quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O que é a verdade? Nota de "O homem do castelo alto"

(Personagem Juliana Frink, interpretada pela atriz Alexa Davalos no seriado "The Man in the High Castle", baseado na obra de Dick.)

          A obra "O homem do castelo alto", de Philip K. Dick, é uma daquelas que só revelam seu real sentido nas últimas páginas. 

          Ambientado numa história alternativa, onde a Alemanha nazista e o Império do Japão haviam vencido a Segunda Guerra Mundial, o enredo se desenrola revelando uma rede de relacionamentos entre personagens envolvidos em intrigas políticas e vivências conflituosas. A teia é representativa dos poderes políticos que governam o mundo e insinua-se numa sociedade estratificada em raças.

          Os personagens vivem num ambiente repressivo e artificial e a todo instante buscam respostas sobre a verdade em suas vidas através de constantes consultas ao I Ching e da leitura da popular obra O Gafanhoto Torna-se Pesado

          Este livro de ficção apresenta de forma contagiante como seria o mundo se alemães e japoneses tivessem perdido a guerra. Seu autor vive num local chamado Castelo Alto e estaria recluso para evitar retaliações de possíveis atentados.

          Há, portanto, uma tensão que perpassa toda a narrativa, o conflito entre a artificialidade de um mundo dominado por dois impérios opressores e a sensação de que a verdade se revela insistentemente mas escapa por entre os dedos dos personagens. 

          O enredo se desenrola em 1962 num EUA divididos entre a porção oeste dominada pelo Japão, o centro e leste dominado pela Alemanha e a região das Rochosas como território neutro.

          Alguns dos personagens principais protagonizam a estranha vida em São Francisco e nas Rochosas americanas: Robert Childan, dono de uma loja de objetos antigos que tem como seus clientes japoneses ricos, sendo o principal deles o sr. Tagomi, Adido Comercial do Japão na costa do Pacífico; Frank Frink, judeu que havia servido no exército americano durante a guerra, perdera o emprego numa grande empresa e começava a trabalhar na confecção de pequenas joias metálicas; Juliana, sua ex-mulher e instrutora de judô, que conhecera o estranho Joe Cinadella, ex-combatente italiano na guerra e que secretamente trabalhava para o Reich; o misterioso sr. Baynes, nome falso do capitão da contra inteligência alemã Rudolph Wegener, viajando em missão especial para se encontrar com Yatabe, velho general japonês da guerra com contatos no governo de Tóquio.

          Todos eles, em algum grau, experimentam a falsidade do mundo. Seus problemas cotidianos têm raízes na dúvida sobre a veracidade das formas de vida adotadas dentro das limitações que os impérios lhes impunham: Childan lida com problemas sobre a autenticidade de suas peças para venda e tem dificuldade de conviver os japoneses que levam um estilo de vida americanizado; Frank, um judeu, vive escondendo sua real identidade e busca, com o amigo Ed McCarthy, um novo trabalho que dê um real sentido à sua vida; sua ex-mulher, Juliana, vive relacionamentos que nunca dão certo e se vê implicada numa trama secreta ao conhecer Joe, cuja identidade é revelada só mais tarde; o sr. Tagomi também se vê enrolado num conflito político muito maior do que é capaz lidar e que envolvem o alto escalão do Reich e do Império Japonês, nos quais Baynes e Yatabe são protagonistas.

          O contexto da trama está inserido nas disputas de poder do Terceiro Reich: com Hitler demente e internado, o grande império alemão é comandado por Martin Bormann. Sua morte desencadeia uma luta pelo poder em Berlim, tendo de um lado uma facção liderada por Goebbels, o chefe de propaganda, e Heydrych, líder da facção rival. E reflexos desta disputa ressoam na distante San Francisco.

          No mundo, os alemães e japoneses impõe uma ordem totalitária que estratifica as sociedades segundo raças pré-classificadas. Porém, é do lado alemão que se pratica toda a sorte de horrores em nome da mística totalitária do regime nazista: toda a população africana está num processo de eliminação física e seus restos mortais são utilizados para fins comerciais; boa parte dos eslavos são assassinados e os remanescentes expulsos à Sibéria; ingleses, americanos e latinos são subjugados e divididos em categorias, os negros ainda vivos trabalham como escravos e idosos são assassinados. A menina dos olhos do regime são as missões colonizadoras para Marte e Vênus tripuladas por alemães devidamente selecionados segundo o ideal da raça ariana. 

          E, por debaixo do pano, revela-se o plano de uma guerra nuclear contra o Império do Japão a fim de eliminar toda sua população e dar à Alemanha o domínio do mundo.

          É esta realidade falsa forçadamente construída sob a loucura dos nazistas e do artificial domínio japonês que vivem os personagens. Suas vidas são tão falsas quanto a realidade social politicamente construída. Cada relacionamento, cada contato reflete o desajuste e a tensão entre um mundo que é e o que deveria ser, entre a realidade criada e a verdade latente nas passagens do I Ching, constantemente consultado pelos personagens para orientar suas condutas; uma janela para o mundo verdadeiro.

          A apoteose da obra está no confronto de Juliana com Abendsen, autor de O Gafanhoto, onde descobre que o livro fora escrito segundo as ideias do misterioso autor, mas por decisão e orientação direta do I Ching. Seu enredo era, portanto, ação da velha sabedoria oriental e não da cabeça de um homem comum.

          Abendsen era mero instrumento de uma tradição de cinco mil anos, mas incapaz de acreditar que o conteúdo de seu próprio livro. O Gafanhoto versava sobre um mundo onde os aliados haviam vencido a Segunda Guerra, uma realidade parecida com o mundo atual e sonhada por aqueles cansados da opressão permanente. Era a apresentação do mundo livre, sonhado pelos personagens, mas silenciado pelas autoridades.

          Os questionamentos de Juliana contrariam o escritor, que se vê amargurado com a própria obra e se recusa a ver a verdade ali revelada preferindo dar as costas ao que escrevera e aceitar o mundo falso criado pelos impérios onipresentes. 

          O homem do Castelo Alto, na recusa em aceitar a revelação do I Ching em sua própria obra, é como Pôncio Pilatos na recusa em ver a Verdade no exato instante em que pergunta ao Verbo Encarnado o que é a Verdade mesma. Não podendo suportar Sua presença, A ignora.

          Este é o verdadeiro impacto da obra de Dick que, muito além da excelente trama, parece apresentar que toda sua narrativa é, na verdade, uma história de mentira onde nada daquilo havia mesmo acontecido. Talvez Juliana, Abendsen, Frink, Tagomi, nenhum deles tivesse vivido o que viveram. 

          Mas a possível falsidade de toda a narrativa do livro mostra a tensão entre o verdade revelada na conversa entre Abendsen e Juliana e o mundo falso construído por regimes totalitários de dentro do qual ambos viviam. 

          O enredo vai ainda mais longe: se esta história alternativa do mundo foi possível (e ainda é, mas sob outras formas de tirania), da mesma forma nossa história pessoal pode ter algo de falso, de artificial. Existe uma tensão entre a realidade que nós vivemos e a verdade que se esconde por detrás dos acontecimentos e que se revelam em acontecimentos cotidianos de nossas próprias vidas. 

          Philip Dick apresenta a necessidade de alargamento e aprofundamento da consciência para compreender muito mais do que o mundo, mas a verdade a ele subjacente. Este é um exercício típico da vida religiosa, onde o mergulho espiritual na própria vida e na existência do mundo nos leva à abertura para o sentido profundo de nossa caminhada diária. 

          Por mais que o homem insista em negá-la por trejeitos, artificialidade ou mesmo a força bruta, a verdade insiste em falar desde dentro da alma. E a literatura, graças à habilidade e sensibilidade de gênios profundos, tem a capacidade de expressá-la e  fazer contato com aquilo que temos dentro de nós mas somos incapazes de apresentar por palavras.

          "O homem do castelo alto" é, certamente, uma surpreendente revelação.

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