentendimentos, alvos preferenciais da ação demoníaca que nos atinge principalmente através da mente atiçando o erro e o orgulho.

        "Assim na Terra como no Céu", diz o Pai Nosso. O mundo deve lutar para seguir o exemplo do Paraíso. A unidade, inevitável num contexto onde o amor reina de forma absoluta, é o objetivo no qual mira o ecumenismo. Sempre haverá divergências, dúvidas, questões a resolver, mas é o milagre do Céu operando na Terra que trará a unidade de todos os cristão na Igreja Católica. A unidade é graça do Espírito Santo, que João Paulo II tantas vezes menciona em sua encíclica, e é só através desta graça que mil anos de complicadas divisões e ressentimentos serão superados. Qualquer adendo, desvio ou fórmula mágica para a unidade é mera vaidade humana.

A vida em dois tempos


          Na quarta-feira passada, dia 21, participei com meu grupo de oração, o São José, do Cerco de Jericó. O evento, que originalmente dura sete dias, foi feito em apenas pouco mais de seis horas, contando aí as duas missas de início e fim do cerco. Realizamos sete caminhadas por dentro da nave da Igreja Nossa Senhora da Paz em Porto Alegre reproduzindo os sete dias do cerco à cidade de Jericó conforme relata o Antigo Testamento. 

          Enquanto realizávamos as orações e fazíamos as caminhadas com o Santíssimo Sacramento nas mãos do sacerdote não percebíamos a passagem do tempo. O dia que começara fresco ficava quente, mas o ar-condicionado da nave (um luxo que recentemente tem se espalhado por algumas igrejas da cidade) impedia de sentirmos a temperatura que subia do lado de fora. Mal ouvíamos o barulho do trânsito na avenida à frente, estávamos absorvidos no ciclo de orações e caminhadas e não nos preocupávamos com as coisas do dia-a-dia. 

          Nosso Cerco de Jericó era um microcosmo da vida espiritual. Não quero entrar aqui no sentido que o cerco possui no Antigo Testamento, sobre o qual as orações são feitas, mas na experiência deste evento. Cercados pelas paredes da igreja, estávamos todos desligados do mundo em seu sentido amplo: não tínhamos percepção do tempo, não sabíamos o que acontecia do lado de fora e, em princípio, não estávamos preocupados com ninguém. "Preocupados" aqui quero dizer absorvidos com problemas que envolvem terceiros, como compromissos marcados, problemas de casa ou sentimentos dominadores projetados em outras pessoas.

          Esta experiência era como estar no Céu, mais especificamente no plano da eternidade. No Eterno não há tempo. Todos os tempos, passados, presente e futuros possíveis, estão lá dispostos de forma simultânea. Eles não passam, simplesmente estão presentes no que chamamos de "eterno presente de Deus". Ao menos tempo, estávamos desligados dos acontecimentos e obrigações humanas, que de nada servem para as almas que daqui já partiram, dado que elas não podem cumprir compromissos e acumulam sofrimentos se apegadas ao mundo que deixaram para trás. Da mesma forma, os sentidos estavam desligados da variação da temperatura externa e absorvidos no ritual cíclico que, no final das contas, reatualizava constantemente a presença de Deus através de Seu Corpo na eucaristia. 

          Na igreja estávamos no Céu. Ao passar sua porta da entrada ali estava o mundo. A igreja cercada pela cidade representava o inverso de sua dimensão física: ela era o plano infinito que abraçava a cidade, que abraçava o mundo inteiro. Este infinito é o eterno que não passa. Ele sempre é, enquanto o mundo, forjado nas lutas da História Humana, passa e um dia chegará ao fim. Mas só o Pai sabe quando.

sábado, 10 de novembro de 2018

Resistindo à maré vermelha

(Estudantes do Ensino Médio em protesto contra o governo de São Paulo. Dezembro de 2015.)

          Em 1992, na época do impeachment do então presidente Collor, eu estava na quinta série do primeiro grau (atual sexto ano do Ensino Fundamental). Recordo-me vagamente de questões políticas na sala de aula. Uma delas ocorreu na aula de Português, e a discussão era se a turma e o colégio iriam ou não na passeata dos famosos caras pintadas. O colégio fez greve na ocasião e eu, por alguma razão salvo da influência esquerdista, fiquei em casa.

          Na oitava série, a primeira aula de Geografia foi com uma professora muito carismática que emendou, entre outras coisas, sobre os males do capitalismo e as vantagens do socialismo. (Jamais vou esquecer do teatro que ela dissecou por alguns segundos imaginando uma hipotética guerra nuclear entre Estado Unidos e União Soviética. Aquilo foi engraçado.) A aula inteira foi um monólogo, caso raro com pré-adolescentes com os hormônios a milhão. No intervalo, saí convencido de que o socialismo era um sistema melhor. Comentei isto com um colega e ele, com rosto sério, concordou num daqueles poucos momentos em que dois guris de catorze anos discutem um assunto de real importância.

        Ao longo dos anos, ouvi por milhares de vezes o enredo do imperialismo europeu nas aulas de História. Estávamos certos de que os grandes capitalistas e os Estado nacionais anexavam o mundo à sua volta unicamente em busca de recursos naturais para suas indústrias. Era a metrópole explorando as colônias. Havia sempre, sempre, sempre e sempre o velho "interesse" por detrás de tudo. Não havia ato na História humana que não tivesse "interesse". A humanidade se desenvolveu com base no egoísmo ao ponto dos europeus, depois de conquistarem quase todo o mundo, voltarem seus egos uns contra os outros para se matarem mutuamente. Por duas vezes. Na primeira, surgiu uma idílica Revolução Russa; na segunda, a culpa recaiu exclusivamente na "extrema-direita".

          Eu tornei-me um esquerdista no último ano do colégio, quando da minha primeira eleição (1998), levado pela alegria de me tornar mais um dos tantos adeptos da esquerda. Estudava num escola particular cara de Porto Alegre, onde a grande maioria dos que se manifestavam publicamente eram também de esquerda, principalmente simpatizantes do PT. Engana-se quem pensa que o PT cresceu com o povo. Não. Cresceu com a elite, tanto é que foi na minha cidade, uma das mais desenvolvidas do país na época, que o partido logrou suas maiores vitórias. Votei no Tarso Genro para prefeito em 2000, mas daí em diante fui saindo deste espectro político.

          Quando fiz a faculdade de Geografia na UFRGS para me tornar bacharel, tive um professor que se declarava "anarquista cristão" e lecionava, se não me falhe a memória, Estudos Populacionais em Geografia. Deveríamos aprender sobre natalidade, mortalidade, mudanças demográficas, os impactos destas mudanças na sociedade e coisas do tipo, mas tivemos, única e exclusivamente, textos críticos ao capitalismo e do próprio Karl Marx. A coisa foi tão constrangedora que meu colegas (que não eram nada direitistas) pediram para que o professor entrasse no tema da disciplina, e como resultado ele passou a emendar tabelas demográficas nos textos que distribuía. Em certa ocasião, chegamos a um impasse que resultou num profundo silêncio em sala de aula. Nós e o professor ficamos em silêncio absoluto. Por vinte minutos.

          Anos mais tarde, quando lecionei Geografia em algumas escolas particulares, pude conferir de perto o que diziam os livros da área. De forma geral, eles apresentavam uma certa aceitação do capitalismo e da globalização, mas sempre com viés crítico do tipo "foi o que sobrou e temos de lidar com isso". Derrubada a falsa dicotomia capitalismo X socialismo o mundo entrava numa era de desigualdades, xenofobia e extremismo. Talvez fosse melhor a era da ameaça da guerra nuclear, que, todos sabemos, não seria a piada da professora da oitava série.

          O problema da ideologização da educação não está numa doutrinação, mas numa cultura, numa mentalidade que vê o mundo torto dominado por "interesses capitalistas". Ela vicia a mente em chavões e obscurece a consciência formando aquilo que Eric Voegelin chama de "segunda realidade". O mundo real (primeira realidade) é filtrado e lido segundo a cosmovisão da segunda. Na cultura ou mentalidade de nossa educação tudo é interesse, tudo é dinheiro, tudo é capitalismo, tudo é a desigualdade que está aí, agora também na cor, no estilo de vida e (por que não?) no sexo de sua filha. Não sei a solução para tudo isso, ou se a chamada Escola Sem Partido tem algo a oferecer como resposta. É, como dizia o nome do blog de um amigo, nadar "contra a maré vermelha" tendo a consciência clara de que o que você pensa é de sua experiência da realidade e não de abstrações originadas da militância política de esquerda. Isto é resistência.       

          
          

domingo, 4 de novembro de 2018

A ilusão do poder

(Arco do Triunfo em Paris: símbolo da Revolução Francesa, que deu origem ao modelo de Estado moderno adotado no mundo todo.)

          Encerrada a guerra das eleições, resta-nos, além de monitorar e fazer pressão no novo governo quando necessário, tocar a vida adiante. A política é uma das faces de nosso cotidiano. Ainda que ela permeie cada vez mais nossos afazeres, ela não é nosso dia-a-dia.

          Nosso dia-a-dia é o levantar, arrumar a cama, falar com as pessoas da família em casa, trabalhar, ir ao mercado, manter as amizades e cuidar um pouco da saúde (e também da aparência, por que não?). Mas vivemos numa época em que a política parece que resolverá tudo, como se devêssemos ter o líder ideal, mais que um salvador da pátria, um salvador da humanidade a guiar seu povo no caminho sonhado em direção ao Paraíso terrestre.

          Na era das democracias (ou seja lá o que isso signifique realmente), acreditamos que o Estado e a legislação trarão tanta alegria e felicidade como outrora o "ideal" comunista prometeu. Pior: ainda promete. Porque a mentalidade do Estado totalizador da vida humana, ainda que nas suas vestes de Estado de direito, insiste em prometer o que não pode dar. Porque quanto mais direitos, mais deveres e mais pessoas obrigadas a trabalhar para a realização desses direitos pela força da lei. Se isso não é totalitarismo, não sei o que é. 

         Seja nos moldes do Estado comunista, fascista ou liberal, o Estado moderno cresce e vive às custas de uma esperança da vida pós-morte que a modernidade colocou para além de nosso horizonte cotidiano. Na obra "Rumor de Anjos", Peter Berger afirma que um dos efeitos mais espantosos da secularização, isto é, a subtração de expressões e símbolos religiosos da sociedade, é a eliminação da ideia da morte. A vida moderna fez o homem voltar-se apenas às coisas do mundo. Relegado o plano da transcendência ao esquecimento, surgem as coisas meramente cotidianas como totalizadoras da vida, dentro das quais o Estado é o principal ator a nível coletivo, o condutor da sociedade. Assim como a técnica busca dominar a natureza, o Estado busca dominar a vida humana, guiando-a para a perfeição segundo suas diretrizes e os planos ideológicos de seus mentores e administradores. A utopia floresce na mente dos que se colocam na direção do mundo, que caminha rumo ao desconhecido e, por isto mesmo, ao fracasso. 

          Enquanto levamos nosso dia-a-dia adiante continuamos a viver no crescente domínio do poder político sobre nossas vidas, cada vez mais dependentes dos meios modernos de vivência. É paradoxal que vivamos como se a política não existisse ao mesmo tempo em que esperemos tudo dela. Talvez este seja um caminho: viver como se o governo não existisse, como se a política fosse irrelevante, como se o Estado fosse uma ficção. Cumprindo sempre os deveres legais, mas menosprezando-os como meramente legais. Desenvolvendo uma vida interior ativa e vigorosa que forneça a consciência pessoal e espiritual de nosso papel no mundo. Afinal, um dia nós nascemos sem necessitarmos disso, e após a morte romperemos com a ilusão totalizadora do mundo, deixando posses, poderes e ideologias para trás.