quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Os bárbaros e a apologia de tudo o que não presta

          Não é preciso ser um gênio, intelectual ou analista para ver o estado das coisas hoje, onde toda e qualquer porcaria, como música e cinema para fins comerciais, programas de baixo nível e ideias malucas, são promovidas como cultura "elevada", algo a ser apreciado pela população, enquanto sua natureza é exatamente o contrário.

          Este é o alerta, a denúncia em forma de manifesto, que o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos apresenta em seu livro A Invasão Vertical dos Bárbaros

          No início da obra, Mário define quem são os bárbaros e esta "invasão vertical". O bárbaro está associado à ideia de estrangeiro, cuja origem remonta ao período do Império Romano. Foram os bárbaros do norte da Europa que ocuparam gradualmente seu território. Sendo o Império a civilização por excelência, o bárbaro era aquele que vinha para ocupar e destruir a civilização. Esta é, portanto, uma invasão horizontal, geográfica.

          Mas há uma invasão vertical: aquela que "penetra pela cultura, solapando seus fundamentos" e promovendo a corrupção desta mesma cultura. O que é baixo, mesquinho, o que não presta é promovido à representação da cultura mesma, dos valores elevados que são fundamento da ordem social e da civilização enquanto, na verdade, é manifestação de sua destruição.

          E qual é a cultura que hoje está em destruição? A cultura cristã ocidental, cuja cosmovisão está centrada na manifestação do cristianismo em suas dimensões espirituais e culturais com todas as consequência daí decorrentes.

          Mário Ferreira dos Santos apresenta uma séria de fenômenos culturais e sociais que denunciam esta decadência cultural promovida pelos bárbaros de hoje, como a valorização da animalidade, a exaltação da força, o culto ao feio, a sobrevalorização do corpo sobre a mente, do visual sobre o auditivo, da força sobre o direito, da sensualidade, dos sentimentos e impulsos primitivos, e assim por diante.

          Mas uma consequência desta invasão é universalmente visível e, portanto, perceptível por todos: a valorização do inferior. 

          Para não deixar dúvidas das consequências e do que significa valorizar tudo o que é inferior, baixo, imbecil e rasteiro, transcrevo aqui um trecho do livro, cujas conclusões são facilmente tiradas pelo leitor.

          A obra foi escrita em 1967, um ano antes de Mário morrer. Se ele já estava horrorizado com as mutações sociais de sua época, imagine o que nosso grande filósofo diria hoje, onde a valorização de tudo o que não presta dominou de forma absoluta a cultura de massa e alijou qualquer menção às coisas elevadas, às bases da civilização.

          Repare que cada comentário, cada linha, cada palavra é muito representativo da realidade do Brasil e, ao que parece, infelizmente, de grande parte do mundo.

          É contra esta decadência geral, esse estrume em massa que Mário se ergue; e é com sua ajuda e a ajuda de Deus que temos de lutar diariamente, através de um esforço intelectual sincero e uma vida espiritual profunda, para preservar o que ainda há de bom em nossa cultura e disseminar seus frutos entre as pessoas.

          A VALORIZAÇÃO DO INFERIOR

          "Há uma valorização desenfreada que se faz na baixa dos valores. Não se trata apenas de uma desenfreada especulação no que é baixo (crime, delinquência, vício, sensualismo excessivo, acentuação das formas viciosas, baixa literatura, supervalorização do herói popular, afagado pelas multidões e recebendo as mais altas pagas, etc), mas, sobretudo, pela inversão que se faz de tais valores, a ponto de ser pretender estabelecer que o mais alto consiste em ser o mais baixo.

          (...)

          Vejamos alguns exemplos. O que, devido à sua fraqueza e à sua ignorância, ou movido pela sua concupiscência, é capaz de realizar um ato de certo vulto passa a merecer um tratamento que eleva e dá a parecer que houve grandeza em sua ação. Por exemplo, a valorização da história de gângsteres, de criminosos vulgares e cruéis, como se isso representasse uma vitória sobre a fraqueza.

          (...)

           A honestidade é vista como algo ridículo, e o homem crédulo, o homem de boa fé, o homem digno, é motivo para programas humorísticos. Grande parte dessas figuras é apresentada como sendo verdadeiros hipócritas, que, na hora precisa, lançam mão do alheio. A intenção é clara: pôr a dúvida sobre a decência, sobre a honestidade, sobre a honra (palavra quase inaudita, menos ouvida hoje do que nunca). Não se respeita mais a honorabilidade de ninguém. Há sempre quem ponha dúvida sobre a decência e, quando alguém pretende apresentar alguém como exemplo de dignidade, o menos que se houve a volta é 'Será? A gente não sabe...' e as reticências ocultam claras intenções. A dúvida é instaurada, e não demora muito que algum mais afoito já diga que ouviu dizer que... e conta, sem assumir responsabilidade, que dizem... 'não sei se é verdade'.

          (...)

          O golpista torpe gosta que se contem casos de grandes golpes de afortunados larápios para justificar ante os filhos a sua vida viciosa. O homem de vida viciosa cita vícios romanos e de todos os povos numa acentuada manifestação de 'cultura histórica' e tem na ponta da língua longas descrições de fatos históricos. O lar, que está às portas de desfazer-se, encontra, nos exemplos dos lares que se desfazem, um apoio: 'este não é o primeiro...'"


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Câmeras, microfones e juízes

          Muitos devem ter notado o julgamento arrogante com que a imprensa brasileira trata as pessoas neste período de crise do covid-19.

          Quando ligamos a televisão vemos o noticiário aparece recheado de informações sobre medidas preventivas contra o vírus, números de mortos e infectados e, claro, denúncias de "mau" comportamento. 

          E quais são os maus comportamentos? Principalmente aglomeração, seguido pelo não uso de máscara, festas "clandestinas" e outras displicências proibidas pelas autoridades locais e chanceladas pelos mesmos denunciantes em frente às câmeras. 

          Reparem no termo geralmente usado para se referir ao "mau" comportamento: "desrespeito", "falta de respeito" e equivalentes. Sempre num tom de censura, feita por aqueles que, munidos de meios técnicos para chegar às casas de milhões de pessoas, apontam com dedo em riste, do tribunal de sua arrogância infinita, quão estúpido e imoral é você! que não sabe o que faz para si e para os outros.

          Aqueles que não seguem as regras de decretos impostos à canetada, do dia para a noite, estipulando as coisas mais absurdas como proibir aglomeração de certo número de pessoas ao ar livre (ou mesmo em áreas privadas!), em parques, praças, e mesmo nas ventosas praias; obrigar a usar máscara ao pisar fora de casa, na rua, mesmo estando sozinho; ou impor toque de recolher a partir de determinado horário; estes são os desrespeitosos, os violadores, os que simplesmente não tem empatia com a vida alheia.

          Vamos listar algumas notícias dos porta-vozes da moralidade, das pessoas maravilhosas que escrevem nas redações?

          Bares de Porto Alegre têm noite de aglomerações e desrespeito às novas restrições contra a covid-19.

          Desrespeito às medidas contra a Covid-19 é registrado em cidades por todo o país.

          Covid-19? Feriado lotado com desrespeito e inconsequência em Cabo Frio.

          COVID-19: A demonstração do escárnio de muitos brasileiros com o avanço da pandemia.

          Mais um domingo de desrespeito às normas sanitárias de combate à pandemia.

          E, para encerrar, uma chamada do grupo de imprensa mais humilde do Brasil: Insensatez e arrogância coletiva que nos expõem a riscos.

          Reparem no vídeo da segunda reportagem referida acima, do "Fantástico", a quantidade de vezes em que as pessoas são censuradas com a palavra "desrespeito", o tom de voz das jornalistas no "lamento" pelos comportamentos e a feição de reprovação no rosto da apresentadora.

          O constrangimento e a denúncia moral do comportamento alheio chegou até mesmo à "ciência". Um estudo brasileiro teria mostrado que pessoas que não adotam medidas contra o covid-19 são antissociais, sociopatas. Sociopatas!

          Os casos que citei acima foram colhidos de forma mais ou menos aleatória. A quantidade de notícias denunciantes contra todo o tipo de pessoa comum é infindável. 

          Nada mais arrogante no Brasil do que os iluminados, as pessoas maravilhosas de mente aberta munidas de um microfone com uma câmera à frente. Eles são os juízes; você, um criminoso, um potencial assassino disposto a morrer e matar os outros por um simples prazer no final de semana.

           

sábado, 5 de dezembro de 2020

A tirania das oligarquias

"Em uma oligarquia as personalidades têm mais importância que os direitos, e os cartões de visita têm mais peso que as cédulas de voto." (G. K. Chesterton)

Em 1989, o cientista política Francis Fukuyama escreveu um artigo chamado "O Fim da História", em que previa o alastramento dos regimes democráticos pelo mundo.
Meses depois, houve a queda do Muro de Berlim, seguida pela queda dos regimes comunistas na Europa Oriental e, por fim, o desmantelamento da URSS em 1991. Fukuyama foi visto como "profeta", e lançou um livro com o mesmo nome do artigo em 1992.
Os regimes democráticos seriam baseados na igualdade jurídica de todos para com todos. Sua expressão mais evidente seria o voto; e os desejos humanos seriam canalizados para o desenvolvimento econômico e a realização pessoal.
Mas será mesmo que esta igualdade jurídica e o poder do voto são reais como esperava Fukuyama que, diga-se, se tornou um ideólogo do liberalismo ocidental?
A afirmação de Chesterton que reproduzimos aqui mostra aqueles que talvez seja o problema mais grave nas democracias. Mais relevante ainda é a afirmativa ser do início do século XX, quando o poder oligárquico das grandes fortunas era muito menor do que hoje.
Pois o que assistimos nos últimos anos é a emergência de mega oligarquias através da fusão de grandes conglomerados. Apenas seis famílias comandam toda a grande imprensa americana; um punhado de bilionários, aliados ao governo, comanda a Rússia; bilionários chineses trabalham submissos ao Partido Comunista; e empresas de tecnologia, transporte, comunicação e todo o tipo de produtos, de alimentos a eletrônicos, realizaram múltiplas fusões na Europa e EUA dos anos 1990 para cá.
Neste mesmo período, a narrativa do triunfo da democracia tomou a consciência dos acadêmicos, jornalistas e políticos. Transformou-se em dogma.
O dogma democrático se consolidou exatamente ao mesmo tempo em que grandes corporações, inclusive as associadas às ditaduras russa e chinesa, tomaram a vanguarda do poder econômico global.
Por isso Chesterton já alertava da contradição e, diria mais, da incompatibilidade entre os aspectos oligárquicos de uma sociedade e com sistemas democráticos.
As oligarquias são compostas por aquele que nosso escritor nomeou de Homem Incomum. É ele que, tomando as rédeas do sistema jurídico que deveria proteger o Homem Comum, acaba por sabotá-lo em nome da lealdade corporativa.
No fim das contas, o fim da História é muito mais a chancela de legitimidade de domínio oligárquico sobre o mundo do que o estabelecimento jurídico da dignidade do Homem Comum, mero instrumento na aliança tirânica entre Estados e grandes conglomerados.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O que é a verdade? Nota de "O homem do castelo alto"

(Personagem Juliana Frink, interpretada pela atriz Alexa Davalos no seriado "The Man in the High Castle", baseado na obra de Dick.)

          A obra "O homem do castelo alto", de Philip K. Dick, é uma daquelas que só revelam seu real sentido nas últimas páginas. 

          Ambientado numa história alternativa, onde a Alemanha nazista e o Império do Japão haviam vencido a Segunda Guerra Mundial, o enredo se desenrola revelando uma rede de relacionamentos entre personagens envolvidos em intrigas políticas e vivências conflituosas. A teia é representativa dos poderes políticos que governam o mundo e insinua-se numa sociedade estratificada em raças.

          Os personagens vivem num ambiente repressivo e artificial e a todo instante buscam respostas sobre a verdade em suas vidas através de constantes consultas ao I Ching e da leitura da popular obra O Gafanhoto Torna-se Pesado

          Este livro de ficção apresenta de forma contagiante como seria o mundo se alemães e japoneses tivessem perdido a guerra. Seu autor vive num local chamado Castelo Alto e estaria recluso para evitar retaliações de possíveis atentados.

          Há, portanto, uma tensão que perpassa toda a narrativa, o conflito entre a artificialidade de um mundo dominado por dois impérios opressores e a sensação de que a verdade se revela insistentemente mas escapa por entre os dedos dos personagens. 

          O enredo se desenrola em 1962 num EUA divididos entre a porção oeste dominada pelo Japão, o centro e leste dominado pela Alemanha e a região das Rochosas como território neutro.

          Alguns dos personagens principais protagonizam a estranha vida em São Francisco e nas Rochosas americanas: Robert Childan, dono de uma loja de objetos antigos que tem como seus clientes japoneses ricos, sendo o principal deles o sr. Tagomi, Adido Comercial do Japão na costa do Pacífico; Frank Frink, judeu que havia servido no exército americano durante a guerra, perdera o emprego numa grande empresa e começava a trabalhar na confecção de pequenas joias metálicas; Juliana, sua ex-mulher e instrutora de judô, que conhecera o estranho Joe Cinadella, ex-combatente italiano na guerra e que secretamente trabalhava para o Reich; o misterioso sr. Baynes, nome falso do capitão da contra inteligência alemã Rudolph Wegener, viajando em missão especial para se encontrar com Yatabe, velho general japonês da guerra com contatos no governo de Tóquio.

          Todos eles, em algum grau, experimentam a falsidade do mundo. Seus problemas cotidianos têm raízes na dúvida sobre a veracidade das formas de vida adotadas dentro das limitações que os impérios lhes impunham: Childan lida com problemas sobre a autenticidade de suas peças para venda e tem dificuldade de conviver os japoneses que levam um estilo de vida americanizado; Frank, um judeu, vive escondendo sua real identidade e busca, com o amigo Ed McCarthy, um novo trabalho que dê um real sentido à sua vida; sua ex-mulher, Juliana, vive relacionamentos que nunca dão certo e se vê implicada numa trama secreta ao conhecer Joe, cuja identidade é revelada só mais tarde; o sr. Tagomi também se vê enrolado num conflito político muito maior do que é capaz lidar e que envolvem o alto escalão do Reich e do Império Japonês, nos quais Baynes e Yatabe são protagonistas.

          O contexto da trama está inserido nas disputas de poder do Terceiro Reich: com Hitler demente e internado, o grande império alemão é comandado por Martin Bormann. Sua morte desencadeia uma luta pelo poder em Berlim, tendo de um lado uma facção liderada por Goebbels, o chefe de propaganda, e Heydrych, líder da facção rival. E reflexos desta disputa ressoam na distante San Francisco.

          No mundo, os alemães e japoneses impõe uma ordem totalitária que estratifica as sociedades segundo raças pré-classificadas. Porém, é do lado alemão que se pratica toda a sorte de horrores em nome da mística totalitária do regime nazista: toda a população africana está num processo de eliminação física e seus restos mortais são utilizados para fins comerciais; boa parte dos eslavos são assassinados e os remanescentes expulsos à Sibéria; ingleses, americanos e latinos são subjugados e divididos em categorias, os negros ainda vivos trabalham como escravos e idosos são assassinados. A menina dos olhos do regime são as missões colonizadoras para Marte e Vênus tripuladas por alemães devidamente selecionados segundo o ideal da raça ariana. 

          E, por debaixo do pano, revela-se o plano de uma guerra nuclear contra o Império do Japão a fim de eliminar toda sua população e dar à Alemanha o domínio do mundo.

          É esta realidade falsa forçadamente construída sob a loucura dos nazistas e do artificial domínio japonês que vivem os personagens. Suas vidas são tão falsas quanto a realidade social politicamente construída. Cada relacionamento, cada contato reflete o desajuste e a tensão entre um mundo que é e o que deveria ser, entre a realidade criada e a verdade latente nas passagens do I Ching, constantemente consultado pelos personagens para orientar suas condutas; uma janela para o mundo verdadeiro.

          A apoteose da obra está no confronto de Juliana com Abendsen, autor de O Gafanhoto, onde descobre que o livro fora escrito segundo as ideias do misterioso autor, mas por decisão e orientação direta do I Ching. Seu enredo era, portanto, ação da velha sabedoria oriental e não da cabeça de um homem comum.

          Abendsen era mero instrumento de uma tradição de cinco mil anos, mas incapaz de acreditar que o conteúdo de seu próprio livro. O Gafanhoto versava sobre um mundo onde os aliados haviam vencido a Segunda Guerra, uma realidade parecida com o mundo atual e sonhada por aqueles cansados da opressão permanente. Era a apresentação do mundo livre, sonhado pelos personagens, mas silenciado pelas autoridades.

          Os questionamentos de Juliana contrariam o escritor, que se vê amargurado com a própria obra e se recusa a ver a verdade ali revelada preferindo dar as costas ao que escrevera e aceitar o mundo falso criado pelos impérios onipresentes. 

          O homem do Castelo Alto, na recusa em aceitar a revelação do I Ching em sua própria obra, é como Pôncio Pilatos na recusa em ver a Verdade no exato instante em que pergunta ao Verbo Encarnado o que é a Verdade mesma. Não podendo suportar Sua presença, A ignora.

          Este é o verdadeiro impacto da obra de Dick que, muito além da excelente trama, parece apresentar que toda sua narrativa é, na verdade, uma história de mentira onde nada daquilo havia mesmo acontecido. Talvez Juliana, Abendsen, Frink, Tagomi, nenhum deles tivesse vivido o que viveram. 

          Mas a possível falsidade de toda a narrativa do livro mostra a tensão entre o verdade revelada na conversa entre Abendsen e Juliana e o mundo falso construído por regimes totalitários de dentro do qual ambos viviam. 

          O enredo vai ainda mais longe: se esta história alternativa do mundo foi possível (e ainda é, mas sob outras formas de tirania), da mesma forma nossa história pessoal pode ter algo de falso, de artificial. Existe uma tensão entre a realidade que nós vivemos e a verdade que se esconde por detrás dos acontecimentos e que se revelam em acontecimentos cotidianos de nossas próprias vidas. 

          Philip Dick apresenta a necessidade de alargamento e aprofundamento da consciência para compreender muito mais do que o mundo, mas a verdade a ele subjacente. Este é um exercício típico da vida religiosa, onde o mergulho espiritual na própria vida e na existência do mundo nos leva à abertura para o sentido profundo de nossa caminhada diária. 

          Por mais que o homem insista em negá-la por trejeitos, artificialidade ou mesmo a força bruta, a verdade insiste em falar desde dentro da alma. E a literatura, graças à habilidade e sensibilidade de gênios profundos, tem a capacidade de expressá-la e  fazer contato com aquilo que temos dentro de nós mas somos incapazes de apresentar por palavras.

          "O homem do castelo alto" é, certamente, uma surpreendente revelação.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Os críticos legítimos do poder

 "A verdade é que apenas homens para quem a família é sagrada podem atingir um padrão ou parâmetro que lhes permite criticar o Estado." (G. K. Chesterton, em "O Homem Eterno")

Criticar o Estado implica em duas coisas: saber do que se fala e ter legitimidade para falar o que se fala.
O Estado é uma estrutura de poder que organiza uma autoridade, cuja cabeça varia ao longo dos anos.
Ora, criticar o Estado é questionar sua autoridade (ou daqueles que a detém no momento), o que implica, em contrapartida, se considerar capaz do mesmo papel que a autoridade constituída.
Só homens maduros podem, de forma legítima, criticar o Estado desde que, claro, este mesmo Estado seja dirigido por homens maduros.
A maturidade pressupõe a capacidade de tomar decisões por conta própria e assumir suas consequências, e nenhuma decisão é mais séria, permanente e profunda do que decidir por constituir uma família.
Esta defesa que Chesterton faz da autoridade da família em "O Homem Eterno" baseia-se numa visão típica de toda sua obra: a veracidade que pressupõe um empreendimento tão natural como a união de um homem e uma mulher com seus filhos.
A família dá ao homem o encargo da decisão sobre vidas, cujos frutos virão, em grande parte, da forma como sua autoridade é exercida.
Diria mais: a própria vida gerada é o fruto da decisão, um fruto material inegável.
Portanto, são autoridades de famílias que podem questionar legitimamente a autoridade do Estado, pois ambos são análogos, o que torna compreensível o que é e o que faz o Estado com sua vida e a dos outros.
A crítica ao Estado também se estende àqueles os quais não têm família, mas a consideram sagrada, pois reconhecem a importância de sua existência, a começar por aquela que os gerou e sem a qual sequer poderiam emitir uma opinião.
Não por acaso, o pátrio poder é o grande obstáculo às pretensões estatais de se apoderar de tudo e de todos.
O credo contemporâneo, calcado na moralização (ou imoralização) da sociedade por meios jurídicos e legais, encontra limites em famílias cujos membros compreendem o limite do poder estabelecido e de sua ação.
Pais e mães firmes, bem como pessoas devotas a honrar seus nomes, sabem que o devido respeito à autoridade começa em casa, e que o palácio é apenas uma extensão, por vezes ilegítima, de um poder que depende indelevelmente daqueles que decidem por gerar novas vidas.

domingo, 22 de novembro de 2020

Os engenheiros sociais do covid-19

 

          As medidas de contenção da propagação da covid-19 têm algo de no mínimo curioso, pois partindo da perspectiva de que o isolamento social seria uma medida eficaz para essa contenção, prefeitos, governadores, burocratas e jornalistas de plantão apoiaram ações um tanto esquisitas. 

          Por exemplo: em várias cidades do Brasil, como aqui em Porto Alegre, restringiu-se os horários e o número de ônibus em circulação para desestimular as pessoas saírem de casa e aumentar o isolamento social. Mas quem tinha necessariamente de trabalhar, porque não teve seu estabelecimento fechado por decreto e necessitava simplesmente sobreviver, foi obrigado a esperar horas nas paradas de ônibus e se enfiar numa condução lotada. Realizou-se justamente o contrário do que se desejava evitar.

          O mesmo ocorreu no comércio. Na reabertura dos serviços "não essenciais" (eufemismo para quem não depende de negócios "dispensáveis", segundo a cabeça iluminada de governadores, prefeitos e jornalistas), restringiu-se o horário de abertura das lojas para evitar aglomerações. 

          Ora, se as pessoas não devem se aglomerar, então o horário deveria ser estendido, e não restringido. Deveria ser tomada a medida inversa.

          A lógica dos ônibus e das lojas pressupõe que as pessoas tomam decisões com base na limitação de tempo, e não em suas necessidades e vontades pessoais. É exatamente isto a que chamamos de engenharia social, a tentativa de moldar o comportamento da sociedade por medidas administrativas, pressupondo que as decisões pessoais são tomadas em vista do quadro geral da situação.

          Mas não: as pessoas tomam decisões com base em necessidades e desejos imediatos dentro de um quadro de conhecimento limitado. O imediatismo cotidiano é o principal fator de peso nas escolhas.

          A professora e o médico não deixarão de comprar uma camiseta porque a loja de roupas teve horário de funcionamento reduzido por decreto; eles irão quando a loja estiver aberta. Do contrário, não conseguirão o produto. 

          Ou por acaso vocês não se recordam de decisão estúpida da prefeitura de São Paulo em bloquear as principais avenidas da cidade para diminuir a circulação de carros e aumentar o isolamento social? As pessoas saíram de casa a trabalho buscando outras vias e engarrafaram as que estavas livres. A genialidade dos fanáticos pela engenharia social é impressionante.

          Este é o resultado da combinação de burrice com tirania, combinação que define muito bem o perfil dos auto aclamados engenheiros sociais.

          Como a classe política brasileira é estúpida, mas não suicida, a medida inversa foi tomada nas eleições municipais deste ano: estendeu-se o horário de votação para evitar aglomerações dos grupos de risco e supostamente evitar a propagação do covid-19. Medida acertada, mas evidentemente contrária a tudo o que fora feito até então pois, afinal, a extensão do período do votação afetava diretamente a própria classe política.

          O que vimos neste 2020, tanto no Brasil quanto no mundo, foi a expansão formidável do poder político no controle das liberdades civis mais fundamentais. É da natureza do poder político crescer indefinidamente para tudo administrar sendo apenas barrado por pressupostos e valores que quase sempre surgem de instâncias não políticas, como a vida religiosa, familiar e comunitária.

          A engenharia social do momento força o isolamento das pessoas desmontando o tecido social. O indivíduo se vê isolado perante um poder onipresente e todo poderoso, receoso de ser punido ao buscar contato pessoal com aqueles além de seu círculo familiar imediato, medida que coincide (santa coincidência) com a medidas de prevenção do covid-19. 

          Mesmo assim, o vírus continua a se espalhar pelo mundo e, claro, os decretos sobre sua vida pessoal também.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

"Querer tudo é não desejar nada"

 "Querer tudo é não desejar nada." (G. K. Chesterton)

O ato de querer algo significa que este algo é prioridade, naquele momento, sobre as demais coisas. E a prioridade significa colocar umas coisas a frente de outras.
Querer significa selecionar, desejar algo frente ao resto. Em suma, é estabelecer o senso das proporções (ao menos subjetivamente) numa determinada situação definida no tempo.
Portanto, quem tudo quer nada deseja, pois coloca para si como prioridade todas as coisas ao mesmo tempo.
Isto significa que a realização do querer tudo é impossível, pois a própria ordem das coisas, temporal e espacialmente, impossibilitam que todos os desejos se realizem.
Pessoas que pensam assim, que têm na alma o querer tudo como se o mundo lhe devesse, por direito, fornecer tudo o que deseja, acabam inevitavelmente frustradas, tanto no desejo em si quanto na perda de sentido de vida de uma narrativa não vivida. Isto resume muito da sociedade atual.
Esta passagem de Chesterton, tão sucinta mas verdadeira, adquire proporções ainda mais amplas e consequências ainda mais desastrosas nos dias de hoje.
Ela também remete a outra passagem do capítulo "O Suicídio do Pensamento" em "Ortodoxia", onde nosso escritor afirma que escolher algo implica em rejeitar tudo o mais. E assim voltamos ao ponto inicial deste texto: querer algo é escolher, é priorizar umas coisas sobre as outras.
No mundo de hoje, onde somos permanentemente bombardeados e, por meio de manipulações da linguagem, quase que induzidos a querer tudo ao mesmo tempo, é necessário querer a coisa certa.
Assim, a ordem interior do homem, que manifesta seu querer no silêncio da alma, deve ser a voz que fala mais alto até prender a atenção dos ouvidos que insistem em se render aos apelos do mundo.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Por que a Igreja sempre perdoa

"A Igreja não aceita nada, mas perdoa tudo. O mundo aceita tudo, mas não perdoa nada." (G. K. Chesterton)

É da tradição cristã falar da díade Igreja e mundo. De forma análoga, podemos também falar no transcendente e do imanente, sendo a Igreja a depositária do primeiro e o mundo expressão do segundo. São duas realidades distinguíveis, mas absolutamente integradas.
Igreja e mundo possuem suas leis, que estão em tensão permanente e são apenas harmonizadas pelo espírito entregue à Providência, que tudo governa e nossas almas deve governar.
Para Chesterton, para quem o mundo era um celeiro de banalidades e erros, este é o peso e relevância da Igreja, pois ela nada contra a corrente do mundo, que a todo o instante nos exorta a nadar contra Ela. Esta é a essência da passagem aqui apresentada, exemplo típico dos paradoxos do escritor.
Assim, por expressar as realidades do espírito, a Igreja propõe uma forma de viver que não condiz com a "lógica" do mundo.
Por exemplo: tendemos à inércia, a ficarmos parados e acomodados em nossa condição de vida. O apelo a este acomodamento é do corpo (há também aspectos da mente nisso), realidade do imanente, do mundo. Mas a Igreja, obedecendo à Revelação, nos exorta a transformar o mundo, tanto física quanto socialmente, pelo trabalho, o suor do rosto anunciado no Gênesis. Temos de lutar para vencer o mundo, sobrepor a vontade do espírito às forças do mundo que pesam nossa alma e tendem a nos afastar de Deus.
Por isto a Igreja, que nada aceita, tudo perdoa. Porque sabe que não pode ser condescendente com as tendências do mundo, mas deve perdoar o homem a todo o instante, porque ele é fraco e, cedo ou tarde, há de cair em erros e pecados.
O mundo, por seu lado, tudo aceita, mas nada perdoa. Pois se a pessoa se entrega ao prazer de se acomodar e esperar que Deus ou seja lá mais quem faça algo por ele, acabará na miséria e na morte por inanição.
O homem tem livre-arbítrio, dom divino fruto de Seu amor, para decidir entregar-se aos desejos da carne e esterilizar o espírito. Mas pode, também, lutar para vencer, sempre, até que chegue o dia da vitória, o instante último onde se revelará o peso da balança da vida pendente para o espírito.
Pois, como nos lembra São Mateus, "quem perseverar até o fim, este será salvo".

domingo, 15 de novembro de 2020

O jovem moderno: tijolo para a militância

"Os jovens modernos nunca mudarão o ambiente em que vivem porque estão sempre mudando de ideias." (G. K. Chesterton, em "Ortodoxia")
O jovem, por definição, está buscando uma identidade definitiva e um caminho a trilhar no futuro. Ele testa, aqui e ali, o que pode ou não viver para construir sua narrativa de vida.
Se há uma coisa que o jovem não tem, e diríamos que são poucas as exceções à regra, é constância nas ideias, porque é necessário tomar conhecimento de várias delas para saber qual pode ser o fundamento de sua vida.
A narrativa precisa de um enredo, e este enredo é construído através da experiência.
A situação é muito mais complicada quando se trata do jovem moderno. Este é tão inconstante quanto seu estilo de vestimenta. Está a todo o instante absorvendo o que a propaganda e os professores estão lhe apresentando na TV e em sala de aula.
O jovem moderno acaba por abraçar tudo ao mesmo tempo, o que significa que não abraçar nada. É instigado a todo o instante a transformar o mundo, conferindo-lhe a imagem de modelo de conduta.
Em outras palavras, ao jovem moderno é oferecido todo o tipo de narrativa de vida aparentemente sábia e heroica sob a promessa de viver uma existência abundante e plena de sentido.
Por isto mesmo este jovem é matéria-prima abundante para organizações ativistas. Ele é a face do militante, a pessoa entregue de corpo e alma a uma "causa" convencida de que encontrou a coisa certa a fazer pelo "bem" da humanidade, e por isso mesmo confortável com sua escolha; acredita na ilusão prepotente de que sua narrativa é a única correta condenando as demais ao ostracismo e ao silêncio.
O ambiente do jovem militante é o "coletivo", que lhe dá outro benefício, o de sentir-se emocionalmente aceito a um grupo, a quem devota fidelidade pelo intenso vínculo afetivo.
Com o futuro definido, uma narrativa aparentemente coerente, uma vida emocional satisfeita e um bem a realizar, o jovem moderno, tijolo no edifício da militância, agora sente-se capaz de transformar o mundo e, claro, julgá-lo, como se fosse ele mesmo a encarnação das leis da História.
Não é por acaso que este tipo de gente seja capaz de infringir as leis, cometer crimes, tacar fogo em tudo, e que seus alvos sejam justamente os burgueses, os "fascistas", os cristãos.
Se hoje atentam contra lojas, instituições e igrejas, é porque amanhã atentarão contra as pessoas que estão dentro delas.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O perdão em "Humilhados e Ofendidos"

(Natacha e Vânia representados em filme russo de mesmo nome, 1991)

          Pouco posso dizer sobre a obra "Humilhados e Ofendidos", de Dostoiévski, de leitura recém encerrada. O livro foi publicado em 1861, sendo o primeiro do autor após dez anos de exílio na Sibéria, de onde voltara dois anos antes.

          Certamente, esta não é sua obra mais elaborada nem está entre as mais conhecidas. É no livro seguinte, "Crime e Castigo", que o escritor mostra sua grandeza, e que é, no meu entender, a mais representativa na apresentação dos dilemas morais, da trama psicológica e do drama existencial do homem, ali expostos de forma bastante clara e elaborada, servindo de referência para outras leituras.  

          Ainda assim, Dostoiévski expõe os dramas e contradições da vida em "Humilhados e Ofendidos", mesmo que de forma menos profunda.

          O tema em questão aqui é o perdão. A dificuldade de perdoar é a tônica deste livro que, como o título já diz, apresenta o sofrimento causado pelas injustiças e a recusa por parte dos injustiçados de se desprenderem do ódio e do rancor.

          O enredo é narrado em primeira pessoa por Ivan Petróvich, o Vânia, que vai desenrolando suas memórias passadas ao fim da vida. E na medida em que a trama se revela, junto vêm os sofrimentos dos personagens que, aferrados ao orgulho, nunca ou raramente se dispõe a perdoar.

           É assim com Nikolai Serguêievicth, pai de Natacha, que se ressente da filha que abandona a família para se casar com o impulsivo e ingênuo Aliócha, filho do príncipe Piotr Aleksándrovitch. Este último um homem mau-caráter cheio de amor-próprio capaz de destruir vidas unicamente pela preservação de seu status e por vantagens financeiras.

          De outro lado, Vânia conhece inesperadamente Nelli, cujo nome verdadeiro é Elisa, e seu avô Jeremias Smith. Aos poucos, a trama revela a vida da falecida mãe de Nelli, o rancor persistente na família da garota, sua misteriosa doença e o vínculo do príncipe com a sofrida teia de relações mal resolvidas.

          Importante notar como estes personagens são direta ou indiretamente afetados pelo problema do perdão, que só a muito custo vem à tona, e a capacidade que corações puros e sofridos têm de romper as correntes que amarram pessoas embrutecidas pela dor.

          Nas obras "Crime e Castigo" e "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski mergulha mais fundo na tensão entre o rancor e a libertação advinda do perdão, e como este ato leva a uma radical mudança de vida e à redenção da alma humana.

          "Humilhados e Ofendidos" é o retrato da miséria causada pela falta de perdão, que arrasta não só os personagens obstinados no erro como afeta diretamente os mais íntimos, causando sofrimentos desnecessários e impedindo a realização de planos de vida, como ocorre com os personagens mencionados. 

           Assim, Dostoiévski revela a capacidade da literatura de lançar luz sobre problemas que de outra forma não seriam visíveis aos nossos olhos, pois tentar entender a trama do sofrimento através de uma realidade possível pode calar muito mais fundo do que simplesmente o ouvir falar.

          O que ouvimos podemos nem mesmo entender e simplesmente esquecer, mas o que nos esforçamos para assimilar se instala na alma de forma muito mais consistente. E Dostoiévski é um gênio na capacidade de abrir nossos olhos.          

domingo, 8 de novembro de 2020

Quando os impérios sucumbem

 "Eu creio que a primeira coisa que me fez detestar o imperialismo foi a afirmação de que o sol nunca de põe no Império Britânico. Para que serve um país sem pôr-do-sol?" (G. K. Chesterton)

Chesterton possuía um olhar muito crítico do Império Britânico, pois o considerava um exagero e algo distinto e distante da realidade do simples britânico. Sua vastidão criava um sentimento de grandeza nas pessoas, mas pouco contribuía para suas vidas de fato enquanto cidadãs.

O comentário aqui reproduzido é muito típico de nosso escritor. Afinal, que raios de importância há o pôr-do-sol para um império que depende do poder efetivo para se sustentar? Como pode um poético fenômeno natural ser mais relevante do que a armada britânica?
Pois é exatamente este o ponto. Se um poder imperial (e poderíamos acrescentar: qualquer poder político) esquece que sua legitimidade está nas coisas mais simples, que é estar próximo das necessidades e aspirações das pessoas comuns, cedo ou tarde ele irá sucumbir.
Este foi o destino do Império Britânico que, incapaz de governar vastas terras distantes com populações crescentes em número e hostilidade, liderando politicamente povos que pouco ou nada tinha a ver com seu povo de origem, dissolveu-se em meio a uma Grande Guerra e diversas revoltas, como foi a tumultuada descolonização da Índia.
Podemos ir mais longe: se o sentido da força política é o poder e a grandeza em si mesmos, então sua força acaba por se tornar seu túmulo, porque os meios de vida e governo não são jamais fins em si, mas meios.
A glória britânica, representada pelo império onde o sol nunca se punha, estava grandemente calcada na própria grandeza, cujo peso acabou por ser sua ruína.
Ademais, todo o poder e força é cíclico. O Império Romano se sustentou por oito séculos, o Império Sacro-Germânico outros oito, a União Soviética 78 anos e o Terceiro Reich apenas 12.
Destes impérios, muitos sucumbiram porque não eram legítimos ou perderam sua legitimidade. Em algum momento, perderam a capacidade de contemplar pôr-do-sol ou foram destruídos por aqueles que acreditavam que as coisas simples deveriam ser subjugadas e transformadas pelo pesado braço do Estado.
Há um espírito que sustenta o mundo. Sem ele, toda a ordem e todo o império são apenas esqueletos que, cedo ou tarde, desabarão por si mesmos.

sábado, 7 de novembro de 2020

O insistente retorno a Roma

"Onde o catolicismo é expulso como uma coisa antiga, ele sempre volta como uma coisa nova." (G. K. Chesterton, em "Todos os caminhos levam a Roma") 

Não existe civilização secular, "laica", não-religiosa.
Todas as civilizações humanas têm algo de religioso na base, pois não pode haver civilização que se fundamente na desorientação e desconexão com a realidade em seu todo, cosmovisão provida pelas tradições religiosas.
Até pouco tempo, esta cosmovisão estava disponível apenas nas religiões. Hoje, as ideologias e mentalidades modernas buscam fazer o mesmo papel através de fórmulas pré-determinadas que enclausuram a totalidade da realidade numa gaiola. É a explicação de tudo e de todos mediante fórmulas simples, mas falhas.
O exemplo mais flagrante é o marxismo, cuja filosofia persiste com sua insistente miragem sedutora de uma transformação integral da sociedade humana e, por consequência, de sua relação com o cosmo em prol do "mundo melhor". Não importa o quanto seus movimentos políticos fracassem, pois sua força provém da insaciável sede existencial do homem.
A persistência de ideologias é mais uma prova da persistência das tradições religiosas, totalizantes por excelência, mas não escravizadoras do espírito. É mais uma prova de que, sim, o homem é um ser essencialmente religioso, mesmo que se negue esta afirmativa.
Não por acaso, Chesterton escreveu um livro chamado "Todos os caminhos levam a Roma", origem desta citação. Queira ou não, o homem busca a Verdade, cujo depósito institucional está em Roma, ainda que esta Verdade, obviamente, não se limite há uma instituição mas se manifeste na realidade mesma.
Tiremos o catolicismo de cena e teremos ideologias falhas que acabarão por ruir deixando em seu lugar um catolicismo novo; ou mesmo uma religião que dê ao homem uma explicação satisfatória para a vida.
Mas Chesterton soa profético em sua afirmação. Hoje, com a crescente hostilidade cultural ao catolicismo, ao mesmo tempo emergem e se destacam movimentos onde esta fé vive e mesmo retorna. É o caso dos movimentos marianos, que tomaram impulso desde o pontificado de São João Paulo II, e do retorno às práticas tradicionalistas com Bento XVI.
Onde emerge a apostasia, o Espírito age para defenestrar o espírito do tempo. Pois é disto que se trata: o homem, ao render-se ao seu tempo, afunda no vazio e na depressão, e tem como única alternativa retornar para a casa que lhe oferece a eternidade.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O abandono da fé e as "novas religiões"

 "As Novas Religiões estão de muitas maneiras adaptadas às novas condições; mas é só às novas condições que estão adaptadas. Quando essas condições tiverem mudado daqui a um século, as questões nas quais essas religiões insistem terão se tornado quase sem sentido." (G. K. Chesterton, em "Igreja Católica e Conversão", em 1926)

Quem ler ao menos parte da obra "Igreja Católica e Conversão" verá que Chesterton trata do catolicismo como uma religião nova. Nova porque ela vem de encontro à mudança de vida, remexe a forma de pensar meramente tradicional, tomado aqui o termo "tradicional" como a herança pura e simples de um passado ainda vivo.
Esta tradição é estéril, não-espiritual, ao passo que o catolicismo é uma herança viva, espiritual, mesmo que a tradição vigente diga o contrário.
Mas as "novas religiões" que Chesterton cita nesta passagem do mesmo livro são aquelas que vêm como novidade, mas são apenas uma amálgama de crenças e elementos que adaptam a alma humana às condições do momento.
Hoje poderíamos ver essas novas religiões na New Age, no neopaganismo, no espiritismo, em elementos orientalistas e assim por diante; todos eles, em maior ou menos grau, costurados e adaptados não à verdade, mas ao gosto do cliente.
Não por acaso, os sociólogos chamam essa atitude de bricolagem, a criação individual de uma crença puramente pessoal e que não necessariamente condiz com a realidade.
Ocorre que Chesterton falava dessas "novas religiões" já em 1926, ano no qual esta passagem foi escrita, mostrando que há muitas gerações o Ocidente vem sendo seduzido por crenças espirituais não cristãs ou mesmo anticristãs.
Onde morre a fé cristã (e católica em particular), abre-se o terreno para novas religiões.
Hoje, Chesterton veria, como já viu em sua época, a penetração do islam na Europa. A fé islâmica só poderia progredir em terreno aberto onde o cristianismo foi abandonado.
E não adianta que governos e organizações reclamem oposição ao islam. A esfera política pouco pode contra o crescimento desta fé abraâmica, que historicamente tem se mostrado hostil não apenas ao cristianismo como às formas de vida do Ocidente.
Religião se opõe à religião. Se o Ocidente escolher abraçar as "novas religiões" ou seguir meramente tradições estéreis, será seduzido e morrerá nos braços do islam ou de qualquer outra força religiosa equivalente.
Chesterton é um exemplo, tanto nas obras quanto em sua vida pessoal, da capacidade que uma fé verdadeira possui de transformar vidas e estabelecer uma cultura forte ancorada numa compreensão profunda da realidade. Esta é a única barreira contra a entrada de outras religiões tradicionais hostis à fé cristã, quem dirá contra crenças da moda compradas como produtos nas prateleiras de supermercados.

sábado, 24 de outubro de 2020

Vocação e sacrifício

(Sísifo dormindo)

          Todas as pessoas possuem uma vocação. Não falo aqui em vocação no sentido religioso ou matrimonial, mas enquanto pessoa, enquanto ser. 

          Nossa caminhada na vida é uma revelação de nós para nós mesmos. É olhar para si e descobrir, aos poucos, que temos uma certa personalidade que deve ser descoberta e ser trabalhada para cumprir seu pleno potencial.

          Este vídeo, divulgado no início de 2020 pelo pelo ICLS (Instituto Cultural Lux et Sapientia), dirigida pelo professor Luiz Gonzaga de Carvalho, mostra como as pessoas descobrem sua vocação ao longo da vida e os erros que muitos cometem, muitas vezes por uma má educação na família ou orientação errada dada pela educação moderna, ao confundir vocação profissional com vocação de vida.

          Todos os dias tomamos atitudes com vistas a um fim, e este itinerário vai formando nossa narrativa. Assim como numa viagem, olhamos para trás e vemos a distância percorrida; o passar do tempo nos pesa, e conseguimos perceber, com maior ou menos consciência, as conquistas (ou a falta de) ao longo da vida. Conquistas essas que são o cumprimento de uma narrativa.

          Quem chegou aos trinta e cinco, quarenta anos sentiu nas costas o que fez ou deixou de fazer. É o período da vida, segundo o apresentado no vídeo, em que descobrimos nossa vocação enquanto pessoa.

          Por experiência, posso dizer a dificuldade que é chegar nesta faixa de idade e ver o que não foi criado e construído, o peso que pode ser a narrativa não narrada, a vida não vivida e a vocação não descoberta.

          Na verdade, o problema não está em não descobrir a vocação no prazo, mas em não buscá-la, não se descobrir na experiência de vida, seja pela sucessão de erros cometidos, a recusa de viver plenamente com os esforços exigidos para isso, ou os dois.

          A felicidade se faz nesta caminhada, que deve fazer criar músculos nas pernas, cujo esforço resulta em dor e sacrifício. A descoberta da vocação é uma toalha que deve ser torcida para fazer verter a água da vida. Do contrário, a personalidade apodrecerá na frustração e na infelicidade.

A origem da lei

 "A fórmula-raiz duma época é a lei que não está escrita, assim como a lei primeira entre todas as leis, responsável por proteger a vida contra o homicídio, não se vê escrita em lugar algum do Statute Book." (G. K. Chesterton, em "Eugenia e Outras Desgraças", 1922)

A proximidade entre as autoridades política e espiritual acabou por sacralizar o Estado, que na era modera emergiu como todo-poderoso das leis e dos princípios.
Nossa época herdou este vício de que a lei dos homens pode legislar sobre tudo. Não por acaso, há uma tendência de se considerar moralmente aceito aquilo que é legalmente estabelecido.
A sacralidade da vida pública foi transferida da Igreja para o Estado, o novo templo, sendo seu corpo jurídico o novo catecismo.
Ocorre que a lei dos homens é uma derivação da lei divina (ou ao menos assim deveria ser), e por isto mesmo a Santa Igreja, ao exemplo da encíclica "Dignitatis Humanae" de São Paulo VI, exorta os fiéis para que obedeçam à autoridade, desde que esta autoridade não vá contra a Igreja e os princípios que ela defende.
A lei, diz o documento, deve garantir a liberdade religiosa, pois Deus fez o homem livre para que Nele cresse. Assim, a lei dos homens deve estar em consonância com a Lei de Deus.
Chesterton evoca esta Lei superior em "Eugenia e Outras Desgraças", lembrando os dois primeiros mandamentos que, segundo o próprio Jesus, resumem toda a Lei de Deus.
Amar a Deus sobre todas as coisas é amar o próximo, pois Deus habita no próximo. Portanto, quem agride ao próximo agride a Deus em pessoa. E por isso mesmo amar o próximo como a si mesmo é amar a Deus. Não há como separar esses mandamentos, derivação de todas as demais leis divinas.
Assim, o que Deus proclamou não está nos Statute Books do Reino Unido ou na Constituição brasileira de 1988, mas no coração humano, e tem como veículo a Igreja através de sua Tradição, a Palavra e Magistério, ou mesmo outras tradições religiosas.
Nos dias de hoje, onde proliferam leis iníquas que atentam diretamente contra a vida e relativizam a dignidade humana através da segregação social e do consequente estímulo de conflito de todos contra todos, o homem tem o desafio de se aferrar à Lei inscrita no próprio coração e lutar para que, no momento oportuno, prevaleça nas cartas do mundo todo o que imperou nas sociedades cristãs por séculos. E o que impera no coração de Deus desde a eternidade.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O preço da submissão da Igreja ao Estado

 "Na Rússia, a única acusação real feita por gente religiosa (especialmente católicos romanos) contra a Igreja Ortodoxa não é sua ortodoxia ou heterodoxia, e sim sua dependência abjeta do Estado." (G. K. Chesterton, em "Eugenia e Outras Desgraças", 1922)

Chesterton posicionava-se favorável à retirada do apoio estatal às igrejas, como comenta em "Eugenia e Outras Desgraças", do qual este trecho foi transcrito.
A separação Igreja-Estado é um dogma da modernidade. Seu questionamento é visto como a defesa do contrário, um Estado confessional, como se fosse obrigatório, à alternativa da laicidade, um poder que patrocinasse oficialmente uma fé específica.
A questão é infinitamente mais complicada, porque, historicamente, Estados patrocinaram igrejas, o que levou à divisão dos fiéis e da luta uns contra os outros (a Inglaterra de Henrique VIII é um bom exemplo disso), e a laicidade, vista com um modelo ideal de Estado moderno, é, no seu sentido estrito, impossível.
Pois a laicidade será sempre relativa. Ela pressupõe que a população participe do poder vigente, e parte desta população é religiosa. Ela exige uma conduta "laica" do poder público, mas este poder é composto de pessoas que deveriam, por este ideal, deixar suas crenças em casa. Ela exige a divisão das consciências, o que significa abjurar da consciência religiosa.
O monstro bifronte do Estado laico existe no plano jurídico, mas não pode ser estritamente implementado segundo seu ideal. O Estado laico não é antirreligioso, mas juridicamente neutro às questões religiosas e, por consequência, nivelador do valor que confere aos grupos religiosos. Mas a população não condiz com este padrão, bem com a proporção de grupos religiosos numa sociedade.
Por outro lado, a solução do Estado confessional igualmente não é válida. Na mesma obra, Chesterton comenta a perda da vitalidade da fé nas igrejas que têm apoio oficial.
O caso da Rússia é emblemático, pois no país onde o czar estava acima do patriarca ortodoxo (título banido por Pedro, o Grande), o Patriarcado de Moscou era submetido a um sínodo diretamente controlada pelo Estado.
Quando Chesterton escreveu esta passagem, em 1922, a Igreja Russa estava sob o jugo dos bolcheviques, que estabeleceram controle ainda mais rígido sobre os religiosos, perseguindo e matando quase a totalidade deles na década de 1930.
A "santa" Rússia, que sacralizou o poder político, trouxe o primeiro Estado oficialmente ateu, de um laicismo feroz nunca antes visto. Não por acaso, nos confins de Portugal, Nossa Senhora viria alertar sobre as desgraças que viriam daquelas terras.
Os "erros da Rússia " estavam apenas começando.