segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A cruz da pessoa desajustada


          Se você é um desajustado num mundo que lhe exige cumprir certos preceitos e comportamentos - preceitos e comportamentos que, na verdade, você idealizou como corretos - talvez sinta que nunca, jamais sua vida entrará nos eixos segundo esses ideais, reais ou imaginários.

          Para não falarmos de casos reais, podemos recorrer à literatura para descobrir o rumo que um desajustado pode tomar em sua vida, geralmente a um preço muito elevado se comparado, à primeira vista - veja bem, à primeira vista -, com aqueles que consideramos "felizes" e "realizados".

          Mesmo entre as pessoas famosas e influentes, apontadas como exemplos de sucesso nas coisas do mundo, há muitos casos de vocações frustradas, mesmo quando elas cumprem aparentemente os dois pilares que compõem o ideal de felicidade na sociedade moderna, que são a plena realização no casamento e no trabalho.

          O escritor russo Fiódor Dostoiévski, por exemplo, vivia em condições paupérrimas apesar de seu enorme talento com o intelecto e as palavras. Alguém que "deu errado" mesmo em seu tempo, o século XIX, dada algumas qualidades tão evidentes em relação à esmagadora maioria das pessoas. 

          Cito este escritor porque um de seus personagens exemplifica muito bem a enorme dificuldade que uma pessoa pode ter para se adaptar ao mundo. Trata-se de Liev Nikoláievitch Míchkin, personagem principal do romance O Idiota e que carrega muitos traços característicos do autor. 

          O título do livro é um dos adjetivos do pobre homem que, sofrendo de epilepsia e fortemente afetado pela turbulência de um meio social conflituoso e agonizante, não consegue se adequar ao ambiente em que se inserira. Príncipe Míchkin, como é chamado, acaba numa clínica para doentes mentais na Suíça, longe do mundo que o rejeitara na Rússia, seu país natal.

          O mais interessante é que aquele que era chamado de "idiota" estava mais são do que todos os demais personagens. De alma pura, Míchkin não suportou as tensões emocionais de duas famílias aristocratas em conflito, a militância política de um grupo de revolucionários niilistas e a dubiedade e mesmo má intenção de uma das duas mulheres que por ele se apaixonaram. Sofrendo de epilepsia, doença que Dostoiévski possuía, eram muitas tempestades para alguém hipersensível para o ambiente entorno.

          Os críticos da obra caracterizam o príncipe Míchkin como um misto de Jesus Cristo com Dom Quixote para definir sua pureza e ingenuidade quase infantis. Pois num mundo doente, quem parece doente é justamente aquele que está são, e ainda mais doente aquele que é bom de coração. 

          Esse personagem é um claro exemplo de pessoas que não de enquadram no mundo, tomando aqui "mundo" não apenas no seu contexto social específico como também no sentido bíblico de sociedade humana. Mundo é a realidade organizada e criada pelo homem e, refletindo a imagem e semelhança de seu criador, carrega também suas incoerências e contradições.

          Pois o desajustado quer se evadir do mundo, e poucas coisas são mais tentadoras do que fugir deste mundo para um outro. Não, não falo de suicídio, e sim do refúgio na vida interior e o potencial dano que isso pode causar quando essa atitude cobra o preço de negar os deveres e necessidades da vida. 

          Ninguém está imune à necessidade de trabalhar para sobreviver, nem do dever de realizar coisas básicas no trato com o próximo como cumprir acordos tácitos que estão subjacentes, por exemplo, na resposta a uma pergunta ou num ato de compra e venda. Evadir-se do mundo não é a solução, mas fuga para o desejo imaginário de uma vida sem esforço, de um paraíso idílico sem o peso e o consequente suor cobrado pelo pecado original.

          A tentação de evasão do desajustado está em evitar os efeitos de um mundo que lhe agride por sua hipersensibilidade. O personagem Míchkin, ao mesmo tempo em que influenciava positivamente as pessoas ao seu redor com suas reflexões íntimas e exemplo de conduta, absorvia excessivamente o impacto das loucuras alheias. Um troca desigual causada por um sacrifício involuntário, o de iluminar os erros alheios através de um sofrimento psicológico que lhe tirava a paz a todo o instante.

          Não por acaso o mais bem acabado personagem de Dostoivéski acabou retornando à clínica onde estivera meses antes. O mundo era agressivo demais, louco demais para um homem excessivamente são e bom. Voltara à prisão a alma mais pura que não suportou a doença de um mundo que prenunciava a confusão e o caos que viria a perturbar muitas almas e se alastrar por toda a humanidade.

          Na literatura se multiplicam as figuras que não se encaixam no mundo. As obras distópicas são exemplares nesse ponto. Os personagens Bernard Marx de Admirável Mundo Novo, Winston Smith de 1984 e Juliana Frink de O homem do castelo alto se adaptam forçosamente a uma realidade hostil e lutam até o fim de suas forças para confrontar e vencer uma ordem repressiva e artificialmente imposta. Obviamente, estes são casos extremos, mas num mundo onde a liberdade a cada dia se torna mais exígua, mais e mais desajustados - e muitos conformados - começam a brotar em nossas esquinas.

          Possivelmente Dostoiévski corroboraria as atitudes desses heróis literários, como o enigmático personagem de Memórias do subsolo, que proclama em alta e profunda voz a liberdade humana em conflito com as limitações de sua própria condição existencial. Eis o desajustado por excelência, que se debate em sua impotência frente a um mundo que não pode transformar decaindo na apatia de uma experiência repleta de conflitos e frustrações, de uma vida num subterrâneo deprimido pela crosta que o oprime.

          Talvez a pessoa desajustada não seja apenas fora do lugar, mas sensível demais para aceitar uma ordem social deformada, doente na alma e conduzida por cegos rumo ao abismo. Mas isso não é razão para a apatia, e sim para a luta. Primeiro por sua própria sobrevivência, a necessidade de carregar uma cruz que, aparentemente, pesa mais do que a dos outros; e depois para, através dessa mesma superação, fazer do príncipe um vitorioso, iluminar pelo exemplo um mundo que jaz na escuridão.

Um comentário: