quinta-feira, 15 de junho de 2017

A fuga para o jardim, a fuga para a realidade

(Jardim das Oliveiras em Jerusalém)

Ontem, 14 de junho, assisti a "O Jardim das Aflições" no cinema, filme que explica brevemente a filosofia de Olavo de Carvalho e que tem como fundamento o livro de mesmo nome. Li este livro em 2005, e foi o que maior impacto causou em minha vida, sendo ele chave para a minha volta à Igreja Católica.

O filme é dividido em três partes. Mas o importante para texto é a segunda. Nela Olavo comenta a necessidade de traçarmos a origem das ideias e dos fatores sociais e pessoais que impactam nossa pessoa com a finalidade de exercitar nossa liberdade de consciência e descobrir quem originalmente somos. A ideia em destaque aí é uma passagem do livro "O Jardim das Aflições", e que Olavo discorre praticamente com as mesmas palavras no filme, em que o mundo de hoje é apresentado como uma construção excessivamente artificial. O mundo moderno nos sufoca com leis, regras, ambientes artificiais, poses, a necessidade de agraços, e assim por diante. Vale à pena transcrever esta ideia como está no livro, para mim um dos trechos mais marcantes da obra. Depois de discorrer sobre o que chama de "divinização do tempo" e os impactos da Revolução Francesa e do positivismo no Ocidente, Olavo de Carvalho continua:

"Mas deixaram lá, e cá, uma infinidade de marcas, entre as quais um inesgotável calendário cívico, que, celebrando as secretárias, os motoristas, as mães, os pais, os namorados e tutti quanti, oferecem duas vantagens indiscutíveis: fazem esquecer o calendário litúrgico da Igreja e fomentam os negócios. Na verdade mais que isto: fornecendo um Ersatz para a experiência religiosa do 'tempo qualificado' - épocas especiais em que o fluxo dos eventos muda ciclicamente de tonalidade, recordando o homem a relatividade do tempo e a imersão de tudo no eterno -, o calendário cívico ajuda a aprisionar a mente humana no tempo socioeconômico, no tempo administrativo, elevado ao estatuto de uma realidade metafísica. No quadro de uma organização social onde horários e rotinas, frutos da decisão humana, pesam sobre os homens com o peso de uma coerção física, não é de espantar que o empregado em férias, contemplando o mar e as montanhas, imagine sonhar, e que, ao retomar seu lugar na fila do relógio de ponto, sinta retornar à 'realidade'" (p. 208, 2ª ed.)   

Hoje, um dia depois de ter ido no cinema, o filme continua muito vivo na minha cabeça, resgatando em mim um pouco do efeito que o livro me provocara doze anos atrás.

Nesta tarde eu estive num parque lotado. O dia era de sol e a temperatura agradável. Procurei um local mais vazio e silencioso e me sentei no gramado. Havia feito orações desde que saí de casa, à pé, e me preparei para uma oração do terço (sim, faço isto num parque, e é ótimo). Logo que me acomodei e deitei no gramado. Com os ouvidos junto à relva, os sons à volta baixaram de volume e eu podia ouvir muito além das pessoas à volta. Sons de carros a centenas de metros, insetos, o burburinho da multidão ao fundo. Acima de mim havia apenas o céu azul com nuvens ralas, de tipo cirrus, que sinalizam tempo bom. Aos poucos fui invadido por um universo que estava "oculto", o mundo natural que estava abafado pela artificialidade do meio urbano e pelo peso da minha rotina enfadonha. Tomado pela contemplação, me sentei novamente e fechei os olhos para me concentrar na reza que viria. De coração, pedi para saber quem estava comigo. "Vi" Nossa Senhora com o título de Fátima (digo "vi" entre aspas porque não tenho o dom da visão). Em seguida pude "ver", quase que com os olhos, o Imaculado Coração acima Dela, num vermelho intenso com a cruz acima cravada e uma luz dourada iluminando a escuridão. A imagem era tão clara e tão real que quase pude ver com os olhos que vêem esta tela, e fui invadido por uma alegria e uma certeza incomuns. Foi um experiência dupla: o mundo natural à volta me apresentava uma realidade escondida pela artificialidade humana e funcionava como depositário das condições que permitiam o desabrochar da vida interior. Era com Nossa Senhora que eu conversava durante a caminhada até me fixar no gramado, mas foi só sob o mundo criado pelo próprio Deus que eu pude "ver" que Ela estava comigo. Havia gente demais, regras demais entre eu e meu coração, onde Deus habita.

(Capa da segunda edição do livro "O Jardim as Aflições", que dá nome ao filme. Para mim, o livro de Olavo de Carvalho foi como um despertar, recapitulado pelo filme.)

Este momento foi como um despertar, um sair do mundo "real" para o "oculto", enquanto que na verdade eu saía do falso para o verdadeiro. Meu sentimento era de paz, certeza e ânimo, ânimo este que eu buscava durante as orações da caminhada. Foi na fuga do mundo excessivamente humano que encontrei motivação e resposta: o foco num Coração que acolheu tudo o que eu dizia e o ânimo gerado por este acolhimento. Foi na fuga para um jardim (neste caso também literal), que encontrei resposta e paz para meu coração aflito. Passei algum tempo ali, sentado, na oração do terço, mais motivado para tocar adiante meu projetos pessoais e, dentre outras coisas, descrever esta experiência neste texto.

Nossa vida é tão falsificada por obstáculos e convenções modernas que perdemos completamente o mundo que nos cerca. No jardim das aflições não basta administrar a aflição, não basta a fuga mediante novos ornamentos no jardim. Assim como Jesus Cristo sofreu angustiado nas oliveiras sentindo-se só antes da Sua condenação, assim é nossa vida, cuja solidão é abafada pela artificialidade e poses de uma vida falsa. Não há vida interior sem o reconhecimento desta condição, sem saber que habitamos o mesmo jardim que Deus habita. Nem inteligência verdadeira, nem verdadeira paz, nem verdadeira liberdade.

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