quarta-feira, 29 de abril de 2020

Dostoiévski e o homem incapaz de amar

(Personagens Aliócha e Zossima, no seriado russo homônimo da obra, de 2009.)

          Um leitor das obras de Dostoiévski não sai indiferente à crueza e à veracidade profunda dos diálogos e dramas de seus personagens. 

          Aparentemente exagerados, este revelam os meandros da complexa psicologia humana, as profundezas do dilema existencial e as loucuras do ativismo político que viriam virar o mundo de cabeça para baixo no século XX.

         Na obra "Os Irmãos Karamázov", o stárietz Zossima, monge ortodoxo superior de Aliócha, relata o diálogo com um médico sem nome, muito revelador da condição sombria do homem incapaz de amar:

          "...eu, dizia ele, amo a humanidade, mas me admiro de mim mesmo; quanto mais amo a humanidade em geral, menos amo os homens em particular, ou seja, em separado, como pessoas isoladas. Em meus sonhos, dizia ele, não raro chegava a intentos apaixonados de servir à humanidade e é até possível que me deixasse crucificar em benefício dos homens se de repente isso se fizesse de algum modo necessário, mas, não obstante, não consigo passar dois dias com ninguém num quarto, o que sei por experiência. Mal a pessoa se aproxima de mim, e eis que sua personalidade já esmaga meu amor-próprio e tolhe minha liberdade. Em vinte e quatro horas posso odiar até o melhor dos homens: este por demorar muito a almoçar, aquele por estar resfriado e não parar de assoar o nariz. Eu, dizia, viro inimigo das pessoas mal elas roçam em mim. Em compensação, sempre acontecia que quanto mais eu odiava os homens em particular, mais ardente se tornava meu amor pela humanidade em geral." (grifos meus)

          Mas caberia perguntar a este homem: o que seria do amor se não fosse ele justamente a doação, o desejo de ser um com o outro? Como amar "a humanidade" sendo esta uma abstração da soma da totalidade de homens concretos dotados de histórias, sentimentos, vidas e amor verdadeiro, e não um conjunto indefinido de pessoas?

          Quem ama abdica, quem ama suporta, quem ama tudo tolera. Jesus Cristo não pediu para que amássemos o todo, mas a todos, uns aos outros, eu, você e cada um com sua história real, incluindo aí seus defeitos, erros e mesmo crimes.

          Mesmo os inimigos não estão fora deste apelo do amor. Não se faz necessário ser íntimo do inimigo; o amor não é tolo e imbecil, antes sábio e prudente. Amar o assassino não é colocar-se ao seu alcance. Afinal, quem o amaria se aquele que o ama se expõe ao perigo de perecer pela crueldade alheia?

          Amar a humanidade é uma intenção oca, uma palavra jogada ao vento adaptável a qualquer discurso ou pretexto. Bem sabem os compatriotas de Dostoiévski, massacradoa aos milhões em nome do "mundo melhor", a humanidade perfeita, o paraíso terrestre.

          Da imaturidade decorre a incapacidade de amar, e da incapacidade de realmente amar decorre o amor à humanidade, que facilmente se converte em violência. É a projeção do ódio a si mesmo, da revolta de si que, incapaz de se reconhecer, aceitar seu próprio fracasso e perdoar a si mesmo, desemboca na enxurrada de violência contra o próximo, o bode expiatório de suas culpas mal resolvidas.

          O homem incapaz de amar não ama a si mesmo. Ninguém pode dar o que não tem. Do homem infeliz, resta apenas o sonho e a tristeza de não ser o que gostaria de ser. Falta-lhe amor.          

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