quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Os críticos legítimos do poder

 "A verdade é que apenas homens para quem a família é sagrada podem atingir um padrão ou parâmetro que lhes permite criticar o Estado." (G. K. Chesterton, em "O Homem Eterno")

Criticar o Estado implica em duas coisas: saber do que se fala e ter legitimidade para falar o que se fala.
O Estado é uma estrutura de poder que organiza uma autoridade, cuja cabeça varia ao longo dos anos.
Ora, criticar o Estado é questionar sua autoridade (ou daqueles que a detém no momento), o que implica, em contrapartida, se considerar capaz do mesmo papel que a autoridade constituída.
Só homens maduros podem, de forma legítima, criticar o Estado desde que, claro, este mesmo Estado seja dirigido por homens maduros.
A maturidade pressupõe a capacidade de tomar decisões por conta própria e assumir suas consequências, e nenhuma decisão é mais séria, permanente e profunda do que decidir por constituir uma família.
Esta defesa que Chesterton faz da autoridade da família em "O Homem Eterno" baseia-se numa visão típica de toda sua obra: a veracidade que pressupõe um empreendimento tão natural como a união de um homem e uma mulher com seus filhos.
A família dá ao homem o encargo da decisão sobre vidas, cujos frutos virão, em grande parte, da forma como sua autoridade é exercida.
Diria mais: a própria vida gerada é o fruto da decisão, um fruto material inegável.
Portanto, são autoridades de famílias que podem questionar legitimamente a autoridade do Estado, pois ambos são análogos, o que torna compreensível o que é e o que faz o Estado com sua vida e a dos outros.
A crítica ao Estado também se estende àqueles os quais não têm família, mas a consideram sagrada, pois reconhecem a importância de sua existência, a começar por aquela que os gerou e sem a qual sequer poderiam emitir uma opinião.
Não por acaso, o pátrio poder é o grande obstáculo às pretensões estatais de se apoderar de tudo e de todos.
O credo contemporâneo, calcado na moralização (ou imoralização) da sociedade por meios jurídicos e legais, encontra limites em famílias cujos membros compreendem o limite do poder estabelecido e de sua ação.
Pais e mães firmes, bem como pessoas devotas a honrar seus nomes, sabem que o devido respeito à autoridade começa em casa, e que o palácio é apenas uma extensão, por vezes ilegítima, de um poder que depende indelevelmente daqueles que decidem por gerar novas vidas.

domingo, 22 de novembro de 2020

Os engenheiros sociais do covid-19

 

          As medidas de contenção da propagação da covid-19 têm algo de no mínimo curioso, pois partindo da perspectiva de que o isolamento social seria uma medida eficaz para essa contenção, prefeitos, governadores, burocratas e jornalistas de plantão apoiaram ações um tanto esquisitas. 

          Por exemplo: em várias cidades do Brasil, como aqui em Porto Alegre, restringiu-se os horários e o número de ônibus em circulação para desestimular as pessoas saírem de casa e aumentar o isolamento social. Mas quem tinha necessariamente de trabalhar, porque não teve seu estabelecimento fechado por decreto e necessitava simplesmente sobreviver, foi obrigado a esperar horas nas paradas de ônibus e se enfiar numa condução lotada. Realizou-se justamente o contrário do que se desejava evitar.

          O mesmo ocorreu no comércio. Na reabertura dos serviços "não essenciais" (eufemismo para quem não depende de negócios "dispensáveis", segundo a cabeça iluminada de governadores, prefeitos e jornalistas), restringiu-se o horário de abertura das lojas para evitar aglomerações. 

          Ora, se as pessoas não devem se aglomerar, então o horário deveria ser estendido, e não restringido. Deveria ser tomada a medida inversa.

          A lógica dos ônibus e das lojas pressupõe que as pessoas tomam decisões com base na limitação de tempo, e não em suas necessidades e vontades pessoais. É exatamente isto a que chamamos de engenharia social, a tentativa de moldar o comportamento da sociedade por medidas administrativas, pressupondo que as decisões pessoais são tomadas em vista do quadro geral da situação.

          Mas não: as pessoas tomam decisões com base em necessidades e desejos imediatos dentro de um quadro de conhecimento limitado. O imediatismo cotidiano é o principal fator de peso nas escolhas.

          A professora e o médico não deixarão de comprar uma camiseta porque a loja de roupas teve horário de funcionamento reduzido por decreto; eles irão quando a loja estiver aberta. Do contrário, não conseguirão o produto. 

          Ou por acaso vocês não se recordam de decisão estúpida da prefeitura de São Paulo em bloquear as principais avenidas da cidade para diminuir a circulação de carros e aumentar o isolamento social? As pessoas saíram de casa a trabalho buscando outras vias e engarrafaram as que estavas livres. A genialidade dos fanáticos pela engenharia social é impressionante.

          Este é o resultado da combinação de burrice com tirania, combinação que define muito bem o perfil dos auto aclamados engenheiros sociais.

          Como a classe política brasileira é estúpida, mas não suicida, a medida inversa foi tomada nas eleições municipais deste ano: estendeu-se o horário de votação para evitar aglomerações dos grupos de risco e supostamente evitar a propagação do covid-19. Medida acertada, mas evidentemente contrária a tudo o que fora feito até então pois, afinal, a extensão do período do votação afetava diretamente a própria classe política.

          O que vimos neste 2020, tanto no Brasil quanto no mundo, foi a expansão formidável do poder político no controle das liberdades civis mais fundamentais. É da natureza do poder político crescer indefinidamente para tudo administrar sendo apenas barrado por pressupostos e valores que quase sempre surgem de instâncias não políticas, como a vida religiosa, familiar e comunitária.

          A engenharia social do momento força o isolamento das pessoas desmontando o tecido social. O indivíduo se vê isolado perante um poder onipresente e todo poderoso, receoso de ser punido ao buscar contato pessoal com aqueles além de seu círculo familiar imediato, medida que coincide (santa coincidência) com a medidas de prevenção do covid-19. 

          Mesmo assim, o vírus continua a se espalhar pelo mundo e, claro, os decretos sobre sua vida pessoal também.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

"Querer tudo é não desejar nada"

 "Querer tudo é não desejar nada." (G. K. Chesterton)

O ato de querer algo significa que este algo é prioridade, naquele momento, sobre as demais coisas. E a prioridade significa colocar umas coisas a frente de outras.
Querer significa selecionar, desejar algo frente ao resto. Em suma, é estabelecer o senso das proporções (ao menos subjetivamente) numa determinada situação definida no tempo.
Portanto, quem tudo quer nada deseja, pois coloca para si como prioridade todas as coisas ao mesmo tempo.
Isto significa que a realização do querer tudo é impossível, pois a própria ordem das coisas, temporal e espacialmente, impossibilitam que todos os desejos se realizem.
Pessoas que pensam assim, que têm na alma o querer tudo como se o mundo lhe devesse, por direito, fornecer tudo o que deseja, acabam inevitavelmente frustradas, tanto no desejo em si quanto na perda de sentido de vida de uma narrativa não vivida. Isto resume muito da sociedade atual.
Esta passagem de Chesterton, tão sucinta mas verdadeira, adquire proporções ainda mais amplas e consequências ainda mais desastrosas nos dias de hoje.
Ela também remete a outra passagem do capítulo "O Suicídio do Pensamento" em "Ortodoxia", onde nosso escritor afirma que escolher algo implica em rejeitar tudo o mais. E assim voltamos ao ponto inicial deste texto: querer algo é escolher, é priorizar umas coisas sobre as outras.
No mundo de hoje, onde somos permanentemente bombardeados e, por meio de manipulações da linguagem, quase que induzidos a querer tudo ao mesmo tempo, é necessário querer a coisa certa.
Assim, a ordem interior do homem, que manifesta seu querer no silêncio da alma, deve ser a voz que fala mais alto até prender a atenção dos ouvidos que insistem em se render aos apelos do mundo.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Por que a Igreja sempre perdoa

"A Igreja não aceita nada, mas perdoa tudo. O mundo aceita tudo, mas não perdoa nada." (G. K. Chesterton)

É da tradição cristã falar da díade Igreja e mundo. De forma análoga, podemos também falar no transcendente e do imanente, sendo a Igreja a depositária do primeiro e o mundo expressão do segundo. São duas realidades distinguíveis, mas absolutamente integradas.
Igreja e mundo possuem suas leis, que estão em tensão permanente e são apenas harmonizadas pelo espírito entregue à Providência, que tudo governa e nossas almas deve governar.
Para Chesterton, para quem o mundo era um celeiro de banalidades e erros, este é o peso e relevância da Igreja, pois ela nada contra a corrente do mundo, que a todo o instante nos exorta a nadar contra Ela. Esta é a essência da passagem aqui apresentada, exemplo típico dos paradoxos do escritor.
Assim, por expressar as realidades do espírito, a Igreja propõe uma forma de viver que não condiz com a "lógica" do mundo.
Por exemplo: tendemos à inércia, a ficarmos parados e acomodados em nossa condição de vida. O apelo a este acomodamento é do corpo (há também aspectos da mente nisso), realidade do imanente, do mundo. Mas a Igreja, obedecendo à Revelação, nos exorta a transformar o mundo, tanto física quanto socialmente, pelo trabalho, o suor do rosto anunciado no Gênesis. Temos de lutar para vencer o mundo, sobrepor a vontade do espírito às forças do mundo que pesam nossa alma e tendem a nos afastar de Deus.
Por isto a Igreja, que nada aceita, tudo perdoa. Porque sabe que não pode ser condescendente com as tendências do mundo, mas deve perdoar o homem a todo o instante, porque ele é fraco e, cedo ou tarde, há de cair em erros e pecados.
O mundo, por seu lado, tudo aceita, mas nada perdoa. Pois se a pessoa se entrega ao prazer de se acomodar e esperar que Deus ou seja lá mais quem faça algo por ele, acabará na miséria e na morte por inanição.
O homem tem livre-arbítrio, dom divino fruto de Seu amor, para decidir entregar-se aos desejos da carne e esterilizar o espírito. Mas pode, também, lutar para vencer, sempre, até que chegue o dia da vitória, o instante último onde se revelará o peso da balança da vida pendente para o espírito.
Pois, como nos lembra São Mateus, "quem perseverar até o fim, este será salvo".

domingo, 15 de novembro de 2020

O jovem moderno: tijolo para a militância

"Os jovens modernos nunca mudarão o ambiente em que vivem porque estão sempre mudando de ideias." (G. K. Chesterton, em "Ortodoxia")
O jovem, por definição, está buscando uma identidade definitiva e um caminho a trilhar no futuro. Ele testa, aqui e ali, o que pode ou não viver para construir sua narrativa de vida.
Se há uma coisa que o jovem não tem, e diríamos que são poucas as exceções à regra, é constância nas ideias, porque é necessário tomar conhecimento de várias delas para saber qual pode ser o fundamento de sua vida.
A narrativa precisa de um enredo, e este enredo é construído através da experiência.
A situação é muito mais complicada quando se trata do jovem moderno. Este é tão inconstante quanto seu estilo de vestimenta. Está a todo o instante absorvendo o que a propaganda e os professores estão lhe apresentando na TV e em sala de aula.
O jovem moderno acaba por abraçar tudo ao mesmo tempo, o que significa que não abraçar nada. É instigado a todo o instante a transformar o mundo, conferindo-lhe a imagem de modelo de conduta.
Em outras palavras, ao jovem moderno é oferecido todo o tipo de narrativa de vida aparentemente sábia e heroica sob a promessa de viver uma existência abundante e plena de sentido.
Por isto mesmo este jovem é matéria-prima abundante para organizações ativistas. Ele é a face do militante, a pessoa entregue de corpo e alma a uma "causa" convencida de que encontrou a coisa certa a fazer pelo "bem" da humanidade, e por isso mesmo confortável com sua escolha; acredita na ilusão prepotente de que sua narrativa é a única correta condenando as demais ao ostracismo e ao silêncio.
O ambiente do jovem militante é o "coletivo", que lhe dá outro benefício, o de sentir-se emocionalmente aceito a um grupo, a quem devota fidelidade pelo intenso vínculo afetivo.
Com o futuro definido, uma narrativa aparentemente coerente, uma vida emocional satisfeita e um bem a realizar, o jovem moderno, tijolo no edifício da militância, agora sente-se capaz de transformar o mundo e, claro, julgá-lo, como se fosse ele mesmo a encarnação das leis da História.
Não é por acaso que este tipo de gente seja capaz de infringir as leis, cometer crimes, tacar fogo em tudo, e que seus alvos sejam justamente os burgueses, os "fascistas", os cristãos.
Se hoje atentam contra lojas, instituições e igrejas, é porque amanhã atentarão contra as pessoas que estão dentro delas.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O perdão em "Humilhados e Ofendidos"

(Natacha e Vânia representados em filme russo de mesmo nome, 1991)

          Pouco posso dizer sobre a obra "Humilhados e Ofendidos", de Dostoiévski, de leitura recém encerrada. O livro foi publicado em 1861, sendo o primeiro do autor após dez anos de exílio na Sibéria, de onde voltara dois anos antes.

          Certamente, esta não é sua obra mais elaborada nem está entre as mais conhecidas. É no livro seguinte, "Crime e Castigo", que o escritor mostra sua grandeza, e que é, no meu entender, a mais representativa na apresentação dos dilemas morais, da trama psicológica e do drama existencial do homem, ali expostos de forma bastante clara e elaborada, servindo de referência para outras leituras.  

          Ainda assim, Dostoiévski expõe os dramas e contradições da vida em "Humilhados e Ofendidos", mesmo que de forma menos profunda.

          O tema em questão aqui é o perdão. A dificuldade de perdoar é a tônica deste livro que, como o título já diz, apresenta o sofrimento causado pelas injustiças e a recusa por parte dos injustiçados de se desprenderem do ódio e do rancor.

          O enredo é narrado em primeira pessoa por Ivan Petróvich, o Vânia, que vai desenrolando suas memórias passadas ao fim da vida. E na medida em que a trama se revela, junto vêm os sofrimentos dos personagens que, aferrados ao orgulho, nunca ou raramente se dispõe a perdoar.

           É assim com Nikolai Serguêievicth, pai de Natacha, que se ressente da filha que abandona a família para se casar com o impulsivo e ingênuo Aliócha, filho do príncipe Piotr Aleksándrovitch. Este último um homem mau-caráter cheio de amor-próprio capaz de destruir vidas unicamente pela preservação de seu status e por vantagens financeiras.

          De outro lado, Vânia conhece inesperadamente Nelli, cujo nome verdadeiro é Elisa, e seu avô Jeremias Smith. Aos poucos, a trama revela a vida da falecida mãe de Nelli, o rancor persistente na família da garota, sua misteriosa doença e o vínculo do príncipe com a sofrida teia de relações mal resolvidas.

          Importante notar como estes personagens são direta ou indiretamente afetados pelo problema do perdão, que só a muito custo vem à tona, e a capacidade que corações puros e sofridos têm de romper as correntes que amarram pessoas embrutecidas pela dor.

          Nas obras "Crime e Castigo" e "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski mergulha mais fundo na tensão entre o rancor e a libertação advinda do perdão, e como este ato leva a uma radical mudança de vida e à redenção da alma humana.

          "Humilhados e Ofendidos" é o retrato da miséria causada pela falta de perdão, que arrasta não só os personagens obstinados no erro como afeta diretamente os mais íntimos, causando sofrimentos desnecessários e impedindo a realização de planos de vida, como ocorre com os personagens mencionados. 

           Assim, Dostoiévski revela a capacidade da literatura de lançar luz sobre problemas que de outra forma não seriam visíveis aos nossos olhos, pois tentar entender a trama do sofrimento através de uma realidade possível pode calar muito mais fundo do que simplesmente o ouvir falar.

          O que ouvimos podemos nem mesmo entender e simplesmente esquecer, mas o que nos esforçamos para assimilar se instala na alma de forma muito mais consistente. E Dostoiévski é um gênio na capacidade de abrir nossos olhos.          

domingo, 8 de novembro de 2020

Quando os impérios sucumbem

 "Eu creio que a primeira coisa que me fez detestar o imperialismo foi a afirmação de que o sol nunca de põe no Império Britânico. Para que serve um país sem pôr-do-sol?" (G. K. Chesterton)

Chesterton possuía um olhar muito crítico do Império Britânico, pois o considerava um exagero e algo distinto e distante da realidade do simples britânico. Sua vastidão criava um sentimento de grandeza nas pessoas, mas pouco contribuía para suas vidas de fato enquanto cidadãs.

O comentário aqui reproduzido é muito típico de nosso escritor. Afinal, que raios de importância há o pôr-do-sol para um império que depende do poder efetivo para se sustentar? Como pode um poético fenômeno natural ser mais relevante do que a armada britânica?
Pois é exatamente este o ponto. Se um poder imperial (e poderíamos acrescentar: qualquer poder político) esquece que sua legitimidade está nas coisas mais simples, que é estar próximo das necessidades e aspirações das pessoas comuns, cedo ou tarde ele irá sucumbir.
Este foi o destino do Império Britânico que, incapaz de governar vastas terras distantes com populações crescentes em número e hostilidade, liderando politicamente povos que pouco ou nada tinha a ver com seu povo de origem, dissolveu-se em meio a uma Grande Guerra e diversas revoltas, como foi a tumultuada descolonização da Índia.
Podemos ir mais longe: se o sentido da força política é o poder e a grandeza em si mesmos, então sua força acaba por se tornar seu túmulo, porque os meios de vida e governo não são jamais fins em si, mas meios.
A glória britânica, representada pelo império onde o sol nunca se punha, estava grandemente calcada na própria grandeza, cujo peso acabou por ser sua ruína.
Ademais, todo o poder e força é cíclico. O Império Romano se sustentou por oito séculos, o Império Sacro-Germânico outros oito, a União Soviética 78 anos e o Terceiro Reich apenas 12.
Destes impérios, muitos sucumbiram porque não eram legítimos ou perderam sua legitimidade. Em algum momento, perderam a capacidade de contemplar pôr-do-sol ou foram destruídos por aqueles que acreditavam que as coisas simples deveriam ser subjugadas e transformadas pelo pesado braço do Estado.
Há um espírito que sustenta o mundo. Sem ele, toda a ordem e todo o império são apenas esqueletos que, cedo ou tarde, desabarão por si mesmos.

sábado, 7 de novembro de 2020

O insistente retorno a Roma

"Onde o catolicismo é expulso como uma coisa antiga, ele sempre volta como uma coisa nova." (G. K. Chesterton, em "Todos os caminhos levam a Roma") 

Não existe civilização secular, "laica", não-religiosa.
Todas as civilizações humanas têm algo de religioso na base, pois não pode haver civilização que se fundamente na desorientação e desconexão com a realidade em seu todo, cosmovisão provida pelas tradições religiosas.
Até pouco tempo, esta cosmovisão estava disponível apenas nas religiões. Hoje, as ideologias e mentalidades modernas buscam fazer o mesmo papel através de fórmulas pré-determinadas que enclausuram a totalidade da realidade numa gaiola. É a explicação de tudo e de todos mediante fórmulas simples, mas falhas.
O exemplo mais flagrante é o marxismo, cuja filosofia persiste com sua insistente miragem sedutora de uma transformação integral da sociedade humana e, por consequência, de sua relação com o cosmo em prol do "mundo melhor". Não importa o quanto seus movimentos políticos fracassem, pois sua força provém da insaciável sede existencial do homem.
A persistência de ideologias é mais uma prova da persistência das tradições religiosas, totalizantes por excelência, mas não escravizadoras do espírito. É mais uma prova de que, sim, o homem é um ser essencialmente religioso, mesmo que se negue esta afirmativa.
Não por acaso, Chesterton escreveu um livro chamado "Todos os caminhos levam a Roma", origem desta citação. Queira ou não, o homem busca a Verdade, cujo depósito institucional está em Roma, ainda que esta Verdade, obviamente, não se limite há uma instituição mas se manifeste na realidade mesma.
Tiremos o catolicismo de cena e teremos ideologias falhas que acabarão por ruir deixando em seu lugar um catolicismo novo; ou mesmo uma religião que dê ao homem uma explicação satisfatória para a vida.
Mas Chesterton soa profético em sua afirmação. Hoje, com a crescente hostilidade cultural ao catolicismo, ao mesmo tempo emergem e se destacam movimentos onde esta fé vive e mesmo retorna. É o caso dos movimentos marianos, que tomaram impulso desde o pontificado de São João Paulo II, e do retorno às práticas tradicionalistas com Bento XVI.
Onde emerge a apostasia, o Espírito age para defenestrar o espírito do tempo. Pois é disto que se trata: o homem, ao render-se ao seu tempo, afunda no vazio e na depressão, e tem como única alternativa retornar para a casa que lhe oferece a eternidade.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O abandono da fé e as "novas religiões"

 "As Novas Religiões estão de muitas maneiras adaptadas às novas condições; mas é só às novas condições que estão adaptadas. Quando essas condições tiverem mudado daqui a um século, as questões nas quais essas religiões insistem terão se tornado quase sem sentido." (G. K. Chesterton, em "Igreja Católica e Conversão", em 1926)

Quem ler ao menos parte da obra "Igreja Católica e Conversão" verá que Chesterton trata do catolicismo como uma religião nova. Nova porque ela vem de encontro à mudança de vida, remexe a forma de pensar meramente tradicional, tomado aqui o termo "tradicional" como a herança pura e simples de um passado ainda vivo.
Esta tradição é estéril, não-espiritual, ao passo que o catolicismo é uma herança viva, espiritual, mesmo que a tradição vigente diga o contrário.
Mas as "novas religiões" que Chesterton cita nesta passagem do mesmo livro são aquelas que vêm como novidade, mas são apenas uma amálgama de crenças e elementos que adaptam a alma humana às condições do momento.
Hoje poderíamos ver essas novas religiões na New Age, no neopaganismo, no espiritismo, em elementos orientalistas e assim por diante; todos eles, em maior ou menos grau, costurados e adaptados não à verdade, mas ao gosto do cliente.
Não por acaso, os sociólogos chamam essa atitude de bricolagem, a criação individual de uma crença puramente pessoal e que não necessariamente condiz com a realidade.
Ocorre que Chesterton falava dessas "novas religiões" já em 1926, ano no qual esta passagem foi escrita, mostrando que há muitas gerações o Ocidente vem sendo seduzido por crenças espirituais não cristãs ou mesmo anticristãs.
Onde morre a fé cristã (e católica em particular), abre-se o terreno para novas religiões.
Hoje, Chesterton veria, como já viu em sua época, a penetração do islam na Europa. A fé islâmica só poderia progredir em terreno aberto onde o cristianismo foi abandonado.
E não adianta que governos e organizações reclamem oposição ao islam. A esfera política pouco pode contra o crescimento desta fé abraâmica, que historicamente tem se mostrado hostil não apenas ao cristianismo como às formas de vida do Ocidente.
Religião se opõe à religião. Se o Ocidente escolher abraçar as "novas religiões" ou seguir meramente tradições estéreis, será seduzido e morrerá nos braços do islam ou de qualquer outra força religiosa equivalente.
Chesterton é um exemplo, tanto nas obras quanto em sua vida pessoal, da capacidade que uma fé verdadeira possui de transformar vidas e estabelecer uma cultura forte ancorada numa compreensão profunda da realidade. Esta é a única barreira contra a entrada de outras religiões tradicionais hostis à fé cristã, quem dirá contra crenças da moda compradas como produtos nas prateleiras de supermercados.