quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

A profecia de Mário Ferreira dos Santos


          Na obra A Invasão Vertical dos Bárbaros (É Realizações, 2012), o filósofo Mário Ferreira dos Santos faz uma série de denúncias de barbarização da cultura: o que não presta, o que é mesquinho, baixo e secundário foi elevado à condição de alta cultura, de valores e princípios norteadores da civilização, enquanto que seus reais fundamentos são rebaixados à condição de dispensáveis e ou são mesmo censurados.

          Na segunda parte do livro, o autor relaciona a ascensão dos bárbaros com corrupção da inteligência, cujo efeito mais profundo e deletério é justamente o abandono dos princípios e juízos universalmente válidos e sua substituição por ideias questionáveis, que mudam ao sabor do tempo e dos desejos da elite cultural. 

          O conhecimento depende um fundamento seguro. "O que é exigível no verdadeiro filosofar", afirma, "é a demonstração apodítica, aquela que não admite a possibilidade de erros, pois os juízos são universalmente válidos" (p. 92). Em outras palavras, a Filosofia, que, junto com a Teologia, constitui a ciência mais elevada do pensamento humano, deve se fundamentar em pressupostos que sejam inquestionáveis e aceitos por toda a plêiade de intelectuais, pensadores, artistas e formadores de opinião. O mesmo é válido para os princípios advindo das tradições religiosas.

          Caso as premissas não sejam apodíticas (irrefutáveis), temos a confusão, fruto de um erro que desemboca em relativismo e que retroalimenta esta mesma confusão. Este é o fundamento das filosofias que circulam entre os intelectuais de hoje, aos quais Mário chama de "sábios". Substantivo este, penso, que mereceria muitas aspas.

          Sobre os sábios, Mário afirma:

"...embora muitos não creiam nisso, o sábio formará, com o tempo, uma casta, incluindo nela, também, os técnicos, e formarão uma espécie de aristocracia do amanhã, que não demorará muito para tomar o poder econômico, depois aspirará o poder político, e terminará por obtê-lo" (p. 96)

          Hoje, somos formados, orientados e governados pelos sábios que, abdicando dos princípios universais, elegem suas especialidades, suas posições particulares e relativas, como horizonte da cultura universal. Afirmam que não é possível saber a verdade e, julgando toda a humanidade por sua régua, que ninguém pode conhecê-la. Desta forma, impedem o engrandecimento da inteligência, fecham "as portas por onde os jovens, que serão os cientistas e técnicos de amanhã, poderiam enveredar e encontrar apoio sólido para seus estudos" (p. 98).

          No capítulo "Barbarização da ciência e da técnica", Mário Ferreira dos Santos resume as consequências concretas desta decadência cultural num mundo cientificamente avançado.

          Primeiro, começa apontando a estreiteza e a relativista visão de mundo dos especialistas.

"Consequências que podem surgir do que acima dissemos, ao se desligar, como se fez, o cientista da filosofia perene [válida para todas as épocas], o sábio, graças a esse desvinculamento, pensando que filosofia é essa mixórdia que se apresenta por aí, despreza-a totalmente e, entregue apenas à aridez da sua especialidade, desligado da universalidade, poderá tornar-se um monstro que vê tudo segundo a cor de sua proveta, e dentro do campo estreito que lhe permite ver a sua viseira. E então será ele um candidato nato ao barbarismo. Imaginai todo o poder da ciência e da técnica atual em mãos de bárbaros. Não é preciso muito esforço para conceber o que de terrível se passaria sobre o mundo. Não é exigível uma imaginação fértil demais para conceber o que seria de nós se dependêssemos de meros especialistas, que nada entendem do que estiver fora de sua especialidade, pois só a filosofia pode tratar desses princípios e, por isso mesmo, nem a sua especialidade conhecem bem. (grifo do autor)

          Na sequência, mostra as consequências desta aliança entre barbárie e técnica sobre a vida das pessoas:

Todos esses seres, estranhos desconhecidos, ignotos, incomunicáveis uns aos outros, servindo a algum césar que deles surja, e que será forçosamente bárbaro, nos transformariam em cobaias, em tubos de experiência, em coisas numeradas e protocoladas. Que mundo terrível esse! E esse mundo vem aí, senhores, esse mundo se aproxima a passos de gigante. Não é para séculos, é para decênios. E tudo isso não se soube evitar." (grifo meu)

          Fomos devidamente avisados por essas palavras proféticas escritas em 1967. 

         Qualquer semelhança com o mundo atual, e mais especificamente com a crise a qual estamos passando, não é mera coincidência.

          

         

              

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