Acordar todos os dias e enfrentar a vida é o caminho inevitável de todos. Só não encara a realidade que já está morto. Mesmo aquele que acorda e, por qual motivo seja, passa o dia deitado na cama está encarando a vida de alguma forma. De forma depressiva, mas está.
Ocorre que cada dia é uma história nova, da mesma forma que os dias sucessivos formam uma história única, e esta insere-se numa história coletiva de uma humanidade que caminha num Universo vasto de contornos indeterminados.
O que fazemos a cada dia é o que dá sentido a ela. Várias vezes citei Viktor Frankl aqui e não vou repetir; apenas faz-se necessário lembrar que nossas realizações contem para nós uma história, e nisto consiste a narrativa de nossas vidas. Cada dia torna-se, portanto, um passo para a nossa realização ou um período perdido no qual falhamos nesta mesma realização que, importante lembrar, não é a chegada a um ponto específico onde encontraremos a felicidade definitiva, mas uma caminhada realizada de forma consciente a um objetivo.
Em outras palavras, a narrativa de uma vida realiza-se quando temos um foco, sabemos o que queremos e transformamos nossa energia vital numa realização concreta.
Mas e se caminhamos no escuro sem saber o que queremos ou devemos fazer de nossas vidas? Talvez a resposta resida na realização de uma narrativa, tão bem exemplificada nesta aula proferida pelo filósofo Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, o Gugu, em 2018.
Todos nós, diz ele, buscamos uma narrativa de vida, possuímos uma inclinação natural para realizá-la, mesmo que não tenhamos parado para pensar ou filosofar na vida desejamos.
Quando crianças, fantasiamos vidas ideais nas brincadeiras, onde fingimos ser heróis, policiais, vilões, marido, mulher, o super-homem. Mas no transcorrer dos anos, na adolescência, passamos a desejar a vivência de experiências reais, onde o desejo de realização das brincadeiras de infância se transmutam em algo concreto. E disto surgem os heróis verdadeiros, as famílias verdadeiras, a pessoa que tanto sonhou por ter sua liberdade e independência pessoal ou que descobriu o mistério que desde criança observava na natureza.
Porém, todas as vezes que terminamos nosso dia sem darmos rumo à nossa busca pela realização pessoal, na concretização de nossa vocação, sentimos como um dia perdido e frustrante. Nada anormal nisto; o problema está nos sucessivos dias de perda gastos sem sentido.
Não surpreende a grande quantidade de pessoas jovens doentes e infelizes, numa sociedade como a brasileira onde proliferam farmácias a cada esquina. Da frustração acumulada, da narrativa diária não realizada milhares de vezes, surgem a tristeza, o medo e a raiva, sentimentos que se tornam modos de vida e que acabam em consultórios e clínicas, quando não na cadeia e no cemitério.
Vidas sem narrativas são vida sem esforço ou esforço desperdiçado em vão, de anos perdidos em dias onde nossa história não foi contada para nós mesmos. São como dias inacabados que, acumulando-se ao longo dos anos, tornam-se cruzes pesadas deformam nossa personalidade. Da criança feliz e sonhadora passamos ao adulto infeliz e desesperançado; realiza-se a fórmula da infelicidade.
Criar uma narrativa é caminhar diante de si, é exercitar diariamente a consciência para que ela guie nossos rumos. Esta consciência é nosso senso de existência que sonda nossa pessoa e a realidade na qual estamos inseridos. Isto é o que chamamos de caminhar diante de Deus, pois sendo Ele a Consciência Primeira, nossa consciência é Dele derivada e, portanto, reflete a Vontade que governa o mundo, mas que deveria governar nossas vidas.
Cada dia não realizado é um dia onde nossa consciência estava adormecida. Não basta apenas acordar e levantar da cama; é necessário que acordemos também a cada dia e façamos, de forma consciente e deliberada, a seguinte pergunta: "Meu Deus, o que Você quer que eu faça hoje?"