segunda-feira, 27 de maio de 2019

Míchkin, o príncipe que eu não fui

(Yevgeny Mironov, ator russo que interpreta o príncipe Míchkin na série "O Idiota", de 2003, baseado no clássico homônimo de Dostoiévski.)

          Ao terminar nas últimas semanas a leitura da obra "O Idiota", de Fiódor Dostoiévski, me pus a chorar por um tempo. Foi a segunda vez na minha vida que chorei ao ler um livro.

          O primeiro caso foi em meados de 2001, quando li "A Profecia Celestina", de James Redfield. A diferença é que na época, aos vinte anos de idade, eu tinha uma concepção completamente diferente da vida, na verdade uma concepção fantasiosa onde ansiava por realizações então impossíveis e um mundo por demais idealizado tal qual na obra new age do autor norte-americano.  

          Passados dezoito anos, atravessei anos em salas de psicanálise, deitado ao divã, mas que fora vital para o sustento de minha sanidade mental. Neste meio tempo, voltei à Igreja Católica, ingressei num grupo de oração dentro do qual vivenciei experiências apaixonantes e libertadoras, troquei a psicanálise pela Terapia de Integração Pessoal segundo o método de Abordagem Direta do Inconsciente e fiz tratamento com uma psiquiatra. Tive alguns empregos, estágios, fiz uma infinidade de cursos, tive três namoradas (a primeira antes da leitura do livro). O resultado disto foi a saída de um verdadeiro inferno pessoal que engolfou minha vida até perto dos vinte anos de idade, e que vinha há gerações destruindo a felicidade de parte da minha família. Sem esta caminhada lenta, trabalhosa e tortuosa, muito provavelmente não estaria escrevendo este texto, mas preso num hospital psiquiátrico ou na cadeia, quem sabe até mesmo numa vala, possível destino final da loucura que se apossava de minha pessoa e tornava cada vez mais inviável qualquer realização pessoal por mais simples que fosse. 

         O livro de Redfield era a expressão de um vida ideal que o livro revelava. No fundo, porém, eu era perdido demais para sequer dar o primeiro passo na conquista deste sonho. Eu vivia apenas de sonho: sonhava com um emprego que me daria independência e que eu gostasse, sonhava em me apaixonar e casar com a mulher certa, sonhava com liberdade pessoal. Coisas da adolescência sem pés no chão e que encontrou na obra um ideal de vida dando vazão para meu paraíso interior. Na impossibilidade de realizar tudo aquilo, só me restava chorar um sonho que se apresentava em forma de enredo espetacular.

          Lev Nikolaiévitch Michkin, o personagem principal de Dostoiévski no romance "O Idiota", é um homem profundamente bom, sábio, mas que sofria de um tipo de esquizofrenia que se manifestava em crises sem hora marcada. O histórico de dificuldade de aprendizado e a ingenuidade quase santa do personagem conferiam a ele o epíteto de "idiota" dentre as demais pessoas que, surpreendidas com as súbitas declarações acerca de sua experiência de vida e com a forma peculiar com que se portava no tato com os outros e com situações de conflito, descobriam que Míchkin não era idiota coisa alguma, e sim o mais sábio entre todos aqueles que elas conheciam. Todas os que conviviam com o príncipe passavam por algum tipo de melhora de personalidade, como se a luz emanada de seu coração puro e as palavras ditas com sinceridade penetrassem na alma das pessoas executando uma misteriosa operação de cura interior. Poucos resistiam à bondade do personagem. 

          Obviamente, tal personalidade não poderia deixar de atrair os desejos femininos. A sabedoria, a excentricidade e a simplicidade do príncipe conquistaram os corações da aparentemente ingênua Aglaia Ivanóvna, moça aristocrata de humor sarcástico que testava permanentemente a sinceridade de Míchkin, e a intensa, confusa e pouco confiável Nastáscia Fillípovna, mulher desgarrada de má fama que vivia às custas de homens que a desejavam ardentemente. 

          Ademais, o príncipe era herdeiro de uma fortuna deixada por parentes distantes e estava em viagem à Rússia para buscar a fortuna. Vindo da Suíça, saíra da internação para tratamento e foi em busca não só do dinheiro, mas involuntariamente de uma vida nova que se revelou nos poucos meses em que ficou na pátria amada. Com a saúde melhor, dinheiro guardado e uma nova rede de amizades (por vezes nem tão confiáveis), o príncipe tinha razões de sobra para uma vida feliz na São Petersburgo da década de 1860, além de ter aos seus pés duas beldades que mexiam com o imaginário dos homens, dos mais medíocres aos mais ambiciosos, como Semeon Parfiénovitch Rogójin, amigo e criminoso que, entre idas e vindas, quase tirou a vida de nosso personagem.

          Mas tenho de deixar de lado muitos outros pontos do enredo, como as discussões políticas e existenciais dos profundos e complexos personagem de Dostoiévski. O que importa aqui é o final da trajetória do príncipe Míchkin. Rogójin, que o príncipe conhecera ainda no trem de ida à Rússia, disputava o coração de Nastáscia a todo o custo e, na ânsia de dar por encerrado a disputa e seus dilemas emocionais, acabara por assassiná-la depois que ela fugira do casamento com o príncipe. Rogójin foi exilado na Sibéria e Míchkin, chocado e anestesiado com a atitude do amigo e adversário, encaminhado de volta à internação na Suíça. 

          Em estado de choque com a morte de sua quase-noiva por um homem que ingenuamente confiava, sem Aglaia, a outra pretendente que decepcionara profundamente, sem a capacidade poder usufruir de sua herança e longe do país que amava, o príncipe acaba novamente doente e inepto sob os cuidados do Dr. Schneider, o primeiro a considerá-lo "idiota". Sob o olhar compassivo e dramático de Lisavieta Prokófievna, mãe de Aglaia, que não suportava vê-lo neste estado de sofrimento, Míchkin não reage, enquanto a velha matriarca chora seu sofrimento. 

          Não fosse a psicanálise, a Igreja Católica, o Grupo São José, a TIP e o apoio chave de algumas pessoas nestes meios, eu seria, na melhor das hipóteses, um novo Míchkin, com a diferença de que nada herdaria e muito menos possuo qualquer título de nobreza. A obra de Dostoiévski é a expressão daquilo que me livrei, do calvário para o qual deixei de peregrinar. Deixei de ser excessivamente ingênuo e um "idiota", no sentido real da palavra. O príncipe Míchkin é realmente um personagem cativante. Por vezes desejei ser como ele é, mas seu destino revelou aquilo que eu poderia ser e não fui. Pela graça de Deus.          

Um comentário:

  1. Bom demais o teu texto. Cirurgicamente bem escrito. Que bom que o pior já passou :)

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