sábado, 2 de maio de 2020

As memórias da infância e a tábua da salvação (Dostoiévski)


          As obras de Dostoiévski têm valor universal porque elas tocam no mais profundo da natureza humana.

          Uma de suas constantes é o caminho da redenção, traçado em linhas tortas (às vezes muito tortas), mas que desembocam na iluminação das almas de seus personagens.

          Ao final da obra "Os Irmãos Karamázov", o bem-aventurado Aliócha deixa uma mensagem para um grupo de garotos que acabara de acompanhar o enterro de um de seus membros. Disse ele:
"Sabei que não há nada mais elevado, nem mais forte, nem mais saudável, nem doravante mais útil para a vida do que uma boa lembrança, sobretudo aquela trazida ainda da infância, da casa paterna. Muito vos falam de vossa educação, mas uma lembrança maravilhosa, sagrada, conservada desde a infância, pode ser a melhor educação. Se o homem traz consigo muitas dessas lembranças para sua vida, está salvo pelo resto da existência. Mesmo que guardemos apenas uma boa lembrança no coração, algum dia só isto já poderá servir como salvação."

          A mensagem é clara: boas lembranças fazem boas pessoas, ou ao menos aumentam a chance de torná-las boas. 

          Talvez alguém diga que isto é pouco. Porém, para haver boas lembranças, é necessário atravessar boas experiências, e isto só é possível para os que se abrem a estas mesmas experiências. É deixar-se penetrar pelo bem de forma a guardá-lo em si tornando este parte de sua identidade.

          A educação moderna ignora por completo a necessidade de educar o imaginário humano atendo-se ao acúmulo de conteúdos voltados à vida meramente prática.

          O imaginário é o horizonte de nossas possibilidades futuras e a partir do qual medimos o mundo. Uma boa educação forma uma boa pessoa, fornece a ela a herança da literatura, da alta cultura e, acima de tudo, do exemplo dos pais numa boa família.

          Portanto, viver e guardar boas experiências é educar a alma para que possamos reproduzir ou projetar o bem no futuro, é poder reviver, através de uma reformulação da memória transposta numa nova ação, o bem vivido de forma que outros também o vivenciem. 

          Isto é fazer o bem, isto é fazer caridade. Como resultado, o mundo torna-se melhor, mas antes porque nos tornamos pessoas melhores. Aliviamos a dor do mundo ao mesmo tempo em que ascendemos ao Paraíso.

          Basta apenas uma, só uma boa lembrança para que o fazer o bem seja possível, para que ele se torne possibilidade futura. E nada mais importante do que cravar no coração esta experiência na terna infância, período onde fincamos as estacas mais profundas de nossa personalidade.          

        No enredo de Dostoiévski, Kólia, o mais inteligente e prepotente dos garotos, vaidoso e agarrado aos seus conhecimentos, cede à doçura de Aliócha e abraça a fé cristã na alegria que esta fé lhe infunde. "Ah! Como isso vai ser bom!", se extasia ao vislumbrar a ressurreição dos mortos.

          Em meio aos sofrimentos da vida e à loucura reinante, Dostoiévski deixa o caminho da esperança e o dever que a atual geração tem de legá-la para as gerações futuras.        

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