quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A fé na coisa errada


          Às vésperas de uma eleição importante é evidente que criamos expectativas. Afinal, o poder político adquiriu uma relevância enorme de forma que esperamos que o administrador, junto com seus aliados, realize o que desejamos para nossa sociedade, sociedade esta da qual nós fazemos parte. Isto faz de nós potenciais beneficiários dos comandos que vêm do alto, a exemplo da prosperidade material e uma vida cotidiana burocraticamente simples.

          Na medida em que uma sociedade se desenvolve economicamente mais complexa se torna seu funcionamento. Mais empresas, mais associações, mais produtos circulando, mais agitação. Disso, se faz necessário mais regulação e mais controle. Na medida em que uma sociedade se desenvolve economicamente cresce junto o poder do Estado, que não precisa dirigir a economia, mas regular seu funcionamento de forma que haja um ordenamento mínimo e que as relações sociais se harmonizem com este ordenamento. Em outras palavras: mais poder político atuando em cada vez mais setores da sociedade. Por isso a política importa tanto: ela penetrou em muitas áreas que antes não atuava e mais minucioso se tornou o controle que exerce sobre nosso dia-a-dia. Basta ver as regulações que se discutem acerca de, por exemplo, a internet ou combate ao contrabando. Junto a isso, surgem as regulações sobre nosso comportamento: como educar seus filhos, não fumar, limitar o consumo de determinados alimentos, cuidar com as palavras ditas na rua, mesmo os olhares. Quanto mais desenvolvimento, mais complexidade socioeconômica e maior a tentação de ir além, extrapolar os limites burocráticos e partir para a burocratização da vida íntima. Os direitos e as leis crescem e exigem cada vez mais controle social.

          Esta é a ilusão: acreditar que o poder político tudo pode e tudo deve. Daí a fé na política, a esperança de que o poder trará a nós a tão sonhada paz e prosperidade ou pelo menos uma boa paz e uma boa prosperidade. A vida se tornou tão complexa que fomos engolfados pelo cotidiano e temos enorme dificuldade de olhar além do mundo visível, retendo nele a fé que deveria saltar para o Eterno. Sufocados pela vida agitada, esta ilusão desemboca num erro fatal, que é a crença de que a ação humana tudo pode e é infalível. Não é. Caso fosse, ou as decisões estariam sempre corretas, ou a realidade física seria plástica à vontade humana. Esta fé vã é comprovada pelas sucessivas crises que tantos países passam mundo afora e, claro, pela que passa o Brasil neste momento. Só Deus pode tomar decisões sempre certas e ser capaz de manipular a realidade física de acordo com Sua vontade. É lá que devemos colocar nossas esperanças esperando sempre que se um político fizer besteira ele faça a menor besteira possível.  

           

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O mundo administrado: projetos de um Paraíso impossível




         O primeiro capítulo do livro “Vidas Desperdiçadas” (2004) do sociólogo polonês Zymgunt Bauman versa sobre o projeto da modernidade. O capítulo tem um nome claro e direto: chama-se “No começo era o projeto”. Trago aqui o texto que escrevi para um disciplina de pós-graduação.
          Bauman sintetiza o projeto da modernidade como a forma do homem moderno encarar o mundo através do pensamento racional e da necessidade, inerente a este pensamento, de administra-lo. O mundo administrado é o mundo preconcebido pelo pensamento racional, ou seja, é precedido por ideias, planos, ideais e intenções premeditadas. Daí a concepção do projeto moderno, que abarca todas as dimensões da vida das pessoas que vivem sob o manto da modernidade.
          A discussão do livro de Bauman gira em torno da ideia de refugo humano, as pessoas que são consideras e tratadas com “o resto” da humanidade ou, numa linguagem mais popular, os “excluídos”. No capítulo em questão, é a partir da página 31 que Bauman relaciona a ideia de refugo com a de projeto moderno e inicia uma análise muito interessante da real dimensão sobre as reais consequências deste aspectos inerente à modernidade:

“Indagado sobre como obtinha a bela harmonia de suas esculturas, Michelangelo teria respondido: ‘É simples. É só você pegar um bloco de mármore e cortar todos os pedaços supérfluos’. No auge do Renascimento, Michelangelo proclamou o preceito que foi o guia da criação moderna. A separação e a destruição do refugo seriam o segredo comercial da criação moderna: cortando e jogando fora o supérfluo, o desnecessário e o inútil, seriam descobertos o belo, o harmônico, o agradável e o gratificante” (BAUMAN, 2004, p. 31-32, grifo no original)

          A analogia com a visão de trabalho de Michelangelo perpassa todo o restante do capítulo: para alcançar o ideal, o objetivo final do plano previamente pensado, é necessário tirar de cena tudo e todos os que não se enquadram no projeto. O projeto aqui pode ser qualquer coisa que estabeleça um objetivo a ser alcançado no futuro: acabar com a pobreza, o desemprego, mudar a forma de organizar a economia, estabelecer planos e metas na educação, criar um determinado regime político (democrático ou não), estimular as ciências e assim por diante. Mesmo que as intenções sejam boas e os objetivos alcançáveis, inevitavelmente haverá pessoas que não se enquadrarão, por razões diversas, nos projetos em questão, sejam eles quais forem.        
          Bauman lembra que para a mentalidade moderna é a mentalidade da transformação constante, é a ideia de que “o mundo pode ser transformado (grifo no original). A modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem sido até agora e à decisão de transformá-lo” (BAUMAN, 2004, p. 33). Para transformar o mundo, é necessário estabelecer um plano, um projeto para a criação da sociedade futura. Outra passagem do capítulo é reveladora sobre esta mentalidade escatológica da modernidade: 

“A história da era moderna tem sido uma longa cadeia de projetos considerados, tentados, perseguidos, compreendidos, fracassados ou abandonados. Os projetos foram muitos e diversos, mas cada um deles pintou uma realidade futura diferente daquela que os projetistas conheciam. E uma vez que ‘o futuro’ não existe enquanto permanece ‘no futuro’, e que ao lidar com o não-existente não se pode ‘obter a certeza de um fato’, não havia como prever, muito menos com precisão, como seria o mundo a emergir na outra ponta dos esforços de construção”
“O bem maior só pode ser obtido por um preço: justamente com seus benefícios, ele tende a acarretar consequências tão indesejáveis quanto imprevisíveis, embora estas últimas sejam normalmente minimizadas ou ignoradas no estágio de produção do projeto sob o pretexto da nobreza das intenções gerais” (BAUMAN, 2004, p. 34-35) 
          A principal consequência dos projetos modernos, sejam elas intencionais ou não, é o refugo humano, as pessoas que não se enquadram nos ideais futuros. Podemos ver isto claramente nos regimes totalitários, como o nazismo e o comunismo, onde grupos de pessoas classificadas por raça ou classe eram literalmente eliminadas da sociedade “ideal”, mas também podemos ver os efeitos colaterais inevitáveis dos projetos modernos, dentro do qual nos também vivemos, onde massas humanas não se enquadram na forma de vida adota pela sociedade. Bauman cita, logo no início do capítulo, as pessoas que não conseguem se adequar à chamada “sociedade de consumidores”: se antes, na época da “sociedade de produtores”, as gerações possuíam estabilidade quanto ao estilo de vida que levavam (emprego garantido, Estado provedor de bem-estar, estabilidade nas relações sociais), hoje a vida moderna nos pressiona a nos adaptar à fluidez e à instabilidade das mudanças constantes e cada vez mais rápidas na esfera socioeconômica, onde nada mais é garantido, nem mesmo as relações pessoais. A “modernidade líquida” (não comentado no capítulo) de Bauman é o mundo das mudanças rápidas onde nada é permanente e onde tudo passa tão rápido quanto chega. E quanto mais as coisas mudam, mais projetos surgem para tentar reparar os estragos dos projetos anteriores. No dizer do autor, vivemos num “excesso de produção de projetos” (p. 35) acreditando que cada um trará a solução dos problemas criados, criando assim novos problemas futuros. Cada vez mais projetos, cada vez mais novos problemas, cada vez mais novos refugos humanos.
(Zygmunt Bauman, 19/11/1925 - 09/01/2017)

          É inerente à modernidade a necessidade de transformar a realidade. O homem moderno não se satisfaz com o mundo “que aí está” e almeja o mundo ideal futuro imaginado, pensado e aplicado através do projeto. Nisto subjaz a concepção de que a natureza humana é frágil, que está à mercê de forças que ela não pode controlar. Bauman resgata uma passagem de Francis Bacon que diz “a natureza, para ser comandada, deve ser obedecida”. O homem moderno, porém, não tomou este enunciado como um chamado à humildade, e sim ao desafio. Portanto, a natureza, seja no sentido material ou humano, deve ser controlada pelo homem na expectativa de superar as crises e desastres do passado. Se na pré-modernidade era a irracionalidade e a superstição de lançava o homem ao desastre, então caberia à razão guiar a humanidade para um futuro seguro e luminoso: 
"Guiada pelas leis humanas, a humanidade seguiu em frente se arrastando, enquanto era fustigada, pressionada e atormentada pelas forças da irracionalidade, do preconceito e da superstição. Comparado com a parte inumana do universo que não conhece ‘erro’, o passado humano só podia aparecer como uma estufa da estupidez e da malevolência, e como uma longa sequência de crimes e erros. A única ‘lei da história humana’ que se podia imaginar era a necessidade de a razão assumir onde a espontaneidade humana havia falhado de maneira espetacular "(BAUMAN, 2004, p. 40-41)
          A modernidade é (...) um estado de perpétua emergência”, diz Bauman, sem a qual cairíamos no caos, na ausência total de normas e, portanto, de ordem. “A modernidade é uma condição da produção compulsiva e viciosa de projetos” (p. 41). 
          Se há projetos, então há agentes, há alguém que pensou neles antes que fossem aplicados. A pergunta que fica é: quem cria os projetos? De onde vêm as ideias que guiam sua implementação e quem as aplica? Bauman afirma que o principal autor é o Estado-nação moderno (aqui ele ignora os agentes individuais, como políticos, acadêmicos, ideólogos, etc). Mesmo em declínio, “a despeito do acúmulo de evidências sobre o status ficcional das afirmações de soberania do Estado”, seu “monopólio permanece incontestável ainda hoje” (p. 45). Bauman é incisivo quanto ao papel do Estado na formulação da ordem, incessantemente almejada pelos projetos da modernidade. E da ordem surge o refugo humano:
“Por toda a era da modernidade, o Estado-nação tem proclamado o direito de presidir à distinção entre ordem e caos, lei e anarquia, cidadão e homo saucer*, pertencimento e exclusão, produto útil (= legítimo) e refugo.” (2004, p. 45)
          Interessante notar que autores de diferentes matizes, como Eric Hobsbawn  ("Nações e Nacionalismos") e John Lucks ("O Fim do Século XX"), provavelmente concordariam com o enunciado sobre o Estado-nação, dado que os dois historiadores consideravam o nacionalismo sentimentos ainda muito vivos e atuantes até poucas décadas atrás. É do nacionalismo que o Estado-nação moderno bebe de suas forças, retroalimentando-o.

          O projeto da modernidade, capitaneado pelo Estado-nação moderno, comporta múltiplos projetos que se entrecruzam, se sobrepõem, se complementam, se anulam e entram em choque.  Numa sociedade em constante e cada vez mais rápida mudança, as gerações encontram-se angustiadas frente à perda de estabilidade, seja no trabalho, seja na vida pessoal. É o caso da chamada Geração X, com a qual Bauman inicia este capítulo que também é início do livro: fortemente atingidos pela instabilidade socioeconômica, a Geração X, composta por pessoas nascidas entre as década de 1960 e 1970, foi fortemente afetada por sofrimentos até então desconhecidos, um novo tipo de mal-estar que se somatiza, por exemplo, em doenças como a depressão. Este mal-estar é o medo de um mundo que não fornece mais segurança de qualquer tipo, nem mesmo material. 
          Derrubado o senso do eterno provindo das grandes religiões como o cristianismo, a sociedade moderna, ao avançar à pós-modernidade, perdeu qualquer eterno no qual se agarrar, e tenta fazer dos seus projetos planos que durem para sempre, que sejam tão eternos quanto a mensagem divina. Na medida em que os projetos se desenvolvem, novos problemas surgem e projetos antigos desaparecem. Aqueles que se viam falsamente confortados pelo emprego estável, pela vida fisicamente segura e pelas relações duradouras, agora veem-se no meio de novas tempestades causadas por novos planos que planejam tirá-las de campo. Decisões políticas, planos empresariais, crises dos mais variados tipos que ninguém sabe de onde e quem começou, guerras do outro lado do mundo... Tudo concorre para a instabilidade. O refugo humano por vezes se recicla, mas se acumula na medida em que a modernidade caminha e tenta recriar o Paraíso perdido das gerações passadas. O projeto é a tentativa de recriar este Paraíso, que está lá, fixado no eterno, e que não pode de maneira alguma ser estabelecido neste mundo.


* Categoria do antigo direito romano que definia a pessoa fora da jurisdição humana e divina. Esta pessoa era considerada desprovida de valor (BAUMAN, 2004).