terça-feira, 24 de maio de 2022

Uma vida não vivida

          Você está aí, no alto de um grande edifício. A brisa bate no rosto, o sol esquenta sua pele, nuvens algodoadas transitam lentamente pelo céu. Vez ou outra alguns pássaros atravessam o alto e soltam cantos e burburinhos em línguas não compreensíveis. A cidade se estende a grande distância e depois há uma floresta a perder de vista. Abaixo, carros, ônibus, pessoas em movimento. Tudo aberto e funcionando: crianças indo à escola, consumidores entrando e saindo das lojas, moradores abrindo e fechando as janelas, ora para ventilar os cômodos, ora para barrar a luz direta do sol. Mas você está aí, em pé sem dar um passo adiante num mundo cuja única regra é não parar.

          Esta é a melhor forma de não viver: deixar de escolher, desistir dos objetivos, não cumprir com as necessidades e não se comprometer com as circunstâncias que lhe são apresentadas. A pessoa que não vive não decide e, por isso mesmo, não arrisca. Diria melhor: decide não arriscar pois, seja por comodismo ou trauma de um maldito evento passado, acredita ser melhor deixar o mundo andar por si mesmo. Mas não é.

          Porque o mundo que anda assim o faz porque decide. É claro que as nuvens e mesmo os animais não decidem por si, vivem plenamente a condição de seu ser conforme lhes imputa sua natureza, mas há uma razão para as nuvens virem de leste e não de oeste e os pássaros voarem em bando e não sozinhos. Assim como há razão para sua inércia, nascida da apatia da vontade, da não decisão, ou melhor, da decisão de não viver. Só nós podemos escolher, atitude essencialmente humana e necessariamente moral: somos livres para trilhar o caminho do Bem e do Mal. Somos responsáveis pelo bem e o mal que fazemos, a começar a nós mesmos. 

          O caminho se abre a cada momento, a cada instante, e é definitivamente mau não decidir. Sabe aquela garota que você sonhava que um dia estaria contigo? Você não teve coragem e não fez nada ou não disse nada. Sequer tentou e agora está aí unicamente submerso em seus sonhos e desejos. Onde estão os seus amigos que há anos você não vê? Acreditou que a eles caberia a atitude de chamar para um encontro ou puxar uma conversa. Toda a atitude exigida dos outros é primeiro nossa, sempre. Você acha seu trabalho um porre e nem de longe imagina fazer o que mais lhe dá prazer? Abdicou de sua óbvia vocação profissional e preferiu seguir uma carreira mais segura. Ou ainda pior: deixou o trabalho de lado para apenas "fazer o que gosta". Nunca, jamais pare de trabalhar. Não há sonho sem sustentação material mínima, e não há sonho mais estúpido do que acreditar num trabalho de prazer constante ou viver unicamente de amor como se o sustento brotasse de bons sentimentos.

          Não viver é uma decisão cujas implicações não são apenas materiais, mas morais, pois aqueles à sua volta vivem o fardo de seus erros, isso quando não têm de sustentar materialmente este erro. Viver começa por decidir, e a primeira luta está na contemplação do fardo, de sua própria cruz, de que ela nunca é tão pesada que não se possa carregar.

          Um mundo que se move é um mundo vivo. No arrasto do tempo, até os cemitérios estão em movimento.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A loucura do ciclone

(Imagem de satélite da Tempestade Subtropical Yakecan na tarde de 17 de maio.)

          Na chuvosa e ventosa tarde de quarta-feira passada dirigi da orla do Guaíba, em Porto Alegre, até minha casa, distante dez quilômetros do local. Meu temor não se confirmara: trânsito livre durante todo o trajeto, poucos carros se comparado à hora do rush. Deveria ficar parado por alguns momentos, disputar espaço com alguns carros e ter um pouco de paciência. Nada disso. Dirigi tranquilo como se estivesse numa manhã de domingo.

          Passei pela rua de um grande colégio particular. Ninguém na calçada, os alunos foram dispensados porque o incomum ciclone subtropical ameaçava a segurança da gurizada. Até aí sabia do fechamento de algumas escolas e universidades, obviamente um exagero, mas ainda assim parecia ser algo pontual. Até dobrar uma esquina e ver uma academia sempre lotada às escuras. Onde estava o pessoal? Como vim chegar tão rápido em casa justamente na hora mais movimentada do dia e sob chuva?

          Só então percebi que boa parte de Porto Alegre estava paralisada pelo alerta do Ciclone Subtropical Yakecan, nome indígena utilizado para batizar o fenômeno e que significa "som do céu" na língua tupi-guarani. O ciclone, considerado tempestade devido às rajadas de vento acima dos 62 km/h, limite mínimo para essa classificação, paralisou não só parte de minha cidade com mais de trinta no Rio Grande do Sul. Escolas, universidades, parte de comércio e serviços fechados, trânsito à míngua, quase ninguém nas ruas.

          Já vi ventanias muito piores do que a do referido ciclone, um fenômeno raro devido à sua trajetória, dado que os últimos ciclones subtropicais que acompanhei em vários anos passados nunca chegaram em terra com seu centro. Ventos muito fortes, um pouco menos do que o previsto com rajadas que poderiam chegar à força de um furacão. 

          A diferença, porém, é que as chamadas "rajadas de furacão" (de 120 km/h para mais) não são ventos como de um furacão, que se caracterizam pela velocidade sustentada, ou seja, contínua de 120 km/h ou mais. Curiosamente Porto Alegre parou parcialmente por ventos que já vira muitas outras vezes, como ciclones extratropicais que causaram ventanias piores do que nosso querido Yakecan.

          Se formos levar em consideração o alerta não havia razão para paralização. O histórico não evidenciava risco de vida, fora fatalidades que pudessem ocorrer pela navegação em alto-mar ou em alguma circunstâncias fatal pela grande população de uma metrópole. Dezenas de outros ciclones e temporais, seja de verão ou por frentes muito ativas, não levaram a qualquer fatalidade, e não havia cabimento a paralisia pela tempestade que se avizinhava.

          Fiquei impressionado - e incomodado - pela reação exagerada e patológica ao ciclone. Se a cada alerta meteorológico tivermos de tomar medidas draconianas do tipo como poderemos planejar coisas de médio prazo como planos de aula para um trimestre, viagens e obras? Como organizar uma agenda de negócios e atendimentos para uma semana? Se o ciclone exige, pelo suposto risco à segurança, paralisar todas as atividades, por que não fazer o mesmo num alerta de chuva muito forte e volumosa devido a um outro sistema meteorológico que venha despejar baldes de água sobre a cidade ou áreas montanhosas com risco de deslizamentos? E num ciclone extratropical subindo ao longo do litoral, coisa muito comum no período do outono à primavera na costa sudeste da América do Sul, não deveríamos nós ficarmos forçosamente em casa num dia de muito vento seguindo à risca alertas meteorológicos baseado em previsões - sim, previsões, não profecias místicas - ignorando toda a variabilidade da própria margem de erro da previsão e da complexidade e espontaneidade da vida cotidiana?

          Sim, o Ciclone Yakecan foi incomum por ser subtropical e raro pelo trajetória e força, mas o precedente aberto pela paralisia deu margens para outras loucuras do tipo. Os dois grandes elementos dessa loucura foram, primeiro, o medo invisível que se mantém difuso pelos ares desde o auge da pandemia e, segundo, a má comunicação - e mesmo o conveniente exagero para angariar publicidade na internet - ao considerar a tempestade uma ameaça mortal como um furacão, ao qual o ciclone foi comparado.

          Dessa vez o inimigo não era invisível como um vírus, mas também não era identificável diretamente, pois ninguém pode ver um ciclone em todo o sem conjunto. Dependendo do suporte informativo de terceiros, as pessoas ficaram à mercê de alguns porta-vozes que não sabiam muito bem como se dirigir a elas para falar de algo novo, outros fizeram um desnecessário sensacionalismo para chamar a atenção e ganhar notoriedade, outros ainda afirmaram, sem saber, que o Yakecan poderia virar um furacão e repetir a tragédia do Catarina em 2004. 

          O que fazer, então, com uma ameaça que não podemos ver e que a qualquer momento pode ameaçar a sua vida? O único remédio evidente era evitá-lo, não tocá-lo, tomar distância e ficar em casa. Tudo já condicionado pelos últimos dois anos de loucura. As pessoas ficaram com medo, o comércio fechou e a debandada foi geral. 

          Mas a novidade foi que a paralisia veio não por imposição, mas por alertas e recomendações de órgãos públicos e privados, como a Defesa Civil Nacional e alguns institutos de meteorologia. Com medo, muitas pessoas decidiram acatar as recomendações, e muitos locais, como uma universidade aqui em Porto Alegre que visitei no dia seguinte, paralisaram as atividades por pressão das próprias pessoas. 

          De forma um tanto confusa, o Yakecan causou uma espécie do lockdown climático parcial e abriu o perigoso precedente que busco alertar aqui, o de manipular a opinião pública e impor por meios tirânicos a paralisação e controle de tudo em nome da "segurança" e do "bem comum". Lockdown e comportamentos condicionados, como bem sabemos, com base supostamente científica e prontamente declarada por ditadores de província, engenheiros sociais e ativistas ávidos por transformar a sociedade para um mundo melhor, todos com suporte e patrocínio do velhos meios de comunicação.

          Nada impede que uma nova tempestade ou mesmo um fenômeno meteorológico comum reative o fechamento geral e a censura em bloco. Afinal, quem irá contra o "senso comum" fabricado pelas redações de jornais cujo objetivo é exatamente esse, o de forjar um senso comum?  

          O Yakecan provou que isso é possível e que muitas pessoas, talvez a maioria delas, estejam dispostas a baixar a cabeça ante uma nova tempestade de decretos e aceitem uma nova censura e um novo lockdown. Todas de forma absolutamente passivas como árvores ao vento.