quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Progressismo: o novo totalitarismo


A narrativa progressista consiste em considerar que a moral humana evolui linearmente ao longo da História. "Evoluir", aqui, é "superar" os comportamentos do passado e substituí-los por novos e melhores. Um exemplo: se no passado homem e mulher casavam, hoje qualquer um pode "casar" com quem bem entender (ou com quantos quiser), dado que o casamento homem-mulher tornou-se "superado", algo do passado, portanto, "retrógrado"; outro exemplo: hoje as questões ambientais estão em voga, coisa que ninguém dava bola no passado, mas qualquer crítica às suas causas causam frenesi e condenação dos mesmos progressistas, mesmo que a causa seja posta em questão pela simples dúvida de sua necessidade. Os que afirmam a existência das mudanças climáticas são cientistas, os que não afirmam são considerados "céticos".

Por isto os que possuem esta mentalidade se denominam "progressistas", porque se consideram adeptos da ideia de que a História "evolui" e "supera" as coisas do passado. E é exatamente por isto que os progressistas são essencialmente intolerantes: como a História não é mais guiada pela Providência ou pela real liberdade humana (que pode hora determinar mudanças de comportamento, hora preservar ou resgatar hábitos passados), a História mesma, em sua concepção linear, tornou-se um credo, e não há pecado mais mortal do que ir na contramão da História, ao custo de criar enorme sofrimento para a humanidade. Derrubada a Providência, a História virou deus, a toda-poderosa que exige que caminhemos com ela.
Progresso linear existe, porém, na ciência, que se desenvolve sobre conhecimentos já alicerçados no passado, ou no desenvolvimento da técnica, que melhora o que já existe. Já a mentalidade progressista idolatra o tempo e condena quem está fora do seu tempo. Para os progressistas, estamos condenados a caminhar "para frente", do contrário devemos ser condenados por contribuir para o sofrimento da humanidade. Isto, porém, não é progresso. É totalitarismo.

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Míchkin, o príncipe que eu não fui

(Yevgeny Mironov, ator russo que interpreta o príncipe Míchkin na série "O Idiota", de 2003, baseado no clássico homônimo de Dostoiévski.)

          Ao terminar nas últimas semanas a leitura da obra "O Idiota", de Fiódor Dostoiévski, me pus a chorar por um tempo. Foi a segunda vez na minha vida que chorei ao ler um livro.

          O primeiro caso foi em meados de 2001, quando li "A Profecia Celestina", de James Redfield. A diferença é que na época, aos vinte anos de idade, eu tinha uma concepção completamente diferente da vida, na verdade uma concepção fantasiosa onde ansiava por realizações então impossíveis e um mundo por demais idealizado tal qual na obra new age do autor norte-americano.  

          Passados dezoito anos, atravessei anos em salas de psicanálise, deitado ao divã, mas que fora vital para o sustento de minha sanidade mental. Neste meio tempo, voltei à Igreja Católica, ingressei num grupo de oração dentro do qual vivenciei experiências apaixonantes e libertadoras, troquei a psicanálise pela Terapia de Integração Pessoal segundo o método de Abordagem Direta do Inconsciente e fiz tratamento com uma psiquiatra. Tive alguns empregos, estágios, fiz uma infinidade de cursos, tive três namoradas (a primeira antes da leitura do livro). O resultado disto foi a saída de um verdadeiro inferno pessoal que engolfou minha vida até perto dos vinte anos de idade, e que vinha há gerações destruindo a felicidade de parte da minha família. Sem esta caminhada lenta, trabalhosa e tortuosa, muito provavelmente não estaria escrevendo este texto, mas preso num hospital psiquiátrico ou na cadeia, quem sabe até mesmo numa vala, possível destino final da loucura que se apossava de minha pessoa e tornava cada vez mais inviável qualquer realização pessoal por mais simples que fosse. 

         O livro de Redfield era a expressão de um vida ideal que o livro revelava. No fundo, porém, eu era perdido demais para sequer dar o primeiro passo na conquista deste sonho. Eu vivia apenas de sonho: sonhava com um emprego que me daria independência e que eu gostasse, sonhava em me apaixonar e casar com a mulher certa, sonhava com liberdade pessoal. Coisas da adolescência sem pés no chão e que encontrou na obra um ideal de vida dando vazão para meu paraíso interior. Na impossibilidade de realizar tudo aquilo, só me restava chorar um sonho que se apresentava em forma de enredo espetacular.

          Lev Nikolaiévitch Michkin, o personagem principal de Dostoiévski no romance "O Idiota", é um homem profundamente bom, sábio, mas que sofria de um tipo de esquizofrenia que se manifestava em crises sem hora marcada. O histórico de dificuldade de aprendizado e a ingenuidade quase santa do personagem conferiam a ele o epíteto de "idiota" dentre as demais pessoas que, surpreendidas com as súbitas declarações acerca de sua experiência de vida e com a forma peculiar com que se portava no tato com os outros e com situações de conflito, descobriam que Míchkin não era idiota coisa alguma, e sim o mais sábio entre todos aqueles que elas conheciam. Todas os que conviviam com o príncipe passavam por algum tipo de melhora de personalidade, como se a luz emanada de seu coração puro e as palavras ditas com sinceridade penetrassem na alma das pessoas executando uma misteriosa operação de cura interior. Poucos resistiam à bondade do personagem. 

          Obviamente, tal personalidade não poderia deixar de atrair os desejos femininos. A sabedoria, a excentricidade e a simplicidade do príncipe conquistaram os corações da aparentemente ingênua Aglaia Ivanóvna, moça aristocrata de humor sarcástico que testava permanentemente a sinceridade de Míchkin, e a intensa, confusa e pouco confiável Nastáscia Fillípovna, mulher desgarrada de má fama que vivia às custas de homens que a desejavam ardentemente. 

          Ademais, o príncipe era herdeiro de uma fortuna deixada por parentes distantes e estava em viagem à Rússia para buscar a fortuna. Vindo da Suíça, saíra da internação para tratamento e foi em busca não só do dinheiro, mas involuntariamente de uma vida nova que se revelou nos poucos meses em que ficou na pátria amada. Com a saúde melhor, dinheiro guardado e uma nova rede de amizades (por vezes nem tão confiáveis), o príncipe tinha razões de sobra para uma vida feliz na São Petersburgo da década de 1860, além de ter aos seus pés duas beldades que mexiam com o imaginário dos homens, dos mais medíocres aos mais ambiciosos, como Semeon Parfiénovitch Rogójin, amigo e criminoso que, entre idas e vindas, quase tirou a vida de nosso personagem.

          Mas tenho de deixar de lado muitos outros pontos do enredo, como as discussões políticas e existenciais dos profundos e complexos personagem de Dostoiévski. O que importa aqui é o final da trajetória do príncipe Míchkin. Rogójin, que o príncipe conhecera ainda no trem de ida à Rússia, disputava o coração de Nastáscia a todo o custo e, na ânsia de dar por encerrado a disputa e seus dilemas emocionais, acabara por assassiná-la depois que ela fugira do casamento com o príncipe. Rogójin foi exilado na Sibéria e Míchkin, chocado e anestesiado com a atitude do amigo e adversário, encaminhado de volta à internação na Suíça. 

          Em estado de choque com a morte de sua quase-noiva por um homem que ingenuamente confiava, sem Aglaia, a outra pretendente que decepcionara profundamente, sem a capacidade poder usufruir de sua herança e longe do país que amava, o príncipe acaba novamente doente e inepto sob os cuidados do Dr. Schneider, o primeiro a considerá-lo "idiota". Sob o olhar compassivo e dramático de Lisavieta Prokófievna, mãe de Aglaia, que não suportava vê-lo neste estado de sofrimento, Míchkin não reage, enquanto a velha matriarca chora seu sofrimento. 

          Não fosse a psicanálise, a Igreja Católica, o Grupo São José, a TIP e o apoio chave de algumas pessoas nestes meios, eu seria, na melhor das hipóteses, um novo Míchkin, com a diferença de que nada herdaria e muito menos possuo qualquer título de nobreza. A obra de Dostoiévski é a expressão daquilo que me livrei, do calvário para o qual deixei de peregrinar. Deixei de ser excessivamente ingênuo e um "idiota", no sentido real da palavra. O príncipe Míchkin é realmente um personagem cativante. Por vezes desejei ser como ele é, mas seu destino revelou aquilo que eu poderia ser e não fui. Pela graça de Deus.          

domingo, 26 de maio de 2019

A medida do sucesso


           Ultimamente tenho passado, dito de forma suave, por um período da vida sem qualquer inspiração. Não sei dos propósitos das coisas que faço (mesmo que tenha consciência deles, mas não me penetram no coração), não tenho muito ânimo para resolver as coisas do cotidiano e há um bom tempo abdiquei de alguns sonhos, ao menos temporariamente.

          Na vida moderna somos ensinados, como jumentos atrás da cenoura, a idolatrar o sucesso profissional e a paixão amorosa. Agora me pergunto: quem consegue atingir estes objetivos? Quem faz o que realmente gosta e ganha fortunas com isso? E quem consegue viver uma paixão duradoura e sem conflitos? Evidentemente tais ideias são mentira. Não que eles não sejam possíveis, pois até são, mas porque a grande maioria das pessoas se frustra nesta busca e, pior de tudo, aprisiona o sentido das suas vidas a duas linhas de chegada transformadas em miragem de felicidade.

          Se na vida o que vale mesmo é o sucesso no trabalho e no amor, do que vale a conquista quando realizadas? O sucesso encerra-se em si mesmo e só pode ser substituído por uma nova busca e uma nova conquista. É um ciclo sem fim interrompido apenas pela morte, a causa única do fim de todas as lutas e conquistas. Os ideais de sucesso fecham a pessoa nas coisas do mundo, e tem sido assim nas últimas gerações, que afastaram de suas vidas agitadas a consciência da morte e o teatro profundo e oculto dentro do qual as lutas e conquistas se desenrolam. Decaído os ideais da alma que antes buscavam a perfeição e o Céu, a honra e a dignidade, resta-lhes mirar e lutar pelos ideias do mundo, que valem tanto quanto valiam antes de nós nascermos: nada. 

          As lutas cotidianas têm de ser absorvidas na perspectiva da morte, isto é, tratadas como lutas por um legado no mundo e para que não nos arrependamos ao chegarmos ao fim da vida, seja no leito de morte, seja no Tribunal diante do qual veremos a Deus e a nós mesmos exatamente como somos, com todas as suas belezas e terríveis feiuras. Quanto melhor fizermos nosso trabalho ao longo da vida, mais luminosa será nossa beleza e menores serão nossas feiuras. É a alma que brilha. O corpo morre. 

          O sucesso profissional e a felicidade no relacionamento fariam sentido se a vida se fechasse com a morte. Mas é justamente o mistério da morte a medida justa da busca destas conquistas, tornando-as relativas de acordo com os princípios e o amor com que são realizadas. Nos últimos momentos, será a beleza do que fizemos que contará, bem como a forma com que seremos lembrados, aqui e no outro mundo.