quinta-feira, 23 de julho de 2020

Dostoiévski e a mentalidade de nosso tempo


          As obras de Fiódor Dostoiévski são extensas e incrivelmente ricas em muitos aspectos. Desde os complexos traços dos personagens até a abordagem de temas existenciais, o escritor consegue apresentar com muita perspicácia e conhecimento os problemas pessoais e sociais que envolvem o destino do homem e que compõem o sentido mais profundo de seu trabalho.

          O drama da existência não é seu único tema. Dentro deste, o autor mergulha nos acontecimentos e dilemas de seu país do século XIX e apresenta com clareza os movimentos políticos e a atmosfera psicológica que haveria de varrer a Rússia e o mundo a partir do início do século XX.

          Disseminando ideias deturpadas acerca do homem e do mundo e remando contra a própria condição humana, as criações de Dostoiévski apontam este caminho futuro. Rodion Románovich Raskólnikov em "Crime e Castigo" com sua atitude e moral revolucionária, Piotr Stiepánovitch Vierkohviénski e seus parceiros em "Os Demônios" com seu cinismo, militância e ação violenta, e Ivan Pávlovitch Karamázov em "Os Irmãos Karamázov" com sua soberba e relativismo ateu são alguns dos personagens que se apresentam como protótipos de personalidades tirânicas, imorais e psicóticas que em algumas décadas viriam a inspirar e liderar em todo o mundo os horrores da revolução, da guerra e do genocídio. 

          Mas é num trecho da obra "O Idiota" que o escritor revela sua capacidade de antever com bastante precisão essas possibilidades futuras. 

          No longo trecho reproduzido abaixo, a personagem Lisavieta Prokófievna assiste à uma discussão entre os amigos do personagem principal, Liev Nikoláievitch, o príncipe Míchkin, dentre eles um grupo de jovens niilistas e, absorvida e transtornada pela atmosfera de loucura reinante no ambiente, desabafa:

"Veja só, Ievguiêni Pávlovich, se até o senhor acabou de declarar que o próprio defensor declarou em um julgamento que não existe na mais natural do que matar seis pessoas movido pela nobreza, então é o final dos tempos. Isso eu ainda não tinha ouvido falar. Agora tudo ficou esclarecido para mim. Veja esse tartamudo, por acaso não degola um (ela apontou para Burdovski, que olhava para ela com extraordinária perplexidade)? Aposto que degola! Ele talvez não aceite o teu dinheiro, os dez mil, e não o aceite por uma questão de consciência, mas à noite ele aparece e te degola, e leva o dinheiro do cofre. Leva por consciência! Isso para ele não é uma desonra! É um 'impeto de desespero nobre', é a 'negação' ou sabe lá o diabo o quê... Arre! Tudo anda de pernas para o ar, tudo às avessas. A moça está crescendo em casa, de repente no meio da rua pula para dentro de uma carruagem: 'Mãezinha, há poucos dias eu me casei com um tal de Kárlitch ou Ivánitch, adeus!'. Então, a seu ver, essa é a boa forma de agir? Naturalmente digna de respeito? Questão feminina? Esse menino (apontou para Kólia), até ele discutiu comigo alguns dias atrás dizendo que isso é a 'questão feminina'. A mãe pode até ser uma imbecil, mas ainda assim tu deves ser um homem com ela!... Por que entraram há pouco de cabeça erguida? 'Não ousem aproximar-se': estamos entrando. 'Deem-nos todos os direitos, e quanto a ti não te atrevas a gaguejar diante de nós. Concede-nos todas as honras, mesmo aquelas que não existem, e quanto a ti, vamos tratá-lo pior que o último lacaio!' Procuram a verdade, insistem em seus direitos, mas o caluniaram como um desonesto artigo. 'Nós exigimos e não pedimos, e o senhor não ouvirá nenhum agradecimento de nossa parte porque nós estamos agindo para satisfazer a nossa própria consciência!' Que moral: e já que não haverá nenhum agradecimento de tua parte, então o príncipe pode te responder que ele não sente nenhuma gratidão por Pavlischov, porque Pavlischov fazia o bem para satisfazer a própria consciência. Mas tu contaste apenas com a gratidão dele para com Pavlischov: porque não foi de ti que ele pegou dinheiro emprestado, não é a ti que ele deve, então com quê tu contavas a não ser com gratidão? Como é que tu mesmo vai recusá-la? É uma loucura! Reconhecem a sociedade como bárbara e desumana porque ela difama uma moça seduzida. E se tu reconheces que a sociedade é desumana, então reconheces que essa sociedade causa dor a essa moça. E já que causa dor, como é que tu mesmo expões essa moça nos jornais diante dessa mesma sociedade e exige que isso não seja doloroso para ela? É uma loucura! Vaidosos! Não acreditam em Deus, não acreditam em Cristo! Mas acontece que os senhores estão de tal forma corroídos pela vaidade e pelo orgulho que vão acabar devorando uns aos outros, é isto que eu prevejo para os senhores. Isso não é uma bagunça, isso não é o caos, isso não é o horror?" (p. 325-326) (grifos meus)

          O discurso irado de Lisavieta é uma profecia do que a Rússia enfrentaria em menos de cinquenta anos (a obra foi divulgada em partes entre 1868 e 1869) e revela, com a devida ênfase de uma alma sã, a perversão moral da mentalidade revolucionária, baseada num relativismo que a subjuga em nome da estratégia política com vistas a formulação de uma sociedade ideal futura.

           No artigo A mentalidade revolucionária, o filósofo Olavo de Carvalho mostra que a cosmovisão dessa mentalidade baseia-se na inversão da concepção do tempo, cuja consequência é a inversão dos fundamentos da moral, não mais baseada na experiência de longa data do passado, mas no tempo ideal futuro, o Paraíso terrestre. Como este futuro não existe na realidade, a nova moral anunciada depende da boca daquele que proclama o ideal futuro, transformando-se no juiz e no carrasco que passa a julgar todas as pessoas e épocas com base em sua projeção mental.

          Esta mentalidade está resumida nas palavras dos niilistas repetidas por Lisavieta, que proclama: "Nós exigimos e não pedimos, e o senhor não ouvirá nenhum agradecimento de nossa parte porque nós estamos agindo para satisfazer a nossa própria consciência!" 

          O que poderia haver de mais soberbo do que exigir segundo a consciência? O que haveria de mais relativo do que medir as coisas por sua consciência, sua própria subjetividade? E onde está esta consciência senão no ideal subentendido por detrás de uma exigência moralizante?

          Se a consciência publicamente proclamada é a medida da nova moral, então a moral advinda da experiência da realidade é inválida e substituída por um parâmetro totalmente subjetivo, portanto, mutável. Na falta de uma referência fixa, vencerá a moral que se impor pela astúcia e pela força, transformando-se ela mesma na medida da realidade.

          Os niilistas de Dostoiévski acreditavam poder se impor aos outros pelas palavras intimidatórias e o desprezo sarcástico. Proclamavam a demolição de todos os valores e da ordem social acreditando que disto surgiria espontaneamente uma nova sociedade. 

          A mencionada "questão feminina", em voga na Rússia de então, o ateísmo, a "nobreza" da ação revolucionária expressa, nas palavras da personagem, pela coragem de matar por um ideal nobre, eram (e ainda são) princípios de ideias revolucionárias, que no século XX mudaram de conteúdo, mas não de forma. Podemos tirar a questão feminina e incluir a raça, a minoria oprimida, a questão de gênero, incluir mesmo a questão religiosa, mudar a tática da violência para a propaganda, mas a estrutura da mentalidade continua a mesma: transformar o mundo em nome de um ideal futuro subjugando todas as coisas ao objetivo autoproclamado.

          Quando Stálin perseguiu e matou seus próprios correligionários a partir de 1934 e deu início ao Terror Vermelho para continuar a construção do socialismo, quando Hitler eliminou a S.A. de Ernst Rohm matando os que não podia controlar diretamente para garantir a unidade do poder nazista, quando os militantes chineses mataram uns aos outros na Revolução Cultural e se engalfinharam numa luta pelo poder após a morte de Mao Tsé-Tung para continuar seu legado, quando os movimentos anticoloniais voltaram-se uns contra os outros na África e na Ásia como na Guerra Irã-Iraque e em inúmeras guerras civis acreditando levar seus povos à libertação; quando hoje, os extremistas islâmicos travam batalhas uns contra os outros e demais grupos religiosos acreditando lutar pela sociedade santa; quando os narcotraficantes matam e envenenam milhões de pessoas alegando realizar com isso justiça social, quando mães matam os próprios filhos por considerá-los um estorvo ainda antes de nascer. 

          E quando todos eles, em nome do ideal futuro, massacraram e ainda massacram milhões de pessoas que dizem honrar e defender, é impossível deixar de lembrar o que Dostoiévski, sensível ao drama da condição humana, declarou pelas palavras de Lisavieta:

É uma loucura! Vaidosos! Não acreditam em Deus, não acreditam em Cristo! Mas acontece que os senhores estão de tal forma corroídos pela vaidade e pelo orgulho que vão acabar devorando uns aos outros, é isto que eu prevejo para os senhores. Isso não é uma bagunça, isso não é o caos, isso não é o horror?

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