sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A unidade dos cristãos: o exemplo do Céu e o empenho na Terra

(João Paulo II recebendo no Vaticano o Patriarca Bartolomeu I do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, em 29 de junho de 2004.) 

          Em 25 de maio de 1995, o então Papa João Paulo II divulgou a encíclica Ut Unum Sint (Que Todos Sejam Um) exortando os católicos ao empenho no movimento ecumênico. A encíclica baseia-se principalmente no decreto Unitatis Redintegratio, do Papa Paulo VI, divulgado durante o Concílio Vaticano II em 1964 e que lançou as bases do ecumenismo da Igreja Católica. João Paulo II faz uma série de exortações e desdobra várias ações e análises a respeito do ecumenismo católico, principalmente com relação à Igreja Ortodoxa, principal foco do decreto de seu antecessor. 

          O movimento ecumênico tem por objetivo edificar uma única igreja visível, neste caso, uma união de todas as igrejas e comunidades cristãs na Igreja Católica. É desejo de Jesus Cristo: "que todos sejam um (...) para que o mundo creia que Tu me enviastes" (Jo 17, 21). As divisões e discórdias são um escândalo que ofende a Deus e dão contratestemunho de Sua palavra.

          Uma passagem da encíclica, porém, merece especial atenção por seu profundo significado. Ela pode soar surpreendente para católicos e outros cristãos desavizados ou negligentes com a misericórdia divina. O segundo parágrafo do número 84 da encíclica faz esta afirmação:

"Embora de modo invisível, a comunhão ainda não plena das nossas comunidades está, na verdade, solidamente cimentada na plena comunhão dos santos, isto é, daqueles que, no termo de uma existência fiel à graça, estão em plena comunhão de Cristo glorioso. Estes santos provêm de todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, que lhes abriram a entrada na comunhão da salvação." [grifo meu]

          Em outras palavras: há santos de outras igrejas e comunidades cristãs que chegaram ao Céu por meio de seus respectivos grupos, dado que participavam da economia da salvação. João Paulo II lembra em alguns momentos a existência de mártires de outras igrejas, sendo estes os principais testemunhos da existência de uma unidade verdadeira que ainda não se efetivou no seu sentido eclesiológico. As palavras reproduzidas acima são de um Papa canonizado pelo Papa Francisco em abril de 2014. Não é pouca coisa. 

        Não há heresia alguma aqui. Muito pelo contrário: há uma declaração oficial de reconhecimento da operação da salvação divina por outras igrejas que, por compartilharem princípios básicos da fé em Jesus Cristo, abriram a porta do Céu aos seus fiéis. 


          O trecho afirma que a unidade almejada pelo ecumenismo já existe no Céu. A unidade dos cristãos é efetiva no plano do Eterno, e esta unidade se dá não só na profissão de uma mesma fé como por dois pilares que a encíclica de João Paulo II e o decreto de Paulo VI exortam continuamente: o amor e a caridade. Não são palavras genéricas e vazias. O primeiro é o ânimo da ação pela unidade, o segundo a própria ação. No Céu, ambos existem de forma plena e, portanto, a divisão entre igrejas não só é desnecessária como contraproducente. São as coisas do mundo que causam a divisão, as paixões e os desentendimentos, alvos preferenciais da ação demoníaca que nos atinge principalmente através da mente atiçando o erro e o orgulho.

        "Assim na Terra como no Céu", diz o Pai Nosso. O mundo deve lutar para seguir o exemplo do Paraíso. A unidade, inevitável num contexto onde o amor reina de forma absoluta, é o objetivo no qual mira o ecumenismo. Sempre haverá divergências, dúvidas, questões a resolver, mas é o milagre do Céu operando na Terra que trará a unidade de todos os cristão na Igreja Católica. A unidade é graça do Espírito Santo, que João Paulo II tantas vezes menciona em sua encíclica, e é só através desta graça que mil anos de complicadas divisões e ressentimentos serão superados. Qualquer adendo, desvio ou fórmula mágica para a unidade é mera vaidade humana.

A vida em dois tempos


          Na quarta-feira passada, dia 21, participei com meu grupo de oração, o São José, do Cerco de Jericó. O evento, que originalmente dura sete dias, foi feito em apenas pouco mais de seis horas, contando aí as duas missas de início e fim do cerco. Realizamos sete caminhadas por dentro da nave da Igreja Nossa Senhora da Paz em Porto Alegre reproduzindo os sete dias do cerco à cidade de Jericó conforme relata o Antigo Testamento. 

          Enquanto realizávamos as orações e fazíamos as caminhadas com o Santíssimo Sacramento nas mãos do sacerdote não percebíamos a passagem do tempo. O dia que começara fresco ficava quente, mas o ar-condicionado da nave (um luxo que recentemente tem se espalhado por algumas igrejas da cidade) impedia de sentirmos a temperatura que subia do lado de fora. Mal ouvíamos o barulho do trânsito na avenida à frente, estávamos absorvidos no ciclo de orações e caminhadas e não nos preocupávamos com as coisas do dia-a-dia. 

          Nosso Cerco de Jericó era um microcosmo da vida espiritual. Não quero entrar aqui no sentido que o cerco possui no Antigo Testamento, sobre o qual as orações são feitas, mas na experiência deste evento. Cercados pelas paredes da igreja, estávamos todos desligados do mundo em seu sentido amplo: não tínhamos percepção do tempo, não sabíamos o que acontecia do lado de fora e, em princípio, não estávamos preocupados com ninguém. "Preocupados" aqui quero dizer absorvidos com problemas que envolvem terceiros, como compromissos marcados, problemas de casa ou sentimentos dominadores projetados em outras pessoas.

          Esta experiência era como estar no Céu, mais especificamente no plano da eternidade. No Eterno não há tempo. Todos os tempos, passados, presente e futuros possíveis, estão lá dispostos de forma simultânea. Eles não passam, simplesmente estão presentes no que chamamos de "eterno presente de Deus". Ao menos tempo, estávamos desligados dos acontecimentos e obrigações humanas, que de nada servem para as almas que daqui já partiram, dado que elas não podem cumprir compromissos e acumulam sofrimentos se apegadas ao mundo que deixaram para trás. Da mesma forma, os sentidos estavam desligados da variação da temperatura externa e absorvidos no ritual cíclico que, no final das contas, reatualizava constantemente a presença de Deus através de Seu Corpo na eucaristia. 

          Na igreja estávamos no Céu. Ao passar sua porta da entrada ali estava o mundo. A igreja cercada pela cidade representava o inverso de sua dimensão física: ela era o plano infinito que abraçava a cidade, que abraçava o mundo inteiro. Este infinito é o eterno que não passa. Ele sempre é, enquanto o mundo, forjado nas lutas da História Humana, passa e um dia chegará ao fim. Mas só o Pai sabe quando.

sábado, 10 de novembro de 2018

Resistindo à maré vermelha

(Estudantes do Ensino Médio em protesto contra o governo de São Paulo. Dezembro de 2015.)

          Em 1992, na época do impeachment do então presidente Collor, eu estava na quinta série do primeiro grau (atual sexto ano do Ensino Fundamental). Recordo-me vagamente de questões políticas na sala de aula. Uma delas ocorreu na aula de Português, e a discussão era se a turma e o colégio iriam ou não na passeata dos famosos caras pintadas. O colégio fez greve na ocasião e eu, por alguma razão salvo da influência esquerdista, fiquei em casa.

          Na oitava série, a primeira aula de Geografia foi com uma professora muito carismática que emendou, entre outras coisas, sobre os males do capitalismo e as vantagens do socialismo. (Jamais vou esquecer do teatro que ela dissecou por alguns segundos imaginando uma hipotética guerra nuclear entre Estado Unidos e União Soviética. Aquilo foi engraçado.) A aula inteira foi um monólogo, caso raro com pré-adolescentes com os hormônios a milhão. No intervalo, saí convencido de que o socialismo era um sistema melhor. Comentei isto com um colega e ele, com rosto sério, concordou num daqueles poucos momentos em que dois guris de catorze anos discutem um assunto de real importância.

        Ao longo dos anos, ouvi por milhares de vezes o enredo do imperialismo europeu nas aulas de História. Estávamos certos de que os grandes capitalistas e os Estado nacionais anexavam o mundo à sua volta unicamente em busca de recursos naturais para suas indústrias. Era a metrópole explorando as colônias. Havia sempre, sempre, sempre e sempre o velho "interesse" por detrás de tudo. Não havia ato na História humana que não tivesse "interesse". A humanidade se desenvolveu com base no egoísmo ao ponto dos europeus, depois de conquistarem quase todo o mundo, voltarem seus egos uns contra os outros para se matarem mutuamente. Por duas vezes. Na primeira, surgiu uma idílica Revolução Russa; na segunda, a culpa recaiu exclusivamente na "extrema-direita".

          Eu tornei-me um esquerdista no último ano do colégio, quando da minha primeira eleição (1998), levado pela alegria de me tornar mais um dos tantos adeptos da esquerda. Estudava num escola particular cara de Porto Alegre, onde a grande maioria dos que se manifestavam publicamente eram também de esquerda, principalmente simpatizantes do PT. Engana-se quem pensa que o PT cresceu com o povo. Não. Cresceu com a elite, tanto é que foi na minha cidade, uma das mais desenvolvidas do país na época, que o partido logrou suas maiores vitórias. Votei no Tarso Genro para prefeito em 2000, mas daí em diante fui saindo deste espectro político.

          Quando fiz a faculdade de Geografia na UFRGS para me tornar bacharel, tive um professor que se declarava "anarquista cristão" e lecionava, se não me falhe a memória, Estudos Populacionais em Geografia. Deveríamos aprender sobre natalidade, mortalidade, mudanças demográficas, os impactos destas mudanças na sociedade e coisas do tipo, mas tivemos, única e exclusivamente, textos críticos ao capitalismo e do próprio Karl Marx. A coisa foi tão constrangedora que meu colegas (que não eram nada direitistas) pediram para que o professor entrasse no tema da disciplina, e como resultado ele passou a emendar tabelas demográficas nos textos que distribuía. Em certa ocasião, chegamos a um impasse que resultou num profundo silêncio em sala de aula. Nós e o professor ficamos em silêncio absoluto. Por vinte minutos.

          Anos mais tarde, quando lecionei Geografia em algumas escolas particulares, pude conferir de perto o que diziam os livros da área. De forma geral, eles apresentavam uma certa aceitação do capitalismo e da globalização, mas sempre com viés crítico do tipo "foi o que sobrou e temos de lidar com isso". Derrubada a falsa dicotomia capitalismo X socialismo o mundo entrava numa era de desigualdades, xenofobia e extremismo. Talvez fosse melhor a era da ameaça da guerra nuclear, que, todos sabemos, não seria a piada da professora da oitava série.

          O problema da ideologização da educação não está numa doutrinação, mas numa cultura, numa mentalidade que vê o mundo torto dominado por "interesses capitalistas". Ela vicia a mente em chavões e obscurece a consciência formando aquilo que Eric Voegelin chama de "segunda realidade". O mundo real (primeira realidade) é filtrado e lido segundo a cosmovisão da segunda. Na cultura ou mentalidade de nossa educação tudo é interesse, tudo é dinheiro, tudo é capitalismo, tudo é a desigualdade que está aí, agora também na cor, no estilo de vida e (por que não?) no sexo de sua filha. Não sei a solução para tudo isso, ou se a chamada Escola Sem Partido tem algo a oferecer como resposta. É, como dizia o nome do blog de um amigo, nadar "contra a maré vermelha" tendo a consciência clara de que o que você pensa é de sua experiência da realidade e não de abstrações originadas da militância política de esquerda. Isto é resistência.       

          
          

domingo, 4 de novembro de 2018

A ilusão do poder

(Arco do Triunfo em Paris: símbolo da Revolução Francesa, que deu origem ao modelo de Estado moderno adotado no mundo todo.)

          Encerrada a guerra das eleições, resta-nos, além de monitorar e fazer pressão no novo governo quando necessário, tocar a vida adiante. A política é uma das faces de nosso cotidiano. Ainda que ela permeie cada vez mais nossos afazeres, ela não é nosso dia-a-dia.

          Nosso dia-a-dia é o levantar, arrumar a cama, falar com as pessoas da família em casa, trabalhar, ir ao mercado, manter as amizades e cuidar um pouco da saúde (e também da aparência, por que não?). Mas vivemos numa época em que a política parece que resolverá tudo, como se devêssemos ter o líder ideal, mais que um salvador da pátria, um salvador da humanidade a guiar seu povo no caminho sonhado em direção ao Paraíso terrestre.

          Na era das democracias (ou seja lá o que isso signifique realmente), acreditamos que o Estado e a legislação trarão tanta alegria e felicidade como outrora o "ideal" comunista prometeu. Pior: ainda promete. Porque a mentalidade do Estado totalizador da vida humana, ainda que nas suas vestes de Estado de direito, insiste em prometer o que não pode dar. Porque quanto mais direitos, mais deveres e mais pessoas obrigadas a trabalhar para a realização desses direitos pela força da lei. Se isso não é totalitarismo, não sei o que é. 

         Seja nos moldes do Estado comunista, fascista ou liberal, o Estado moderno cresce e vive às custas de uma esperança da vida pós-morte que a modernidade colocou para além de nosso horizonte cotidiano. Na obra "Rumor de Anjos", Peter Berger afirma que um dos efeitos mais espantosos da secularização, isto é, a subtração de expressões e símbolos religiosos da sociedade, é a eliminação da ideia da morte. A vida moderna fez o homem voltar-se apenas às coisas do mundo. Relegado o plano da transcendência ao esquecimento, surgem as coisas meramente cotidianas como totalizadoras da vida, dentro das quais o Estado é o principal ator a nível coletivo, o condutor da sociedade. Assim como a técnica busca dominar a natureza, o Estado busca dominar a vida humana, guiando-a para a perfeição segundo suas diretrizes e os planos ideológicos de seus mentores e administradores. A utopia floresce na mente dos que se colocam na direção do mundo, que caminha rumo ao desconhecido e, por isto mesmo, ao fracasso. 

          Enquanto levamos nosso dia-a-dia adiante continuamos a viver no crescente domínio do poder político sobre nossas vidas, cada vez mais dependentes dos meios modernos de vivência. É paradoxal que vivamos como se a política não existisse ao mesmo tempo em que esperemos tudo dela. Talvez este seja um caminho: viver como se o governo não existisse, como se a política fosse irrelevante, como se o Estado fosse uma ficção. Cumprindo sempre os deveres legais, mas menosprezando-os como meramente legais. Desenvolvendo uma vida interior ativa e vigorosa que forneça a consciência pessoal e espiritual de nosso papel no mundo. Afinal, um dia nós nascemos sem necessitarmos disso, e após a morte romperemos com a ilusão totalizadora do mundo, deixando posses, poderes e ideologias para trás.      

          

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A fé na coisa errada


          Às vésperas de uma eleição importante é evidente que criamos expectativas. Afinal, o poder político adquiriu uma relevância enorme de forma que esperamos que o administrador, junto com seus aliados, realize o que desejamos para nossa sociedade, sociedade esta da qual nós fazemos parte. Isto faz de nós potenciais beneficiários dos comandos que vêm do alto, a exemplo da prosperidade material e uma vida cotidiana burocraticamente simples.

          Na medida em que uma sociedade se desenvolve economicamente mais complexa se torna seu funcionamento. Mais empresas, mais associações, mais produtos circulando, mais agitação. Disso, se faz necessário mais regulação e mais controle. Na medida em que uma sociedade se desenvolve economicamente cresce junto o poder do Estado, que não precisa dirigir a economia, mas regular seu funcionamento de forma que haja um ordenamento mínimo e que as relações sociais se harmonizem com este ordenamento. Em outras palavras: mais poder político atuando em cada vez mais setores da sociedade. Por isso a política importa tanto: ela penetrou em muitas áreas que antes não atuava e mais minucioso se tornou o controle que exerce sobre nosso dia-a-dia. Basta ver as regulações que se discutem acerca de, por exemplo, a internet ou combate ao contrabando. Junto a isso, surgem as regulações sobre nosso comportamento: como educar seus filhos, não fumar, limitar o consumo de determinados alimentos, cuidar com as palavras ditas na rua, mesmo os olhares. Quanto mais desenvolvimento, mais complexidade socioeconômica e maior a tentação de ir além, extrapolar os limites burocráticos e partir para a burocratização da vida íntima. Os direitos e as leis crescem e exigem cada vez mais controle social.

          Esta é a ilusão: acreditar que o poder político tudo pode e tudo deve. Daí a fé na política, a esperança de que o poder trará a nós a tão sonhada paz e prosperidade ou pelo menos uma boa paz e uma boa prosperidade. A vida se tornou tão complexa que fomos engolfados pelo cotidiano e temos enorme dificuldade de olhar além do mundo visível, retendo nele a fé que deveria saltar para o Eterno. Sufocados pela vida agitada, esta ilusão desemboca num erro fatal, que é a crença de que a ação humana tudo pode e é infalível. Não é. Caso fosse, ou as decisões estariam sempre corretas, ou a realidade física seria plástica à vontade humana. Esta fé vã é comprovada pelas sucessivas crises que tantos países passam mundo afora e, claro, pela que passa o Brasil neste momento. Só Deus pode tomar decisões sempre certas e ser capaz de manipular a realidade física de acordo com Sua vontade. É lá que devemos colocar nossas esperanças esperando sempre que se um político fizer besteira ele faça a menor besteira possível.  

           

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O mundo administrado: projetos de um Paraíso impossível




         O primeiro capítulo do livro “Vidas Desperdiçadas” (2004) do sociólogo polonês Zymgunt Bauman versa sobre o projeto da modernidade. O capítulo tem um nome claro e direto: chama-se “No começo era o projeto”. Trago aqui o texto que escrevi para um disciplina de pós-graduação.
          Bauman sintetiza o projeto da modernidade como a forma do homem moderno encarar o mundo através do pensamento racional e da necessidade, inerente a este pensamento, de administra-lo. O mundo administrado é o mundo preconcebido pelo pensamento racional, ou seja, é precedido por ideias, planos, ideais e intenções premeditadas. Daí a concepção do projeto moderno, que abarca todas as dimensões da vida das pessoas que vivem sob o manto da modernidade.
          A discussão do livro de Bauman gira em torno da ideia de refugo humano, as pessoas que são consideras e tratadas com “o resto” da humanidade ou, numa linguagem mais popular, os “excluídos”. No capítulo em questão, é a partir da página 31 que Bauman relaciona a ideia de refugo com a de projeto moderno e inicia uma análise muito interessante da real dimensão sobre as reais consequências deste aspectos inerente à modernidade:

“Indagado sobre como obtinha a bela harmonia de suas esculturas, Michelangelo teria respondido: ‘É simples. É só você pegar um bloco de mármore e cortar todos os pedaços supérfluos’. No auge do Renascimento, Michelangelo proclamou o preceito que foi o guia da criação moderna. A separação e a destruição do refugo seriam o segredo comercial da criação moderna: cortando e jogando fora o supérfluo, o desnecessário e o inútil, seriam descobertos o belo, o harmônico, o agradável e o gratificante” (BAUMAN, 2004, p. 31-32, grifo no original)

          A analogia com a visão de trabalho de Michelangelo perpassa todo o restante do capítulo: para alcançar o ideal, o objetivo final do plano previamente pensado, é necessário tirar de cena tudo e todos os que não se enquadram no projeto. O projeto aqui pode ser qualquer coisa que estabeleça um objetivo a ser alcançado no futuro: acabar com a pobreza, o desemprego, mudar a forma de organizar a economia, estabelecer planos e metas na educação, criar um determinado regime político (democrático ou não), estimular as ciências e assim por diante. Mesmo que as intenções sejam boas e os objetivos alcançáveis, inevitavelmente haverá pessoas que não se enquadrarão, por razões diversas, nos projetos em questão, sejam eles quais forem.        
          Bauman lembra que para a mentalidade moderna é a mentalidade da transformação constante, é a ideia de que “o mundo pode ser transformado (grifo no original). A modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem sido até agora e à decisão de transformá-lo” (BAUMAN, 2004, p. 33). Para transformar o mundo, é necessário estabelecer um plano, um projeto para a criação da sociedade futura. Outra passagem do capítulo é reveladora sobre esta mentalidade escatológica da modernidade: 

“A história da era moderna tem sido uma longa cadeia de projetos considerados, tentados, perseguidos, compreendidos, fracassados ou abandonados. Os projetos foram muitos e diversos, mas cada um deles pintou uma realidade futura diferente daquela que os projetistas conheciam. E uma vez que ‘o futuro’ não existe enquanto permanece ‘no futuro’, e que ao lidar com o não-existente não se pode ‘obter a certeza de um fato’, não havia como prever, muito menos com precisão, como seria o mundo a emergir na outra ponta dos esforços de construção”
“O bem maior só pode ser obtido por um preço: justamente com seus benefícios, ele tende a acarretar consequências tão indesejáveis quanto imprevisíveis, embora estas últimas sejam normalmente minimizadas ou ignoradas no estágio de produção do projeto sob o pretexto da nobreza das intenções gerais” (BAUMAN, 2004, p. 34-35) 
          A principal consequência dos projetos modernos, sejam elas intencionais ou não, é o refugo humano, as pessoas que não se enquadram nos ideais futuros. Podemos ver isto claramente nos regimes totalitários, como o nazismo e o comunismo, onde grupos de pessoas classificadas por raça ou classe eram literalmente eliminadas da sociedade “ideal”, mas também podemos ver os efeitos colaterais inevitáveis dos projetos modernos, dentro do qual nos também vivemos, onde massas humanas não se enquadram na forma de vida adota pela sociedade. Bauman cita, logo no início do capítulo, as pessoas que não conseguem se adequar à chamada “sociedade de consumidores”: se antes, na época da “sociedade de produtores”, as gerações possuíam estabilidade quanto ao estilo de vida que levavam (emprego garantido, Estado provedor de bem-estar, estabilidade nas relações sociais), hoje a vida moderna nos pressiona a nos adaptar à fluidez e à instabilidade das mudanças constantes e cada vez mais rápidas na esfera socioeconômica, onde nada mais é garantido, nem mesmo as relações pessoais. A “modernidade líquida” (não comentado no capítulo) de Bauman é o mundo das mudanças rápidas onde nada é permanente e onde tudo passa tão rápido quanto chega. E quanto mais as coisas mudam, mais projetos surgem para tentar reparar os estragos dos projetos anteriores. No dizer do autor, vivemos num “excesso de produção de projetos” (p. 35) acreditando que cada um trará a solução dos problemas criados, criando assim novos problemas futuros. Cada vez mais projetos, cada vez mais novos problemas, cada vez mais novos refugos humanos.
(Zygmunt Bauman, 19/11/1925 - 09/01/2017)

          É inerente à modernidade a necessidade de transformar a realidade. O homem moderno não se satisfaz com o mundo “que aí está” e almeja o mundo ideal futuro imaginado, pensado e aplicado através do projeto. Nisto subjaz a concepção de que a natureza humana é frágil, que está à mercê de forças que ela não pode controlar. Bauman resgata uma passagem de Francis Bacon que diz “a natureza, para ser comandada, deve ser obedecida”. O homem moderno, porém, não tomou este enunciado como um chamado à humildade, e sim ao desafio. Portanto, a natureza, seja no sentido material ou humano, deve ser controlada pelo homem na expectativa de superar as crises e desastres do passado. Se na pré-modernidade era a irracionalidade e a superstição de lançava o homem ao desastre, então caberia à razão guiar a humanidade para um futuro seguro e luminoso: 
"Guiada pelas leis humanas, a humanidade seguiu em frente se arrastando, enquanto era fustigada, pressionada e atormentada pelas forças da irracionalidade, do preconceito e da superstição. Comparado com a parte inumana do universo que não conhece ‘erro’, o passado humano só podia aparecer como uma estufa da estupidez e da malevolência, e como uma longa sequência de crimes e erros. A única ‘lei da história humana’ que se podia imaginar era a necessidade de a razão assumir onde a espontaneidade humana havia falhado de maneira espetacular "(BAUMAN, 2004, p. 40-41)
          A modernidade é (...) um estado de perpétua emergência”, diz Bauman, sem a qual cairíamos no caos, na ausência total de normas e, portanto, de ordem. “A modernidade é uma condição da produção compulsiva e viciosa de projetos” (p. 41). 
          Se há projetos, então há agentes, há alguém que pensou neles antes que fossem aplicados. A pergunta que fica é: quem cria os projetos? De onde vêm as ideias que guiam sua implementação e quem as aplica? Bauman afirma que o principal autor é o Estado-nação moderno (aqui ele ignora os agentes individuais, como políticos, acadêmicos, ideólogos, etc). Mesmo em declínio, “a despeito do acúmulo de evidências sobre o status ficcional das afirmações de soberania do Estado”, seu “monopólio permanece incontestável ainda hoje” (p. 45). Bauman é incisivo quanto ao papel do Estado na formulação da ordem, incessantemente almejada pelos projetos da modernidade. E da ordem surge o refugo humano:
“Por toda a era da modernidade, o Estado-nação tem proclamado o direito de presidir à distinção entre ordem e caos, lei e anarquia, cidadão e homo saucer*, pertencimento e exclusão, produto útil (= legítimo) e refugo.” (2004, p. 45)
          Interessante notar que autores de diferentes matizes, como Eric Hobsbawn  ("Nações e Nacionalismos") e John Lucks ("O Fim do Século XX"), provavelmente concordariam com o enunciado sobre o Estado-nação, dado que os dois historiadores consideravam o nacionalismo sentimentos ainda muito vivos e atuantes até poucas décadas atrás. É do nacionalismo que o Estado-nação moderno bebe de suas forças, retroalimentando-o.

          O projeto da modernidade, capitaneado pelo Estado-nação moderno, comporta múltiplos projetos que se entrecruzam, se sobrepõem, se complementam, se anulam e entram em choque.  Numa sociedade em constante e cada vez mais rápida mudança, as gerações encontram-se angustiadas frente à perda de estabilidade, seja no trabalho, seja na vida pessoal. É o caso da chamada Geração X, com a qual Bauman inicia este capítulo que também é início do livro: fortemente atingidos pela instabilidade socioeconômica, a Geração X, composta por pessoas nascidas entre as década de 1960 e 1970, foi fortemente afetada por sofrimentos até então desconhecidos, um novo tipo de mal-estar que se somatiza, por exemplo, em doenças como a depressão. Este mal-estar é o medo de um mundo que não fornece mais segurança de qualquer tipo, nem mesmo material. 
          Derrubado o senso do eterno provindo das grandes religiões como o cristianismo, a sociedade moderna, ao avançar à pós-modernidade, perdeu qualquer eterno no qual se agarrar, e tenta fazer dos seus projetos planos que durem para sempre, que sejam tão eternos quanto a mensagem divina. Na medida em que os projetos se desenvolvem, novos problemas surgem e projetos antigos desaparecem. Aqueles que se viam falsamente confortados pelo emprego estável, pela vida fisicamente segura e pelas relações duradouras, agora veem-se no meio de novas tempestades causadas por novos planos que planejam tirá-las de campo. Decisões políticas, planos empresariais, crises dos mais variados tipos que ninguém sabe de onde e quem começou, guerras do outro lado do mundo... Tudo concorre para a instabilidade. O refugo humano por vezes se recicla, mas se acumula na medida em que a modernidade caminha e tenta recriar o Paraíso perdido das gerações passadas. O projeto é a tentativa de recriar este Paraíso, que está lá, fixado no eterno, e que não pode de maneira alguma ser estabelecido neste mundo.


* Categoria do antigo direito romano que definia a pessoa fora da jurisdição humana e divina. Esta pessoa era considerada desprovida de valor (BAUMAN, 2004).

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Lênin vive


(Camarada Zuckerberg)

Neste momento, estou escrevendo um artigo sobre a relação Igreja-Estado na URSS. A Constituição soviética era bem bonitinha: garantia liberdade de consciência e de religião, propaganda pró e antirreligiosa, liberdade de culto, separava Estado e escola da Igreja, etc. Sempre com o objetivo de construir o socialismo. Na prática, os comunistas de fato construíram o socialismo, mas violaram todas as demais leis que garantiam as liberdades fundamentais, matando, prendendo, controlando os religiosos remanescentes, jogando uns contra os outros, tirando toda a autonomia da Igreja, etc. Por quê? Porque para se alcançar a sociedade perfeita, não interessavam os meios, mas os fins. Isto era estratégia revolucionária para alcançar o controle sobre toda a sociedade: de um lado a garantia da lei para o mundo ver, do outro a repressão sob os auspícios desta mesma lei, justificando perante a sociedade que estava tudo de acordo com ela.
Guardadas as devidas proporções, a censura que está sendo feita na internet para combater as "fake news" tem a mesma lógica: em nome de uma "saudável" liberdade de expressão, da "democracia", da "verdade", se violam todos os princípios que esses mesmos meios de comunicação dizem defender. Com o objetivo de "defender" a lisura das eleições deste ano, hoje o Facebook derrubou 196 páginas e 87 perfis de direita na rede, muitos da rede do MBL, que foi taxado pela imprensa "oficial" de "extrema-direita". E não pensem que eles pararão por aí: se foram capazes de sabotar as páginas através das quais a direita cresceu no Brasil (Jair Bolsonaro é o primeiro colocado nas pesquisas de intenções de voto, eis o alvo destas eleições), qualquer outro grupo que desagrade o Facebook ou "nossas instituições" sofrerão a mesma punição. Seja de direita, esquerda, meio, ou de jogadores de canastra.
Não é de graça que o controle da internet, que vem no corpo da Nova Ordem Mundial, é de inspiração socialista. Eles aprenderam com seus mestres.

terça-feira, 13 de março de 2018

A diversidade e a guerra dos sexos

(Banheiro unissex da PUCSP.)

          Acabo de perder uma oportunidade de emprego por ser... homem. Na verdade, a vaga era para o setor financeiro de uma escola infantil daqui de Porto Alegre que já teve problemas com pais que reclamaram da presença de homens na instituição. Em algumas ocasiões, o responsável pelas finanças têm de ajudar no trato com as crianças quando a responsável tem de sair em horário de intervalo. Isso inclui levá-las ao banheiro. Portanto, a escola, para não ter mais problemas, aceita apenas mulheres.

          A mensagem era clara: os pais temem a presença de um marmanjo entre as crianças em momentos que elas estejam vulneráveis, sozinhas e à vista do responsável.

          Não demorou para vir à mente a proposta, em nome da diversidade e da tolerância sexual, de se criar banheiros unissex, ou permitir que homens possam usar banheiros de mulheres e vice-versa por se sentirem do sexo oposto. A discussão se espalhou em várias partes do mundo e também no Brasil. Essa era uma das políticas implementadas nos EUA pelo governo Obama em maio de 2016, (e que Trump logo eliminou), e que foi posta em prática também na PUCSP (uma universidade pontifíciacatólica, bom destacar) em nome da tal diversidade. 

          Se as pessoas já temem homens em certas situações que envolvam crianças, imagina como reagirão quando souberem que um marmanjo, alegando sabe-se lá qual orientação sexual, puder utilizar o mesmo banheiro de uma menininha de cinco anos. Daí se deduz, de forma óbvia, o medo do estupro e da pedofilia. Não de graça, a política do Obama criou uma guerra nos EUA, onde quase metade dos estados combateram ou proibiram a lei. A moral sexual virou ato de poder: de um lado a libertinagem sexual promovida pelo Estado, do outro tendência de regulação, também pelo Estado, de uma relação entre as pessoas que deveria ser totalmente auto-evidente e espontânea. Afinal, como lidar com uma regulação deste tipo sem inserir necessariamente a sexualidade no campo político? E na aplicação da lei, como garantir relações respeitosas dentro dos banheiros se nem mesmo hoje isto é possível a não ser com controle policial sobre a intimidade humana? Com a promoção da libertinagem sexual, a reação será o moralismo mais opressor que se possa imaginar.

          Como a política trata do bem comum, ela terá de fazer valer suas regras nos locais em que ela atua por excelência: os espaços públicos, onde todos se encontram, e nas escolas, que são a principal instituição por onde se inculcam os valores republicanos numa sociedade. Se a diversidade é parte deste valores, então terá de valer para as escolas também. 

          Não posso dizer que fui vítima dessa guerra cultural, e nem me senti discriminado por ser homem. Mas numa época de hiper-sexualização, ondas de denúncias de pedofilia e principalmente militância diversitária na política, nas artes e nos meios de comunicação, é questão de tempo que casos como o meu se multipliquem. 

          A diretora da escola deixou claro que a negativa da oferta de emprego para mim nada tinha a ver comigo. Eu sei que não tinha, e penso inclusive que ela fez a coisa certa em vista às necessidades que lhes eram impostas. Mas nos dias de hoje, qualquer escorregão na língua pode dar processo, ainda mais quando o tema envolve sexualidade e seus derivados.

          Bons tempos quando a política não enfiava a mão na nossa cama e também... vocês sabem muito bem onde.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Santos, doutores e analfabetos: os leitores do livro da vida


          Há momentos no meu dia-a-dia em que percebo que estou percebendo algo. Isto mesmo: tomo a consciência de que estou vendo, entendendo o que se passa ao meu redor. É como se eu tomasse posse de parte da realidade, aquela parte que me é apresentada num determinado instante.

          Explico: às vezes estou na rua e vejo o trânsito de automóveis e as pessoas caminhando. Vejo que cada um faz seu caminho próprio e que ao mesmo tempo tem que se movimentar sem se chocar com os outros e os objetos à volta. Porém, ninguém sabe com exatidão se alguém ao lado realizará o movimento esperado. Isto é comum no trânsito: sabemos que o carro à frente seguirá seu curso, mas temos a real certeza de que ele realmente fará isto? Não estará o motorista pensando em dar uma guinada à esquerda de surpresa ou encostar subitamente sem dar sinal? Ou o pedestre à beira da calçada, ele olha para nosso carro em movimento, mas será que temos absoluta certeza de que ele está concentrado em nós e não está distraído com algum pensamento, consciente apenas à sua própria mente, e irá se jogar na frente do carro sem perceber? 

        Nesta situação tudo para mim parece claro, objetivo, evidente. Não que eu saiba o que os demais estão pensando, mas eu vejo, intelectualmente, que todas as pessoas partilham da incerteza sobre o que todas as demais irão fazer, e mesmo assim as coisas funcionam perfeitamente bem. E se há um acidente (uma batida entre dois carros, por exemplo), eles são infinitamente raros se observamos a infinidade variáveis que entrelaçam um fato, que em volta do acidente são milhares, milhões ao mesmo tempo. Podemos ver isto num único toque, num único olhar. É o que chamamos de intelecção, a capacidade de entender a realidade entorno. 

          Este é o meu deleite e talvez o de alguns leitores deste texto. Eu morreria de tédio e de desgosto se pudesse viver momentos assim. Não fico entendendo tudo o tempo todo, mas minha vida correria o risco de perder o sentido caso eu perdesse esses momentos de maravilhamento da realidade que, no fundo, são comum a todos. É neste sentido que a vida é um livro aberto: tudo à nossa volta induz à leitura do mundo e esta leitura se torna, no seu acontecer, uma leitura da alma, porque ler a realidade é tomar consciência de uma operação da alma que se revela na relação com o mundo. Isto é entendimento, isto é intelecção, isto é vida. Portanto, para o ser humano viver é necessariamente entender por mais ignorante que a pessoa possa parecer aos olhos das convenções sociais. 

        Quanto mais límpidos são os olhos da alma, mais clara é esta intelecção, mesmo que a pessoa não tenho inteligência segundo a erudição e a ciência. É neste sentido que a alma santa, mesmo analfabeta, sabe muito mais do que os doutores: ela lê o mundo e não precisa de meios ou instrumentos rebuscados para entender o que precisa ser entendido. O instrumento está nela mesma, está em todas as pessoas. Basta entender, ato este que é um dom dado desde o Alto. A alma santa entende tudo ainda que lhe faltem palavras.