quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Brasil: um clube ou uma nação?

(Cristo Redentor e Maracanã: símbolos de um país.)

          Uma das coisas que mais me impressiona no Brasil é a capacidade do futebol de mobilizar as pessoas. Neste exato momento em que escrevo ouço o foguetório de torcedores do Grêmio comemorando a vitória do time contra o Barcelona do Equador pela Libertadores da América. Há poucas horas eu estava num encontro com amigos, e um dos temas que agitavam a conversa era o jogo, e depois alguns foram embora para acompanhar a partida.

          Isto não é nada se comparado ao que acontece na Copa do Mundo. Me recordo da Copa de 1994, época em que eu era aluno do ensino fundamental, quando as aulas era suspensas no meio da tarde para todos acompanharem os jogos do Brasil. Também me recordo, na Copa de 2006, quando andava a pé por uma avenida de Porto Alegre em direção ao Centro com parte da cidade engarrafada antes das 16 h devido à pressa das pessoas para assistir ao jogo do Brasil contra o Japão. Outro episódio interessante foi em 2010: exatamente num dos jogos da nossa seleção eu estava deitado num divã numa sessão de psicanálise. Enquanto o Brasil mergulhava nos campos da África do Sul, eu mergulhava no meu inconsciente. Apesar da tentação de querer assistir ao jogo e me submergir na emoção da massa eu sabia dos efeitos duradouros do trabalho que na época realizava.

(Rua da Manaus enfeitada para a Copa de 2014: mobilização em massa em torno do futebol.)

          Olavo de Carvalho acertou em cheio quando afirmou em um de seus podcasts no Blog Talk Radio que o Brasil não é um país, mas um clube. Uma sociedade que carece de coesão compensa sua carência emocional e sua falta de unidade num apego superficial e num ufanismo tosco, que pode ser tanto os louvores à Floresta Amazônica quando à seleção brasileira de futebol. Esta carência emocional também se apresenta no poder. Para Gilberto Freyre, a sociedade brasileira é uma espécie de corpo mole que carece de uma estrutura, uma firmeza que garanta ordem e capacidade de mobilização. É também um povo com gosto pelo sadismo, o vitimismo e o sacrifício exagerado. Daí a necessidade do brasileiro de um poder, uma mão de ferro que venha lhe guiar e ao mesmo tempo justificar seu caráter sofrido, como comenta o sociólogo recifense em Casa-Grande & Senzala:
"...no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar de 'povo brasileiro' ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático.
Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado de 'princípio de Autoridade' ou 'defesa da Ordem'". (p. 114) 
          O futebol ajuda a compensar em parte esta falta de unidade ao mesmo tempo em que mexe e justifica a carência emocional do povo. Sentimo-nos como participantes de uma emoção comum, uma nação que se entorpece emocionalmente com os desafios e as conquistas de um time. Na falta de um objetivo comum, de uma imagem de país, de um plano para o futuro, de um verdadeiro sentimento comum em torno destes princípios (veremos que Max Weber definiu "nação" como uma "espécie particular de comoção" e Benedict Anderson como uma representação cultural, mas ambos concordam no compartilhamento de valores e num destino político comum), cabe a nós nos apegarmos ao que nos resta ou ao que achamos ser importante, mesmo que seja evidentemente banal.

          Enquanto faltar uma alta cultura que dê ao povo brasileiro uma verdadeira imagem de si mesmo, continuaremos no apego às caricaturas passageiras. Não há nenhum problema em gostar ou  mesmo se mobilizar pelo futebol (eu tenho um time para o qual torço e dificilmente perco os jogos da Copa do Mundo), mas há de se perguntar por que algo tão fugaz e superficial é capaz de mobilizar e mexer tanto com a maioria das pessoas de forma que nenhum outro poder é capaz de fazer. Carecemos não só de sentimentos verdadeiros, mas sentimentos profundos, um vínculo que nos faça sentir parte de uma família que lute diariamente para honrar a camisa que veste. Uma nação é muito mais do que uma "pátria de chuteiras" ou um clube: é o sentimento de pertença a um grupo que compartilha dos mesmos valores e olha para o seu destino como um projeto comum a todos, muito além dos noventa minutos de jogo. 

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O dilema do trabalho: tanto esforço para quê?


          Ao longo de toda a minha vida pensei que a atividade profissional tivesse como objetivo principal "fazer o que se gosta". Demorei muito para ver que isto não era verdade. Pior: arraiguei em minha mente a ideia de que o único trabalho viável era aquele vinculado a este gosto ou a uma necessidade intrínseca. De fato, o trabalho é vinculado a uma necessidade (quem não trabalha não come ou depende do trabalho dos outros), mas isto não tem nada a ver com o gosto daquilo que se faz. Prazer e necessidade estão dissociados, e é melhor trabalhar com desgosto para matar a fome do que morrer de inanição enquanto se evita um ato desagradável. 

          É muito provável que a maioria das pessoas já tenha alguma vez se perguntado "de onde veio tudo isso?" enquanto olhava para sua cidade, o local em que vivia ou as paisagens que avistava. Tudo depende estritamente do esforço humano. Esta é uma das ideias base da obra A Rebelião das Massas, de Ortega y Gasset: o mundo que "está aí" só está aí por um enorme esforço combinado de gerações passadas ao qual o homem médio moderno, o "senhorzinho satisfeito", ignora e dá pouca importância. É muito fácil desrespeitar as leis quando não se tem em mente que o esforço de se organizar uma sociedade, cuja ordem está formalmente expressa nas leis, é o que mantém de pé a sociedade na qual vivemos. Se alguém assalta uma loja ou joga lixo no chão é porque ignora, guardada as devidas proporções, o esforço combinado para que um produto chegue a uma prateleira ou o trabalho organizado de dezenas de pessoas para manter o ambiente minimamente belo e agradável.

(Hong Kong, uma das cidades mais ricas e desenvolvidas no mundo. Grande esforço sem sentido?)

          Toda a vida que possuímos depende de uma combinação de esforços dos antepassados, muitos deles desagradáveis e impostos pelas suas próprias escolhas. O conforto é, no fundo, uma ilusão fundamentada no esforço precedente. Mas as pessoas das gerações passadas escolheram isso, e as pessoas de hoje também. É a vida voltada à busca do conforto, da posse, da criação de riqueza para o bem-estar físico e mental, para o prazer, para a misteriosa "felicidade",  para o progresso cuja grande realização foi dar à humanidade um maior domínio sobre a natureza e satisfazer os desejos mais profundamente humanos. Vivemos a "era burguesa" do livro O Fim de Uma Era, de John Lukacs. Para o historiador húngaro, a ideia de um progresso histórico baseado no desenvolvimento da ciência desembocou no mundo atual, como se a ciência pudesse se desenvolver de forma cumulativa e linear, levando o mundo sempre "para frente" e "superando" os tempos passados. Mas este mundo, como bem coloca, está em cheque. Não porque o trabalho para a conquista deste mundo desenvolvido seja desagradável, mas porque o domínio da natureza e da própria condição humana tem seus limites.

          O trabalho não é só prazer, muito pelo contrário, mas também não é puramente um esforço em direção ao progresso, à conquista do conforto e à realização de nossos desejos. No dia-a-dia vivemos a contradição de que quanto mais nos esforçamos no trabalho mais desejamos o seu fim, ao exemplo celebrado final de semana, como se o trabalho fosse intrinsecamente ruim e o ócio bom. O trabalho é um esforço por algo maior, maior mesmo do que a própria necessidade de sobrevivência ou a posse de fortunas. Afinal, que sentido há numa atividade que se resume a pastar para comer ou conquistar conforto em nome do prazer? O corpo morrerá e todos os bens aqui ficarão. A alma que um dia habitou a Terra irá embora sem os espólios de seu esforço. 

          Creio que o trabalho seja um sacrifício para a Eternidade. É para o Alto que nossos corpos devem se dobrar, mesmo porque nem mesmo nossos corpos são nossos, e nossos esforços se resumirão a uma fagulha frente ao Mistério que abrange e se perde nos confins de nossa existência mundana.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Ignorância e desprezo: um microcosmo do inferno


          No último dia 11 de outubro, escrevi a seguinte mensagem no Facebook:

"As pessoas imaginam que o oposto do amor é o ódio. Não é. O oposto é o desprezo. Não há coisa pior no mundo do que alguém, a não ser por uma razão muito justa, lhe dar as costas de graça, por besteira ou mesmo por má índole. Confesso que há uma pessoa que faz isto comigo toda a vez que me vê, não por má índole, mas sem razão clara. Prefiro não especular o real motivo da atitude, mas ponho a mão no fogo: é uma sensação absolutamente horrível, que exige de nós uma defesa psicológica e espiritual firme e, dependendo da situação, uma esforço recíproco de indiferença. Do contrário o sentimento é de ser simplesmente destruído, de aniquilação interior completa, e o que é pior, de graça, sem motivo algum. Não é à toa que no inferno Deus não fica nos torturando: Ele simplesmente está ausente. O que mata é a falta de amor, o total desprezo. É a coisa mais triste de nossa existência."

          Santo Agostinho já dizia que o Mal não é uma substância: é a ausência do Bem. Por isso mesmo a ação do demônio, mais do que querer nos dominar com sua presença maléfica, tem como principal objetivo nos afastar de Deus. Mesmo porque o inimigo não pode agir onde Deus está presente, ou pelo menos ativo, o que implicaria na Sua presença. A ausência do Bem, a perda completa da presença divina, é a ausência do amor, já que o amor pressupõe o desejo de união. Só ali o demônio pode habitar em definitivo.

          Quando alguém diz "eu te amo" esta pessoa está dizendo "quero ser um contigo"; quando esta mesma pessoa diz "eu te odeio" ela pode até desejar sua ausência, mas precisa de você para externar seu ódio. Você precisa estar presente. Mas a ignorância é um mal que está em outro patamar: quando alguém ignora o outro solenemente, seja fingindo a sua ausência, dando-lhe às costas, desviando o olhar ou agindo com total e absoluta indiferença, o que temos aí não é o amor que deseja a união, nem mesmo o ódio que exige que seu adversário esteja presente: aí temos o nada, o não-presente, o não-ser, a negação absoluta, o oposto da existência. É um não-sentimento, uma não-ação, o Bem que se ausenta por completo. A ausência do Absoluto, do Eterno, de Deus. Em suma: o inferno.

(A espanhola Teresa d´Ávila, santa e doutora da Igreja: experiências místicas essenciais para entender a relação do homem com o mundo espiritual, de Deus aos demônios.)

          Santa Teresa D´Ávila descreveu sua experiência mística do inferno em O Livro da Vida, autobiografia onde apresenta várias de suas experiências místicas e espirituais. Depois de descrever o local que os demônios estavam preparando caso fosse condenada (um buraco encravado na parede) e como seriam as dores do corpo (dado que a alma tem estes registros), a santa destaca as dores da alma, que considera infinitamente piores do que as primeiras:

"Pois então, isso não é nada em comparação com a agonia da alma. Um aperto, um sufocamento, uma aflição tão sensível e com tão desesperada e aflita tristeza que não sei como explicar. Porque dizer que é como estar sempre arrancando a alma é pouco, porque ainda pareceria que outro é que acaba com a vida. Mas aí é a própria alma que despedaça." (p. 297, capítulo 32)

          Não é coincidência que meu relato utiliza "destruição" e "aniquilação interior" para descrever uma recente experiência de desprezo, assim como Santa Teresa fala que a alma se "despedaça" ao estar no inferno. Primeiro porque já havia lido o livro dela em 2011 e segundo porque, ao escrever a mensagem, lembrei deste trecho, que é a melhor tradução possível para expressar o sentimento de ser solenemente ignorado por alguém que se tinha uma relação íntima até pouco tempo e, sem saber exatamente porque, resolveu fingir que você está numa cova. A sensação é absolutamente horrível, um misto de agonia e tristeza que não possui saída e acaba por quebrar as nossas pernas. Guardadas as proporções, este é o sentimento, esta é a situação de alguém que lhe dá as costas e lhe trata como nada, no sentido mais estrito da palavra. É uma dor sem saída e aparentemente sem fim, um microcosmo do inferno.

          Por isso é tão importante e crucial o tratamento decente para com o próximo, o cumprimento do segundo mandamento. É ali que Deus habita, e por isto mesmo Jesus Cristo ensina que o primeiro e segundo mandamentos estão unidos num só: onde há Deus não há ignorância; onde há amor ao próximo Deus necessariamente ali está se manifestando de forma que você e seu próximo sejam um. O que fere uma pessoa não é necessariamente o ataque, mas a ignorância, uma agressão infinitamente mais poderosa do que o ódio e um antídoto perfeito à presença divina.   



domingo, 8 de outubro de 2017

Independência do Sul. Mas para quem?


          Não entendo patavinas sobre o movimento nacionalista na Catalunha e a crise política na Espanha, mas uma coisa é clara: o nacionalismo hoje é instrumento de poderes muito superiores. Ele interessa à União Europeia apenas no sentido de mobilização em torno de uma ideia de "Europa", mas é problemático quando um Reino Unido resolve se retirar legitimamente do bloco ou uma região como a Catalunha entra em agitação nacionalista. Ao mesmo tempo, a Rússia financia e dá apoio político a toda a sorte de movimentos separatistas realizando conferências com seus líderes e abrindo embaixadas de países que não existem, como a Novorrosiya e a Califórnia, para enfraquecer as potências ocidentais, enquanto põe na cadeia (ou mata) seus dissidentes separatistas (duas guerras na Chechênia não deixam dúvidas quanto a isto).

          No caso da Catalunha, a União Europeia não tem tomado posição e mantido o silêncio. Por um lado ela defende a liberdade de expressão e o direito de voto, mas do outro tem receio de que uma Catalunha independente aqueça outros movimentos separatistas dentro do bloco. Já a Rússia tenta expor através da imprensa as fraquezas da UE: anuncia o direito dos catalães à soberania e ao mesmo tempo denuncia a hipocrisia de um Ocidente que fala em democracia mas reprime sua dissidência interna. Acusa também as potências de estimularem a independência de outras regiões quando lhe convém. Até hoje os russos não engoliram a independência do Kosovo em 1999, então região da Sérvia, aliada russa nos Bálcãs, e sempre tocam no assunto quando acusam os ocidentais de hipocrisia.

(Euromaidan, na Ucrânia: apoio do Ocidente e reação da Rússia. Independência difícil.)

          Na Ucrânia a situação também reflete esta oposição Ocidente-Rússia e a instrumentalização da soberania do país pelo poder globalista e o poder russo: de um lado o apoio explícito de lideranças políticas do Ocidente aos protestos conhecidos como Euromaidan que levaram à queda do governo Yanukovich e do outro, em resposta ao primeiro, a anexação da Crimeia e o estopim da guerra pela Rússia através da mobilização de milícias separatistas. Historicamente dividida, a Ucrânia se tornou o Estado-pivô da luta entre os dois lados.

          Assim como se observou recentemente em outras regiões (Timor Leste em 1999, Sudão do Sul em 2011), uma separação do Sul do Brasil não passaria batida aos olhos do mundo. Ninguém parece saber (e eu também não sei) quais seriam os reais efeitos caso o movimento conseguisse atingir seu objetivo. Quando vejo alguém entusiasmado com o slogan "O Sul é o meu país" logo me pergunto se esta pessoa sabe a quem está servindo ao defender esta causa. Da ONU aos grandes bancos, o Brasil já cede docilmente a qualquer pressão internacional, quanto mais cederá uma república menor que  é fruto dele.