domingo, 19 de janeiro de 2020

Uma Mulher na linha de frente


          A grande arma, o grande trunfo, o grande baluarte e proteção dos cristãos é o Santo Rosário. Por algum motivo que está misteriosamente escondido no Coração divino, foi Deus que quis assim: colocar Nossa Senhora na linha de frente contra o Mal, justamente numa época marcada pelo crescente distanciamento de Deus, a secularização da cultura e da sociedade, a confusão, e onde diversos "deuses" (ciência, política, desejos, etc) foram colocados no lugar de Nosso Senhor e criaram o estado de sofrimento e desespero típicos dos dias de hoje.
          Não por acaso as aparições de Fátima, o maior milagre desde Jesus Cristo e que resume a História de nosso tempo, ocorreu justamente na era moderna, e Ela, mais uma vez, pediu insistentemente para que usássemos a mais poderosa arma de nossos tempos: o Santo Rosário.
          Em Nossa Senhora pulsa a nossa época, e será por Ela que o mundo se purificará e se aproximará daquilo que Deus pensou para nós.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Uma defesa da beleza num mundo feio

(Roger Scruton, 27/02/1944 - 12/01/2020)

          Neste 12 de janeiro de 2020, faleceu o filósofo inglês Roger Scruton. Pensador de linha conservadora, Scruton foi autor de mais de 50 livros e recebeu reconhecimento oficial de pelo menos quatro governos por seu trabalho.

          Mas se engana quem pensa que vou falar de sua obra. Não li qualquer livro de Scruton, que se tornou bastante conhecido no Brasil há mais ou menos quinze anos devido à divulgação pelo filósofo Olavo de Carvalho. O pensador inglês se tornou um dos favoritos da nova direita brasileira que ascendeu publicamente nos últimos anos.

          Uma obra sua, porém, tomei conhecimento: o documentário Why Beauty Matters (Porque a Beleza Importa), produzido pela rede BBC e disponível no Youtube com legenda em português. Nela, Scruton narra a relevância para a vida humana do senso de beleza estética, mas que, no século XX, as artes, a arquitetura e a música abandonaram este senso e passaram a expressar finalidades meramente pragmáticas e subjetivas. O resultado foi a profusão da feiura e o rebaixamento e destruição do senso de beleza.

          Um trecho do documentário marcou minha memória, quando Roger Scruton mostra um bairro de Readings, sua cidade natal no Reino Unido, que fora demolido para dar lugar a escritórios e uma estação de ônibus. A antigas casinhas inglesas típicas da Revolução Industrial, todas harmonizadas e ordenadas com tijolinhos escuros e chaminés, deram lugar a edifícios quadriculados, feios e decadentes hoje abandonados e sem utilidade. E Scruton pergunta por que as pessoas abandonaram este local. Porque é feio, responde, e o que é feio perde sua utilidade porque as pessoas simplesmente não gostam da feiura. No fundo - concluo eu - a feiura é uma agressão à nossa própria natureza. Temos um senso inato do belo, e o feio é naturalmente repulsivo. É inumano viver em locais horrendos, condenados a serem esquecidos e demolidos.

          Por isto mesmo as pessoas buscam a beleza, seja no que consideram belo, mesmo que este senso esteja pervertido pela mentalidade moderna e pós-moderna, seja no que vêem que é realmente belo. Se observarmos o Brasil, por exemplo, ficará evidente o estrago que a arquitetura moderna e o concreto armado fizeram com nossas grandes e médias cidades. Basta ver uma foto antiga dos palácios, casarões e edifícios suntuosos que haviam em cidades como São Paulo ou Rio e comparar com os espigões de concreto, vidro e aço que os substituíram nos mesmos local. Vale do Anhangabaú, Praça da Sé, Avenida Paulista, Avenida Rio Branco, o centro das metrópoles brasileiras, todos transformados numa ode ao horror.

          Não tenho fórmula para o resgate da beleza, mas uma coisa é certa: um ambiente naturalmente belo e ambientes com ornamentos harmônicos e agradáveis certamente ajudam além, é claro, do desenvolvimento de uma vida interior que seja capaz de nos revelar, pelo autoconhecimento e pela espiritualidade, o senso intuitivo de ordem - e, portanto, de beleza - que existe na vida humana e na realidade na qual ela está inserida. Quem exercita uma vida espiritual percebe isto naturalmente.

          Se "a beleza salvará o mundo", como diz o escritor russo Fiódor Dostoiévski em sua profunda e complexa obra O Idiota, não sei responder, mas certamente ela reforçará nas pessoas um senso do que é bom e verdadeiro. Scruton defendia a unidade desta tríade, já conhecida desde a Antiguidade pelos filósofos gregos. Assim com o belo, o bom e o verdadeiro são inatos no homem, e despertar um deles ajuda a despertar os outros dois.

          A beleza, portanto, pode não salvar o mundo, mas certamente o tornará melhor.            

          

domingo, 12 de janeiro de 2020

O cotidiano eterno


          Há uma frase de G. K. Chesterton que afirma, não exatamente com estas palavras, que o homem maduro é o que suporta a rotina, esta mesma rotina que em grande parte está voltada ao trabalho. Na época do escrito inglês não era diferente. Faz parte da vida moderna viver em atividade. Modernidade é movimento e desprendimento do ciclo natural da vida; e mesmo as pessoas que vivem uma vida, digamos, "tradicional", dependem do trabalho para viver, e este depende dos ciclos naturais para serem realizados. Daí a maturidade: temos de enfrentar as obrigações concretas e inadiáveis que nos inserem numa aparente ou real mesmice cotidiano, que temos de suportar com fibra o suficiente para não cairmos no desânimo ou estourarmos na revolta.

          Viver, portanto, é viver na rotina por mais excêntrico e mutável que possa ser o trabalho de uma pessoa. Por isto o desempregado não apenas se angustia com a falta do ganha-pão como sente a pressão psicológica de todos os dias ser obrigado a organizar-se mentalmente para atravessar um dia inteiro sem um foco claro e um objetivo que lhe preencha as horas que ameaçam lançá-lo no ócio. Fugir ou ser arremessado para fora da rotina acaba, portanto, por mergulhar a pessoa na desorientação ou no desânimo.

          Chesterton está certo que o homem real é aquele que suporta a rotina, mas o desempregado, o desorientado, aquele que não tem foco na vida prática teria de ser um super-homem para suportar o peso não apenas da cobrança que a vida lhe exige, de sustento material, mas principalmente o caos mental que a falta de foco e sentido lhe provoca. Se o trabalhador tem, como diz o provérbio popular, de matar um leão por dia, o desempregado tem de matar vários para ocupar seu tempo. É uma luta infernal.

          O mais estranho nesta tensão com o cotidiano é a aparente falta de sentido, não apenas do sentido histórico da prática, como também da vida pessoal. A pessoa que sai de férias sente como se estivesse "fora da realidade" e, ao voltar, que está voltando ao "mundo real". O tempo do relógio, uma artificialidade que abstrai em números o ciclo natural do dia, prende-nos como se dependêssemos dele para nos sentirmos vivos e dizer, "sim, a vida tem sentido". O problema é que a vida do movimento, do trabalhar para pagar as contas, do cumprir leis e contratos, pegar filhos da escola e dar aquela atenção básica à esposa ou o marido como se o mundo real se resumisse à prática fria e espiritualmente estéril dominada pelo tic-tac das horas, como se estas brotassem do solo tal qual o trigo ou a cevada, é, em última instância, uma vida sem sentido aprisionada na contagem artificial do tempo. A vida moderna é uma autofagia centrada em si mesma, uma engrenagem falsamente harmônica forjada à sua imagem e semelhança, à imagem do ideal humano do mundo racional administrado que, como bem observamos em faltas de luz, engarrafamentos e enchentes, nunca é o ideal.

          Ser homem é suportar isto, porque este suporte só é possível por conseguirmos ver além da rotina das horas contadas. Porque o homem é primeiro espírito, e ele não pode ser aprisionado pelos afazeres práticos, nem mesmo pelo tempo. Ser homem é ser eterno e ver que nas obrigações cotidianas há, de uma forma ou de outra, um reflexo do amor e da eternidade. Trabalhamos porque buscamos o amor eterno, pagamos as contas pelos mesmos motivos, criamos família porque ansiamos pelo amor que nos escapa dentre os dedos. Ansiamos a todo o instante a perfeição, o Paraíso, que, ao exemplo das experiências totalitárias, é impossível de se realizar neste mundo.

          Nossa rotina não pode ser um fim em si mesma porque sua perfeição é impossível e, portanto, o sofrimento advindo quando fechados nela inevitável. Por isto nossos trabalhos passarão, mas o espírito, aquilo que movimenta as coisas dentro de um tempo administrado, jamais passará.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

As opiniões sobre o Papa


          Todo mundo tem uma opinião sobre o Papa. Infelizmente, muitos católicos têm, além de uma opinião negativa, uma ojeriza pública ao Sumo Pontífice, "nosso pai comum", cuja legitimidade repousa sobre a sucessão apostólica delegada diretamente por Deus em Pessoa, Jesus Cristo, dentro da História humana.

          Eu também tenho alguma opinião sobre o Papa, mas muito vaga e imprecisa, e mesmo que fosse mais certo e preciso preferiria guardá-la para mim do ou colocá-la junto ao público de forma, digamos, mais discreta. Não sei se Francisco tem cometido erros que possam comprometer a unidade da Igreja e sua tradição, mas, em última instância, importa menos o que ele diz em público do que ele faz ex cathedra, ou seja, quando fala como o líder legítimo da Santa Igreja sentado no Trono de Pedro e chancela suas posições e ações perante si mesma, o mundo e a Revelação.

          Esta é a importância das orações ao Santo Padre: mais do que falar besteira aqui ou ali ou se omitir em situações na qual ele poderia (ou deveria) fazer a diferença, cabe à nós intercedermos para que ele não incorra no erro de negar ou desvirtuar a Revelação, a doutrina, a tradição, o próprio magistério, por mais que ele seja simples ou mesmo simplório, ao menos publicamente, tal qual o sacerdote de uma paróquia de uma pequena cidade distante. 

          Se Francisco foi eleito Papa (e não questiono aqui a legitimidade de sua eleição após a renúncia de Bento XVI, tema obscuro e complicadíssimo envolto em milhões de especulações), então é ele que deve ser o Pontífice, o guia, independente de sua capacidade ou inteligência pessoal. Se ele realmente é fraco e comete erros como muitos dizem, então maior deve ser a graça da Santa Igreja. Quem a comanda, em última instância, é Jesus Cristo, e é através de um homem falho que a Sua presença se tornará mais visível. E quanto mais fraco ele for, mais visível poderá ser o guiamento da Igreja pelas mãos do próprio Cristo. Os planos da Providência são insondáveis, e muitos católicos preferem confiar muito mais em sua própria opinião do que na surpreendente história da Igreja que nos últimos anos conta com dois Papas. Mas só um está na cátedra.

          Rezemos pelo Papa, porque é na fraqueza que nos tornamos fortes. Francisco não é exceção à regra. Nem a Igreja.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Mudanças climáticas ou mudança de visão de mundo?


(Gravura L'atmosphère: météorologie populaire publicada pela primeira vez por Camille Flamarion, Paris, 1888)

          Conversando ontem com um amigo a respeito das discussões em um grupo de WhatsApp de apaixonados por meteorologia, nós nos questionávamos sobre o quão falsa pode ser a narrativa sobre as mudanças climáticas. Não pretendo entrar aqui em questões sobre metodologia de pesquisa em climatologia e meteorologia ou comentar sobre seus resultados. O ponto central aqui é: o quanto nós, observadores amadores (meu caso), estudantes de meteorologia/climatologia e cientistas da área, estamos vendo a realidade tal qual ela é? 

        Meu amigo relatava sua experiência de trabalho nesta área, que vem de algumas décadas, bem como a de outras pessoas que ajudam na coleta de dados e têm longo histórico como observadores do tempo. Entre os membros do grupo, alguns dos pontos de discussão diziam respeito aos extremos climáticos do Brasil em épocas distantes, quando a observação meteorológica era muito mais escassa e, em alguns casos, passíveis de questionamento. A atual seca no Rio Grande do Sul era um dos pontos de discussão. Seria esta seca histórica? Alguns dão a entender que sim; a maioria, porém, ainda prefere a cautela. Outro ponto de discussão é o recorde "oficial" de frio no Brasil: o dado de -14°C, registrados em 11 de junho de 1952, em Caçador, SC; este, sim, ponto de maior discussão.

          Seca no Rio Grande do Sul, ausência de recordes de frio como os de Caçador, calor e seca históricos com incêndios monumentais na Austrália; início de inverno quente em parte dos EUA, toda a Europa, Rússia e parte da Ásia. E a pergunta que fica estimulada pela narrativa da grande mídia e que saem em diversos relatórios climatológicos é: estamos presenciando as chamadas "mudanças climáticas"?

          Durante a conversa, porém, tive um estalo. Quando observamos todos estes acontecimentos, tendo acesso pela internet, não digo nem mesmo pela imprensa, mas de estações meteorológicas, dos serviços nacionais de meteorologia, acompanhando dados e colhendo informações de nossas cidades pessoalmente, estamos realmente vendo o que está acontecendo a nível global? Ou isto reflete apenas parcialmente uma realidade, talvez distorcida? A primeira coisa que percebia foi que grande parte dos debatedores do grupo vivem em cidades, portanto, num meio que filtra a percepção dos fenômenos atmosféricos, principalmente de longo prazo.

          Se todas as cidades do mundo fossem unidas numa mesma área urbana, elas cobririam uma área equivalente ao estado americano do Texas ou um pouco mais do que o estado de Minas Gerais. Para termos uma dimensão da desproporção, o Texas possui 678 mil km² de área, enquanto que o planeta Terra inteiro em torno de 510 milhões de km². Portanto, se todas as cidades do planeta fossem unidas numa mesma área urbana cobririam apenas 0,13 % da totalidade da superfície terrestre, mas abrangeriam pouco mais da metade dos atuais 7,7 bilhões de habitantes de todo o mundo.

        Desta forma, muito das observações das condições do tempo na cidade ocorrem sob o efeito da ilha de calor, que se traduz pela retenção do calor pela mancha urbana durante o dia. Este calor é liberado à noite, traduzindo numa elevação da temperatura da cidade, particularmente da temperatura mínima. Isto é observável por instrumentos, mas também sentido na vida cotidiana.

        A experiência da moderna vida urbana ajuda a explicar a máxima da atual geração, que repete com alguma frequência que "hoje não faz mais frio como na época dos meus avós",  o que é uma obviedade. Nossos avós, com raras exceções, não viviam no meio do concreto em selvas urbanas de um, dois, dez milhões de habitantes. Elas são necessariamente mais quentes, inescapável para mares de concreto e cimento recheados por ambientes climaticamente controlados.

          Viver em cidades é mergulhar numa realidade sociológica totalmente diversa do homem dependente do ciclo natural, que vive no campo e vê a natureza seguir seu rumo. Nós, pessoas do meio urbano, vemos tudo por um prisma, uma lente que se interpõe entre seus olhos e o mundo que nos foi dado. Estamos desconectados da realidade tal qual ela é. Dependemos de máquinas, burocracia, ambientes fisicamente controlados com energia elétrica, ar-condicionado, regras próprias e impessoais. As informações que recebemos vêm das mais diversas fontes, mas são abstrações, são leituras do mundo que nos chegam sem que tenhamos a experiência viva e direta sobre o qual brotou o olhar daqueles que divulgam as informações, sejam jornalistas ou cientistas. 

          Para o filósofo alemão Georg Simmel, o tipo psicológico urbano tem uma atitude blasé, ou seja, não ignora, mas também não é emocionalmente afeiçoado à massa de pessoas que o envolve. O mesmo ocorre com a esmagadora maioria das informações que recebemos, basicamente devido à impossibilidade prática de analisarmos todas ao mesmo tempo, e aceitamos passivamente o que nos é oferecido segundo métodos que ignoramos completamente. É a "zona escura" de que falam Berger e Luckman dentro do que estes dois sociólogos chamam de "construção social da realidade". Não é possível que conheçamos tudo sobre tudo, mas apenas o que nos diz respeito diretamente, e com o conhecimento científico em geral não é diferente.

          Hoje agimos como o personagem da figura reproduzida acima, L'atmosphère: météorologie populairepublicada em Paris, em 1888, que mostra um estudioso renascentista saindo do mundo natural para descobrir os fundamentos últimos de seu funcionamento, onde encontra uma cadeia de engrenagens. No lugar do mundo natural, ele mergulha não no mundo espiritual que haveria por detrás deste, mas no mecanismo frio e racional por ele imaginado e que supostamente moveria o Cosmos.

          Estamos como que presos na máquina criada por nossa própria mente e chamamos isto de "realidade"; reproduzimos um mundo à sua imagem e semelhança, como se fosse possível controlar por completo nosso ambiente; ficamos protegidos e blindados por um mundo artificial para além do qual é impossível sairmos completamente a não ser que coloquemos o corpo para fora deste mundo; e ainda que saíssemos do mundo construído teríamos o modelo da gravura como o limite de nosso imaginário, que está em constante conflito com nossas experiências e crenças pessoais.

          Enfim, temos muita subjetividade e pouca experiência. Vemos a chuva cair do lado de fora, mas não temos a experiência da chuva no campo aberto ou sobre a mata com seus efeitos na temperatura, o "cheiro da chuva", seu som sobre as plantas. Muito menos sobre os oceanos.

          É neste mundo, onde se encontram os instrumentos necessários à atividades científica e jornalística e onde vivem os produtores de informações. É uma redoma, um microclima físico e mental, exceção no ciclo natural dentro do qual ocorrem os fenômenos climáticos.

          Nem cito aqui as possíveis manipulações e distorções de dados e informações que contribuem para a narrativa das mudanças climáticas. O simples fato de estarmos inseridos não apenas numa realidade física, mas numa mentalidade que privilegia, até mesmo por uma necessidade prática, a subjetividade em detrimento da experiência ajuda a colocar em questão não só o método científico no estudo do clima como o problema epistemológico que molda e interfere em nossa visão de mundo. É neste caldo, nesta cosmovisão moderna que nascem as teses sobre mudanças climáticas e todas as narrativas que a sustentam. 

          Não há como fugirmos dos efeitos da mentalidade moderna. Ela está a aí, este é o nosso mundo e a nossa época. Mas sempre devemos botar em parênteses os grandes "consensos" em torno de temas tão complicados, complexos e impossíveis de serem averiguados diretamente. As mudanças climáticas não são acessíveis a olhos vistos e não andam por aí como nossos pés, capazes de pisarem na areia molhada da praia após uma chuva de verão. 

          

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

O dilema do dia a dia


          Há muitos anos, desde o final da infância pelo menos, lembro-me de ter uma mente agitada, excessivamente agitada eu diria. Desta mente em constante ebulição nasceu não apenas a criatividade, mas também o tormento. Não é fácil ter a mente agitada, porque é necessário (sumamente necessário) ter momentos de paz interior que é alcançada através do silêncio interior (e exterior também) e a contemplação da realidade entorno.

          Todos os dias, e hoje lembro vagamente desta mesma experiência, tenho na mente e no coração a dúvida sobre a vida, o questionamento de seu sentido e a razão de eu estar neste mundo, neste local e nesta época. Então penso: "Não deveria ficar mais tranquilo, viver o cotidiano com mais leveza e deixar que as coisas, minha missão de revele pela Providência?" Sim, deveria. Porque é na caminhada, não no questionamento e na reflexão filosófica, que brota a resposta. A reflexão filosófica é, ou deveria ser, muitas vezes, parte da caminhada, não a resposta mesma. Viktor Frankl já ensinou que o sentido da vida não está na pergunta em si, mas é a vida que pergunta lhe que sentido você dá a ela. A "vida" é, em última instância, a Providência. Cabe agir, ter a atitude cotidiana de fazer seu dever, trabalhar, pagar as contas, respeitar as pessoas, se arrumar para dormir, etc, enfim, incorporar no seu coração o seu dever e dar Glória de Deus por isto.

          Estar aqui, penso eu neste momento, em frente a um computador onde escreve este texto faz parte do caminhar, e a caminhada, o agir no dia-a-dia depende da iniciativa. "Deus ajuda quem cedo madruga", diz o provérbio popular; e ajuda não só no sentido prático, Ele dá a paz a quem faz por merecê-la, isto é, quem está aberto a ela. Isto não é uma questão de mera intenção, de mera reflexão filosófica, mas de ser quem se deve ser, sem desejos hiperbólicos nem sem desânimo depressivo; de viver a vida na sua normalidade alicerçada na fé de que, sim, a Providência é o lastro sobre o qual tomamos nossas decisões e construímos nossa História.

          O coração que não estiver aberto a este porvir que se abre no cotidiano viverá a angústia de buscar eternamente a resposta inicial. A mente, é claro, pode ajudar na caminhada, mas também pode atrapalhar. É necessário fazer silêncio às perguntas e deixar brotar as respostas tal qual a semente mergulhada numa terra úmida e fecunda.