segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Mimados e violentos

 

(Theodore Dalrymple, pseudônimo do psiquiatra Anthony Malcolm Daniels) 

          Na excelente obra Não com um Estrondo, mas com um Gemido - A política e a cultura do declínio, (É Realizações, 2008), o psiquiatra Theodore Dalrymple traz a análise de uma série de situações que representam muito bem o declínio civilizacional de nossa época, tendo como ponto de partida seu país natal, a Inglaterra.

          No último capítulo da primeira parte do livro, "O casamento da razão e do pesadelo", Dalrymple expõe a perspicaz literatura de seu conterrâneo James Graham Ballard.

          As obras de Ballard são a vitrine dos dilemas existenciais da sociedade moderna, abundante nos meios materiais, mas vazia e tediosa em seu sentido de viver. O tema comum que perpassa todo os seus livros é o efeito sobre a vida do homem quando este fica privado dos sustentáculos da civilização.

          A sociedade moderna, satisfeita com suas realizações mas frustrada com sua incapacidade de recriar as condições que permitiram uma enorme prosperidade, e profundamente tediosa por não ter um novo rumo pelo qual seguir, desemboca na busca por novas emoções como o uso das drogas e do álcool, a libertinagem, a violência, o crime e o ativismo político e social muitas vezes agressivo.

          Dalrymple pode ver pessoalmente a relação entre bem-estar e comportamento violento em sua vivência profissional:

"Quando trabalhei, por breve período, como uma espécie de correspondente de vulgaridades para um jornal britânico - eu era enviado a todos os lugares em que os britânicos se reuniam para se comportar mal -, descobri, para minha surpresa, que em grupo as pessoas de classe média se comportavam com a mesma desinibição ameaçadora dos que lhes eram supostamente inferiores em posição social e educação. Eles xingavam, ofendiam, faziam gestos fascistas e urinavam nas ruas com o mesmo abandono que atribuíam aos proletários. Foi Ballard o primeiro a identificar que a burguesia desejava proletarizar a si própria sem perder os privilégios econômicos e o poder político." (p. 111-112)

          Mais adiante, ele continua seu raciocínio ao tratar de uma das obras de Ballard:  

"Essa me parece ser uma sugestiva metáfora de muito do que vem ocorrendo nas últimas quatro décadas, não somente na Inglaterra (...), mas também em outras partes da sociedade ocidental. Nós nos entediamos com aquilo que nos foi legado - com aquilo que, por pura falta de talento, demos uma contribuição humilhantemente parca. Ballard compreende, satirizando-o em Terroristas do Milênio, o porquê de as pessoas educadas, assombradas pela falta de sentido de sua vida, sentirem a necessidade de protestar." (p. 112) 

          Lida esta última passagem, não pude deixar de lembrar toda a sorte de protestos que pululam por todo o planeta. Desde meados de 2010, é justamente nos países mais ricos onde ocorre grande parte deles reivindicando toda a sorte de exigências materiais, privilégios políticos e até mesmo controle dos fenômenos naturais (pensemos, por exemplo, na atual convulsão no Chile, nos protestos "antirracistas" nos EUA e na exigência dos manifestantes para que o governo do Reino Unido decrete emergência climática).

        É também inevitável a lembrança de obras como A Rebelião das Massas, de Ortega y Gasset, com a figura arrogante do senhorzinho satisfeito, e A Invasão Vertical dos Bárbaros, de Mário Ferreira dos Santos, com a elevação da cultura bárbara do materialismo, da força e da repetição, entre outras coisas, como exemplo das maiores realizações civilizacionais. Ambas as obras confluem para formar o protótipo do cidadão moderno idealizado nas democracias ocidentais.

          A observação de Dalrymple, vivida in loco, mostra que o enriquecimento em massa de uma sociedade pode perfeitamente desembocar no mais vil barbarismo se, obviamente, este processo não vier acompanhado com o sustentáculos civilizacionais que permitiram seu surgimento.

          Vivemos numa época em que nunca houve tantos recursos, riquezas e meios de expressão, e justamente neste período nunca vimos tantos movimentos de massa tomarem as ruas do mundo todo ao mesmo tempo com as mais variadas e mesmo descabidas exigências, como se a ação de grupos de pressão pudesse transformar magicamente a estrutura social e, por que não, o meio ambiente!

          É verdade que ainda há muito a ser feito para o bem-estar geral. Mas, ao invés de honrarmos o que legamos pelo enorme esforço dos antepassados, estamos botando a baixo os fundamentos que permitiram a riqueza e o bem-estar disponível. 

          A massa de mimados, quanto mais mimada, mais exige e mais está disposta e destruir tudo por aquilo que deseja ou acha que deseja. Pois ao desejarem mais prosperidade e segurança material esperam resolver o drama existencial típico da sociedade moderna: o vazio e o tédio que esta mesma prosperidade e segurança jamais poderão sanar.

Um comentário:

  1. Mais um excelente texto! Essa "massa de mimados", que muitas vezes quer que a própria religião se adapte ao que ela acha ser correto, sofre, infelizmente, de um sério problema existencial, por não dar a Deus nas suas vidas o devido lugar que o nosso Pai e Criador merece.

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