sábado, 5 de novembro de 2022

A corrida injusta

 

          Depois das eliminatórias, chegou a final da corrida mais especial do ano: os dois mil e oitocentos metros sem barreiras. Os finalistas, Lúcio e Jaime, estavam a postos para a largada. 

          O tempo nublava, ameaçava chuva com trovões à distância, e fazia muito calor. Na arquibancada absolutamente lotada, uma boa parte do público torcia para cada um dos seus atletas, e uma parcela menor, apesar de sentir o calor das torcidas, se mantinha indiferente preocupada apenas em ficar acomodada no seu lugar tomando um sorvete ou uma cervejinha. Pouco se importavam quem iria vencer e apenas se divertiam com as torcidas.

          Alessandro, o juiz da corrida, estava na largada para dar a partida, enquanto um subordinado ficava à linha de chegada. Olhava com fixação para a pista de saibro, seus olhos negros transmitiam determinação enquanto a careca lustrosa brilhava à luz do sol que ainda aparecia entre nuvens escuras.

          Levantou o braço para o alto com rigidez, revólver em punho e, pam!, Lúcio e Jaime largaram a todo o vapor!

          A torcida se animava, empurrava cada um de seus atletas, e por vezes xingamentos apareciam de um para o outro lado tentando incomodar e atrapalhar o grupo adversário. O juiz olhava para arquibancada e, ao invés de se concentrar exclusivamente na competição, mandava três subordinados averiguarem a suposta confusão do público. A parcela ainda indiferente continuava de sorvete e cerveja na mão, e um que outro começava a se animar com a disputa.

         Jaime sentiu os pés pesados, não entendia como poderia ser tão mais difícil correr do que nas eliminatórias. Não tardou para notar que dentro das solas do tênis - sim, dentro das solas, não debaixo delas - havia pequenas placas de chumbo que dificultavam a explosão muscular e o espaçamento das passadas. A torcida chiava, reclamava, inclusive xingava o adversário e o juiz pela trapaça. Não farão nada contra essa sacanagem? Quem forneceu a ele o par de tênis com peso adicionado?

          Imediatamente a polícia entrou na arquibancada e silenciou a barulheira levando alguns torcedores embora, devidamente orientados pelos subordinados do juiz. Do outro lado, a torcida adversária aplaudia, e os comentaristas de rádio e TV explicavam para a audiência o inusitado acontecimento sancionando as ações repressivas.

        Apesar da vantagem, Lúcio corria um pouco menos, sentia cansaço, mas seguia na liderança com Jaime logo atrás. Subitamente, ele notou que na pista ao lado havia uma barreira e, seguindo as normas da competição, corria exclusivamente em sua faixa sem se importar muito com aquele familiar objeto. Jaime se deparou com a barreira surpresa e pulou-a. Acertou a barra superior com a coxa esticada para trás e caiu ao chão, levantando logo em seguida e disparando com expressiva vontade ao ponto de compensar o peso adicional dos tênis.

        Alessandro fez sinal para continuar, Jaime olhou para trás, o ignorou e partiu na busca por Lúcio. Sua torcida chiava mais uma vez e xingava a torcida vizinha; como resposta, esta parte retrucava xingando e acusando os primeiros de trapaça. "Vocês não sabem jogar! Trapaceiros!" Era a primeira vez que uma parte do público acusava o outro de ser injusta, justamente aquela que fora injustiçada. Calúnia. Difamação. Os jornalistas, ouvindo a discussão, repercutiam a acusação nos meios de comunicação e comentavam a necessidade de se colocar ordem na baderna.

          O juiz ouviu as palavras pesadas, fitou obstinadamente os olhos no público e não teve dúvidas: mandou novos emissários para a arquibancada, que chamaram a polícia para acabar com o tumulto. Apontou para a pista e mandou colocar outros dois obstáculos.

          A polícia subiu na arquibancada, identificou os caluniadores, que apontaram os que estavam sendo caluniados, trocou de lado e cercou as pessoas apontadas. Além de caluniadas, agora tinham a polícia no pé. No bate-boca, mais gente foi retirada da arquibancada.

          Jaime começava a ultrapassar Lúcio, que suava muito e tentava se recompor com apoio de sua torcida, mas inesperadamente ambos encontraram os dois novos obstáculo à frente. Jaime pulou um dos cavaletes e... pulou o outro também! Ambos estavam na mesma pista! Bateu com o joelho detrás na barra de madeira e pisou com o pé esquerdo torto, causando muita dor no tornozelo e forçando excessivamente o músculo principal da coxa. Cambaleando, tentou se recompor, enquanto Lúcio abria novamente vantagem.

          Um dos subordinados apitou com força. Alessandro se aproximou dele, que apontou que Jaime havia tentado sair de sua faixa de corrida atravessando a linha divisória do adversário. Mesmo distante, correndo em velocidade pela curva, Jaime parou logo no apito e ouviu a punição: dez segundos imóvel. Não aguentou mais: abriu os braços, esperneou, as veias do pescoço saltaram e seu rosto se transfigurou num vermelhidão tomado pela raiva. Neste exato momento, um fotógrafo que cobria a competição captou uma imagem de Jaime, desfigurado como um monstro em fúria, e a esplendorosa figura saiu na TV e na internet. A audiência ficou assustada. Como pode um homem desequilibrado como este competir em algo tão importante? E Lúcio corria em disparada.

          A razão da parada e da fúria de Jaime tinham uma explicação: seu técnico apontou a trapaça do peso nos seus tênis, mas ao invés de averiguar a denúncia, Alessandro o mandou para fora do abrigo que fica à beira da pista e o descredenciou de frequentar o estádio pelo resto do ano. A torcida, revoltada com a punição, foi multada por cantar contra Lúcio e ironizou os uso dos pesos de chumbo. A polícia também agiu: entrou nas cabines da imprensa e ameaçou alguns jornalistas que criticaram duramente o juiz pelo arbítrio. Vendo o mau tempo invadir o local de trabalho, fizeram como a torcida de um dos lados: baixaram a bola e foram obrigados a não mais mencionar o nome de Alessandro na transmissão de rádio e TV.

          Passados dez segundos, Jaime retomou a corrida com tudo, enquanto Lúcio corria à frente em maior vantagem.

          O tempo nublou de vez, e as trovoadas aumentaram em barulho e frequência. A arquibancada ficou um pouco assustada, Jaime passou a suar mais e Lúcio, um tanto displicente, afrouxou o passo enquanto sua torcida demonstrava confiança na vitória. 

          Vendo o fim se aproximar, Jaime acelerou o passo, desta vez ainda mais do que antes, e sua torcida, apesar de menos confiante, retomou a gritaria e os cantos, mas de forma comedida. Seu atleta notou o canto contido, mas pisou fundo deixando a arquibancada mais em polvorosa. 

          A chegada deixou a quase todos tensos e nervosos. Jaime alcançou Lúcio, e este, lançando a cabeça sobre a linha de chegada, parecia ter vencido. Apenas parecia. A arquibancada ficou em silêncio, tensa, com suas respectivas bandeiras coladas entre as mãos e junto às bocas, que diziam: "Tem que dar. Tem que dar" ou "Ai, quem será que venceu?" ou ainda "Ai, meus Deus. O que houve?" A parte neutra da torcida também absorveu a atmosfera eletrizante, mas ignorou a tempestade que havia de cair. "Isso vai passar e vamos tocar a vida", diziam.

          O juiz correu até a linha de chegada e consultou seu subordinado, que mostrou a fotografia eletrônica tirada no exato momento em que os corredores atravessaram seu limite. E ali estava o resultado: Lúcio chegou à frente por um nariz enquanto Jaime estava de cabeça abaixada como quem olhava para seus pés pesados. A posição da cabeça foi determinante para sua derrota.

          Parte da torcida do segundo chiou questionando a posição da câmera, que não parecia estar perfeitamente alinhada à chegada, e reclamando do peso no pés, que atrapalharam seu corredor por todo o trajeto. Alessandro levantou a mão, os policiais na arquibancada viram e a torcida voltou a se acalmar imediatamente.

        Lúcio foi proclamado vencedor. Jaime se recusou a cumprimentá-lo, inclinou a cabeça, resmungou de canto com alguns de sua equipe de treinamento e se afastou na direção no vestiário.

          Não havia sequer tempo para a premiação: a tempestade que se armava estava chegando, e enquanto uma parte do público se retirava às pressas, outra protestava e batia boca com a adversária. Pela imprensa e os celulares da multidão, chegava a notícia de que esta mesma tempestade havia destruído toda a cidade vizinha. "Mas não acontecem tempestades deste tipo na nossa região", disse uma das pessoas que tomava sorvete. "Só vai chover".

          Ao ver como o tempo se armava, Alessandro fixou o olhar nas nuvens de tempestade e sorriu, Lúcio ficou tranquilo, pois bastava esperar um pouco para que a premiação acontecesse, e Jaime se dirigiu para o banho sem saber o que fazer.

          Neste momento, um enorme raio atingiu um grupo de pessoas na arquibancada e um estrondo ensurdecedor fez todos curvarem seus corpos num instinto de proteção. Do sorriso, o rosto de Alessandro passou para o terror, e todos viram o que estava preste a acontecer.

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