sábado, 24 de outubro de 2020

Vocação e sacrifício

(Sísifo dormindo)

          Todas as pessoas possuem uma vocação. Não falo aqui em vocação no sentido religioso ou matrimonial, mas enquanto pessoa, enquanto ser. 

          Nossa caminhada na vida é uma revelação de nós para nós mesmos. É olhar para si e descobrir, aos poucos, que temos uma certa personalidade que deve ser descoberta e ser trabalhada para cumprir seu pleno potencial.

          Este vídeo, divulgado no início de 2020 pelo pelo ICLS (Instituto Cultural Lux et Sapientia), dirigida pelo professor Luiz Gonzaga de Carvalho, mostra como as pessoas descobrem sua vocação ao longo da vida e os erros que muitos cometem, muitas vezes por uma má educação na família ou orientação errada dada pela educação moderna, ao confundir vocação profissional com vocação de vida.

          Todos os dias tomamos atitudes com vistas a um fim, e este itinerário vai formando nossa narrativa. Assim como numa viagem, olhamos para trás e vemos a distância percorrida; o passar do tempo nos pesa, e conseguimos perceber, com maior ou menos consciência, as conquistas (ou a falta de) ao longo da vida. Conquistas essas que são o cumprimento de uma narrativa.

          Quem chegou aos trinta e cinco, quarenta anos sentiu nas costas o que fez ou deixou de fazer. É o período da vida, segundo o apresentado no vídeo, em que descobrimos nossa vocação enquanto pessoa.

          Por experiência, posso dizer a dificuldade que é chegar nesta faixa de idade e ver o que não foi criado e construído, o peso que pode ser a narrativa não narrada, a vida não vivida e a vocação não descoberta.

          Na verdade, o problema não está em não descobrir a vocação no prazo, mas em não buscá-la, não se descobrir na experiência de vida, seja pela sucessão de erros cometidos, a recusa de viver plenamente com os esforços exigidos para isso, ou os dois.

          A felicidade se faz nesta caminhada, que deve fazer criar músculos nas pernas, cujo esforço resulta em dor e sacrifício. A descoberta da vocação é uma toalha que deve ser torcida para fazer verter a água da vida. Do contrário, a personalidade apodrecerá na frustração e na infelicidade.

A origem da lei

 "A fórmula-raiz duma época é a lei que não está escrita, assim como a lei primeira entre todas as leis, responsável por proteger a vida contra o homicídio, não se vê escrita em lugar algum do Statute Book." (G. K. Chesterton, em "Eugenia e Outras Desgraças", 1922)

A proximidade entre as autoridades política e espiritual acabou por sacralizar o Estado, que na era modera emergiu como todo-poderoso das leis e dos princípios.
Nossa época herdou este vício de que a lei dos homens pode legislar sobre tudo. Não por acaso, há uma tendência de se considerar moralmente aceito aquilo que é legalmente estabelecido.
A sacralidade da vida pública foi transferida da Igreja para o Estado, o novo templo, sendo seu corpo jurídico o novo catecismo.
Ocorre que a lei dos homens é uma derivação da lei divina (ou ao menos assim deveria ser), e por isto mesmo a Santa Igreja, ao exemplo da encíclica "Dignitatis Humanae" de São Paulo VI, exorta os fiéis para que obedeçam à autoridade, desde que esta autoridade não vá contra a Igreja e os princípios que ela defende.
A lei, diz o documento, deve garantir a liberdade religiosa, pois Deus fez o homem livre para que Nele cresse. Assim, a lei dos homens deve estar em consonância com a Lei de Deus.
Chesterton evoca esta Lei superior em "Eugenia e Outras Desgraças", lembrando os dois primeiros mandamentos que, segundo o próprio Jesus, resumem toda a Lei de Deus.
Amar a Deus sobre todas as coisas é amar o próximo, pois Deus habita no próximo. Portanto, quem agride ao próximo agride a Deus em pessoa. E por isso mesmo amar o próximo como a si mesmo é amar a Deus. Não há como separar esses mandamentos, derivação de todas as demais leis divinas.
Assim, o que Deus proclamou não está nos Statute Books do Reino Unido ou na Constituição brasileira de 1988, mas no coração humano, e tem como veículo a Igreja através de sua Tradição, a Palavra e Magistério, ou mesmo outras tradições religiosas.
Nos dias de hoje, onde proliferam leis iníquas que atentam diretamente contra a vida e relativizam a dignidade humana através da segregação social e do consequente estímulo de conflito de todos contra todos, o homem tem o desafio de se aferrar à Lei inscrita no próprio coração e lutar para que, no momento oportuno, prevaleça nas cartas do mundo todo o que imperou nas sociedades cristãs por séculos. E o que impera no coração de Deus desde a eternidade.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O preço da submissão da Igreja ao Estado

 "Na Rússia, a única acusação real feita por gente religiosa (especialmente católicos romanos) contra a Igreja Ortodoxa não é sua ortodoxia ou heterodoxia, e sim sua dependência abjeta do Estado." (G. K. Chesterton, em "Eugenia e Outras Desgraças", 1922)

Chesterton posicionava-se favorável à retirada do apoio estatal às igrejas, como comenta em "Eugenia e Outras Desgraças", do qual este trecho foi transcrito.
A separação Igreja-Estado é um dogma da modernidade. Seu questionamento é visto como a defesa do contrário, um Estado confessional, como se fosse obrigatório, à alternativa da laicidade, um poder que patrocinasse oficialmente uma fé específica.
A questão é infinitamente mais complicada, porque, historicamente, Estados patrocinaram igrejas, o que levou à divisão dos fiéis e da luta uns contra os outros (a Inglaterra de Henrique VIII é um bom exemplo disso), e a laicidade, vista com um modelo ideal de Estado moderno, é, no seu sentido estrito, impossível.
Pois a laicidade será sempre relativa. Ela pressupõe que a população participe do poder vigente, e parte desta população é religiosa. Ela exige uma conduta "laica" do poder público, mas este poder é composto de pessoas que deveriam, por este ideal, deixar suas crenças em casa. Ela exige a divisão das consciências, o que significa abjurar da consciência religiosa.
O monstro bifronte do Estado laico existe no plano jurídico, mas não pode ser estritamente implementado segundo seu ideal. O Estado laico não é antirreligioso, mas juridicamente neutro às questões religiosas e, por consequência, nivelador do valor que confere aos grupos religiosos. Mas a população não condiz com este padrão, bem com a proporção de grupos religiosos numa sociedade.
Por outro lado, a solução do Estado confessional igualmente não é válida. Na mesma obra, Chesterton comenta a perda da vitalidade da fé nas igrejas que têm apoio oficial.
O caso da Rússia é emblemático, pois no país onde o czar estava acima do patriarca ortodoxo (título banido por Pedro, o Grande), o Patriarcado de Moscou era submetido a um sínodo diretamente controlada pelo Estado.
Quando Chesterton escreveu esta passagem, em 1922, a Igreja Russa estava sob o jugo dos bolcheviques, que estabeleceram controle ainda mais rígido sobre os religiosos, perseguindo e matando quase a totalidade deles na década de 1930.
A "santa" Rússia, que sacralizou o poder político, trouxe o primeiro Estado oficialmente ateu, de um laicismo feroz nunca antes visto. Não por acaso, nos confins de Portugal, Nossa Senhora viria alertar sobre as desgraças que viriam daquelas terras.
Os "erros da Rússia " estavam apenas começando.

A falsa autoridade da "ciência"

 

"A coisa que hoje em dia está de fato usando o governo para impor uma tirania é a ciência." (G. K. Chesterton, em "Eugenia e Outras Desgraças", 1922)

Inevitável ler essas palavras de Chesterton, escritas em 1922 na obra "Eugenia e Outras Desgraças", e não lembrar da atual crise relacionada à covid-19: lockdowns, restrições ao direito de ir e vir, uso compulsório de máscaras, engenharia social por decreto e propaganda da mídia, distanciamento controlado, monitoramento por drone e celulares, denúncias de vizinho contra vizinho.
Tudo em nome, claro, da "ciência". Pior: em nome do "consenso científico", que nada mais é do que a opinião mutável majoritária de um grupo de especialistas sobre um tema.
Ou pior ainda: em nome do "consenso científico" divulgado em bloco pela classe jornalística, um punhado de pessoas que se arroga orientar o comportamento da massa graças à capacidade técnica de se fazer ouvir pela televisão.
É questionável se, de fato, é a ciência que está usando o governo ou o inverso, mas o que podemos deduzir de Chesterton é a existência de uma mentalidade cientificista, que considera ser possível reduzir o cosmo ao cálculo e o ordenamento puramente racional, bem como o próprio comportamento humano.
O cientificismo é falsa ciência, é abusar da capacidade de entender toda a realidade com base em métodos cujos fundamentos remontam à era pré-científica e são passíveis de questionamento; são arbitrários.
A situação é ainda mais grave quando se percebe que o que chamamos de ciência moderna é a leitura, parcial e questionável, de um determinado aspecto da realidade, tornando o cientificismo ainda mais distante da voz da verdade como pretende ser. A ciência, portanto, jamais pode ser autoridade pública.
A ciência pode falar como funciona o vírus da covid, mas não pode dar uma definição ontológica de "vírus", muito menos responder porque ele existe, mesmo que use e abuse dos "comos".
Mas é esta "ciência", tomada no sentindo mais grosseiro do termo, que está sendo imposta como autoridade máxima e inquestionável sobre nossas vidas, tomando de assalto a cabeça de governantes, especialistas e jornalistas, roubando não só nossa liberdade como também nossas almas e anunciando, pelas vozes dos que se arrogam ditar normas à população, o quão digno você é.
Tudo sob o neutro e superior critério científico, é claro.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um tempo de superstições

 

"A época em que vivemos é algo mais do que uma época de superstição - é uma época de superstições que não acabam mais." (G. K. Chesterton, em "Eugenia e Outras Desgraças", 1922)

Uma das características de nossa época é a secularização. Este fenômeno se define pela subtração de expressões religiosas da sociedade, tanto na esfera pública quanto privada, como nas artes, na literatura, nos princípios que regem a vida comunitária e familiar, na prática da oração, na visão de mundo das pessoas e assim por diante.
Apesar da era moderna ser muito mais secularizada que as anteriores, o impulso humano de uma busca espiritual não desapareceu e nunca desaparecerá.
O homem é essencialmente religioso. Em todas as épocas e lugares, buscou respostas aos dilemas existenciais básicos: por que estamos aqui, qual é o sentido da vida, de onde viemos e para onde vamos, há vida eterna ou não, etc.
Nossa época não é diferente. Ocorre, porém, que as pessoas se afastaram de Deus e adotaram toda a sorte de loucuras que parecem responder aos seus dilemas, ao exemplo das ideologias ou, pior ainda, dos moralismos da moda corrente, que mudam constantemente numa torrente que cega e embebeda almas carentes.
O sociólogo Peter Berger observa que, hoje, a fé religiosa vive, mas de forma desinstitucionalizada. Ou seja, a maioria das pessoas crê em Deus ou num Ser superior, mas não se vincula a uma igreja ou comunidade. Crê em seus próprios termos.
Assim, as superstições brotam, aqui e ali, como substitutos do impulso religioso carente de Deus, mas que perdeu o caminho para encontrá-Lo.
Em 1922, em "Eugenia e Outras Desgraças", Chesterton já observava a multiplicação de superstições. Imagine o que ele encontraria hoje, um universo de superstições das mais rasteiras, como a crença, por exemplo, de que estamos em sintonia com o Universo ao tentarmos "salvar o planeta" ou toda a sorte de cultos pagãos coletados, ora em ritos orientais, ora da própria cabeça.
Bêbado, perdido e desesperado com a confusão do mundo atual, o homem se debate com seus erros na busca por um rumo até que, por graça da providência, encontre o caminho de casa.

sábado, 10 de outubro de 2020

O sistema moderno contra a família

"O mundo ao nosso redor aceitou um sistema social que nega a família. Às vezes, ajudará à criança em vez da família; à mãe em lugar da família; ao avô em lugar da família. Mas ajudará a família." (G. K. Chesterton, "G.K.'s Weekly", 1930)

Ainda que a família seja uma instituição natural que esteja distribuída em praticamente todas as culturas nos quatro cantos da Terra, variando sua estrutura, há uma tensão entre esta ordem e o impulso dos desejos humanos de romperem com ela.
Pois o homem, na sua animalidade, não busca a família, mas a concretização de desejos. A fidelidade no casamento é obra da perseverança e da fé; deixadas à própria vontade, as pessoas fariam da fidelidade uma ficção, e a família seria impossível.
Mas o grande problema está justamente na promoção por meio da mídia e da reinterpretação das leis destes mesmos desejos. Por exemplo: ao tornar o casamento um evento civil, o Estado arroga para si os efeitos reais do casamento, esvaziando parte de seu sentido espiritual. E nas cortes, a concepção de "casamento" e família são alargados para implementar, à revelia da maioria da população, a agenda diversitária.
Aos poucos, a mentalidade progressista vai minando o casamento por dentro e, por consequência, a própria família, cuja destruição pode muito bem ocorrer através da promoção dos interesses de seus membros.
É o que Chesterton enuncia nesta passagem do seu semanário "G.K.'s Weekly", publicado há 90 anos, em 20 de setembro de 1930.
A crítica acadêmica e midiática à ordem patriarcal (e tudo o que é classificado de "patriarcal"), a denúncia de crimes violentos apenas contra determinados grupos sociais, o moralismo politicamente correto e toda a sorte de propaganda de comportamentos que insuflam a infidelidade e o desejo de ser "livre", no sentido estrito que o liberalismo dá à palavra, concorrem para formar uma atmosfera onde a formação da família é cada vez mais difícil.
Colocar uma criança na escola, por exemplo, é arriscá-la a um conflito com os pais. A obrigatoriedade da educação pode ajudar a criança em algum aspecto, mas não a família, atentando contra a criança mesma.
Não por acaso, Chesterton afirmava que a educação moderna considerava os pais a maior ameaça às crianças. Em nome da proteção a elas, é necessário dissolver o pátrio poder.
Proteger o casamento e as crianças é proteger a família. E por isso mesmo a mentalidade progressista, encarnada num sistema pervertido, atenta contra crianças e casais a fim de melhor educá-los para uma sociedade dirigida.