sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

O paradoxo da luz

 

          Poucas coisas me deprimem mais do que aqueles dias de calorão intenso, céu limpo e luz estourada ao ponto de enrugar o rosto ao pô-lo pelo lado de fora da janela. O calor opressivo e úmido desanima o corpo, a ausência de nuvens dissolve a esperança e a luz intensa - além da radiação emanada dessa mesma luz e que provoca o calor - exige proteção que, começando pelos olhos, acaba por puxar o corpo inteiro ao recolhimento.

          Psicologia à parte, tenho repulsa a essa experiência típica de final de ano e início das chamadas férias, onde a sociedade brasileira, refratária a tudo o que diz respeito à vida interior e ao senso mais básico de realidade, se joga ansiosamente ao culto de tudo o que essa época representa, virando a ordem de cabeça para baixo na medida em que a temperatura sobe. 

          Opressão, mal-estar, depressão e dispersão. Um caldo perfeito para os fracos de espírito se deixarem levar pelos três primeiros e, ao bater do desespero, se jogar de cabeça no quarto. Não por acaso o carnaval, tomado como o ápice de nossa "cultura" e "diversão", foi alçado às alturas muito além da festa da Páscoa no país que se ufana em dizer ser o "mais católico do mundo".

          Mas hoje, em meio à luz estourada do início de dezembro, vi outra luz. Não necessariamente com os olhos, pois os olhos veem o mundo, mas aquilo que a alma contempla e podemos chamar de graça. E essa graça não seria alcançável se o mundo não fosse também simbólico transcendente à sua forma imediata.

          A luz que cega é a mesma que ilumina, o calor que arde é o mesmo que dá a vida e a sensação de opressão que se abate é a mesma que nos impulsiona à vida interior. 

          Me recordo de uma viagem recente em fins de outubro quando voltava de Gramado para Porto Alegre num dia de céu limpo, e meu padrinho de crisma comentava sobre a luz forte já no miolo da primavera. Partindo dessa luz tropical intensa, dizia ele que os pintores europeus tinham à sua disposição a luz do sol das regiões de clima temperado, o que lhes conferia maior contraste de cores com as estações do ano. 

          Assim, se a luz menos intensa dá cores mais vivas, a luz mais intensa dá vida mais abundante, materialmente falando. Em ambos os casos ela realça a vida, ora pela estética, ora pela abundância.

          Mas a luz vai além do simbolismo, ela ilumina a alma, dá movimento e sentido à vida enquanto tal.

          São Boaventura chama Deus de Pai das Luzes, numa referência a Ele como origem da inteligência humana com sua capacidade de contemplar e transformar o mundo. Luz, aqui, é intelecção, inteligência, apreensão da realidade. Pois se a natureza não é apenas material, mas também simbólica, então ela nos diz muito mais do que a forma encerrada em si mesma. A natureza é o primeiro Evangelho, que nos exige contemplação e compreensão para uma vivência correta segundo a ordem estabelecida desde o Alto.

          Portanto, sem luz não haveria visão e, mais ainda, não haveria inteligência, atributo exclusivamente humano por graça divina. A luz compreende o tripé que permite o homem existir, ver e entender, e por isso mesmo se faz humano e tão próximo d'Aquele que o criou.

          Subitamente, a luz estourada desse início de dezembro que observei pela janela se transformou, por um instante, num chamado do Céu, como se dissesse: "Eu estou aqui". O ambiente opressivo se transformou em ânimo e força para um vida abundante, como se a radiação fosse transmutada em energia física, num alegoria da alma que se vivifica com a luz que vem do Céu.  

          Ninguém vive se não foi antes pensado pela mente divina. A luz é um fiat, o impulso vital que anima e dá a vida, como o ardente sol de verão que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que oprime dá a vida em abundância.

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