(São João Paulo II em sua primeira visita à Polônia, em 1979.)
São João Paulo II foi uma das grandes personalidades do século XX. Ergueu-se como referência moral a favor das populações reprimidas e perseguidas pela tirania comunista e incentivou que católicos do mundo inteiro se empenhassem na propagação do Evangelho não apenas com palavras, mas com exemplos.
Este incentivo e empenho, corporificado em sua pessoa, foi decisiva para a queda do bloco comunista entre 1989 e 1991, cujo sistema ateu o Papa considerava um "implacável inimigo do espírito humano" e "causa de sofrimento e insegurança para indivíduos e nações" inteiras.
O início de seu pontificado, desde a eleição em 16 de outubro de 1978 até a primeira metade dos anos 1980, foi decisivo para desmantelar, por dentro, o mundo comunista.
Desde o pontificado de outro santo, João XXII (1958 - 1963), o "Papa bom", o Vaticano lançou mão da Ostpolitik, um novo capítulo de relações políticas e diplomáticas com a Europa Oriental e a União Soviética. Este capítulo ganhou novo impulso a partir de julho de 1975, quando o então cardeal, diplomata e futuro Secretário de Estado Angelo Casaroli (1979 - 1990) endossou a Ata Final do Acordo de Helsinque, que versava sobre a segurança e as liberdades na Europa, com apoio dos soviéticos
Esta política, continuada com São Paulo VI e o próprio João Paulo II, era vista com desconfiança por parte dos católicos e do clero, pois implicava em concessões políticas ao comunistas, inimigos declarados (muitas vezes de forma discreta) da Igreja Católica. As divergências podem ser vistas, por exemplo, nas discussões em torno do tema entre os membros do Instituto Keston, de Oxford, voltado às análises das questões políticas, sociais e religiosas do Leste Europeu e da Rússia, que viam com reservas e desconfiança as "boas" relações da Igreja com o mundo comunista e a tensão entre as dimensões política e moral da diplomacia da Santa Sé.
Enérgico, inteligente, carismático e popular, João Paulo II começou a corroer o poder comunista na primeira viagem à sua terra natal, a Polônia, entre 2 e 10 de junho de 1979. Um peregrino do Espírito Santo, como definiu o Instituto Keston na época com um título pouco comum para um artigo acadêmico.
Foi uma viagem de negociações complicadas com o governo do general Wojciech Jaruzelski, que forçou seu adiamento em um mês, o contrário do que desejava o Papa.
Transmitindo sua visita ao vivo pela televisão estatal, Varsóvia esperava que as pessoas assistissem passivamente a visita do primeiro Papa eslavo à sua terra natal. Não permitiu dia de folga aos trabalhadores, restringiu a entrada de jornalistas ocidentais e religiosos cobrando-lhes preços abusivos para os encontros e ditou o itinerário de João Paulo pelas cidades do país.
Resultado: duas milhões de pessoas nas ruas de Varsóvia em sua primeira missa campal, seis milhões de telespectadores; um evento que o governo esperava ser nacional teve repercussões mundiais. Os jornalistas não viram uma multidão histérica e desesperada, mas em profunda sintonia com o Papa, que pedia às pessoas se deixarem guiar pelo Espírito Santo, "se manterem fortes" e firmes na fé, defender os valores cristãos, além de lançar um apelo pela unidade espiritual da Europa, num chamado de união com os ortodoxos, mensagem que se estendia para além das fronteiras da Polônia. O empenho por esta união com o Leste marcaria todo o seu pontificado.
Só então a imprensa soviética passou a dar grande relevância a João Paulo II, antes observado de perto pelo serviço secreto polonês com muita desconfiança, que gravava e analisava seus sermões. O mesmo serviço revelou a vitalidade espiritual do novo Papa, afirmando que ele rezava seis horas por dia e prostrava-se ao chão em forma de cruz durante as orações numa capela privada.
Segundo os Arquivos Mitrokhin, no ano em que o então bispo de Cracóvia foi eleito Papa, 25% dos poloneses rezavam privadamente; este número subiu para 50% cinco anos depois, índice que Varsóvia atribuiu à "crise político-social" da época, que envolvia a ascensão do movimento Solidariedade em 1980, os protestos de rua, as disputas e negociações com a Igreja polonesa em torno dos símbolos religiosos em repartições públicas e o golpe militar de dezembro de 1981.
O entusiasmo por um Papa polonês penetrou até mesmo nos círculos comunistas. Para consternação da KGB, a eleição de Karol Wojtyla não foi recebida com animação apenas pela população local, mas até mesmo por parte do serviço secreto polonês!
Enquanto o Vaticano mantinha a Ostpolitik capitaneada por Casaroli, Secretário de Estado do novo pontífice, João Paulo II realizava sua diplomacia papal arrastando multidões em suas viagens e realizando fortes sermões em defesa da dignidade humana, da liberdade religiosa e da fé católica, além de atuar no contato direto com autoridades políticas. Por um lado, o Estado do Vaticano continuava o diálogo com o bloco comunista; mas por outro, o pontífice buscava fortalecer a unidade da Igreja e exortava clérigos e fiéis a resistirem à opressão do bloco, contrastando com seus antecessores, João XXIII e Paulo VI, que preferiam evitar confrontos com Moscou.
Assim, desde o início do pontificado até a primeira metade dos anos 1980, a política vaticana combinava uma diplomacia oficial com uma ação incisiva do Papa, que afetava diretamente o bloco soviético corroendo-o de desde dentro, ao exemplo dos eventos descritos a seguir.
Na Hungria, depois de duas negociações em Budapeste com o governo em dezembro de 1978 e março de 1979, o arcebispo Luigi Poggi, núncio papal neste país, consagrou quatro novos bispos sendo congratulado pela Santa Sé. Na Bulgária, o Papa apontou dois novos arcebispos para a minoria católica local após negociações pessoais de João Paulo II com autoridades búlgaras. Foi uma surpresa para os fiéis, dadas as restrições às liberdades religiosas no país e o fato de que um dos clérigos, Samuel Dzhundrin, havia sido ordenado bispo clandestinamente em 1959 e esteve doze anos preso.
Na então Tchecoslováquia, em março de 1982, o Papa consagrou três novos bispos de forma clandestina e proibiu clérigos do país de participarem da vida política, ou seja, de se afastarem de organismos religiosos controlados pelo governo; na Alemanha Oriental, admoestou a Igreja local a se manter firme contra a militarização da vida pública.
Na Lituânia, então território soviético, o Papa ordenou dois bispos clandestinos, um cardeal que fora exilado por vinte anos (o primeiro cardeal soviético), defendeu o direito de propriedade da Igreja e deu apoio direto às iniciativas cívicas dos católicos, como a criação de um comitê de defesa de direitos dos fiéis. Os lituanos possuíam uma grande Igreja clandestina com um seminário, ordens de freiras e jornais, e em declaração de maio de 1981 juraram total lealdade ao Papa.
Com relação à Ucrânia, na primavera de 1980, João Paulo II convocou o primeiro sínodo no exílio da Igreja Greco-Católica Ucraniana, liquidada por Stálin em 1946 e então totalmente clandestina, ato que recebeu dura crítica do governo soviético e de Pimen, Patriarca de Moscou, um peão do Kremlin. De acordo com os Arquivos Mitrokhin, Pimen era considerado agente de primeira categoria da KGB sob o codinome Kuznetsov. Um segundo sínodo fora convocado em fevereiro de 1983.
O cardeal ucraniano e líder greco-católico exilado em Roma, Josyf Slipyj, havia pedido, em novembro de 1978, que o Papa revisasse o diálogo com a Igreja Ortodoxa Russa, baseado, segundo ele, em "falsos fundamentos", e que fosse criado um Patriarcado Ucraniano católico. Apesar da resposta negativa, João Paulo II reconheceu os sofrimentos do cardeal e o chamou para o espírito ecumênico, que viria a ser uma das principais marcas de seu pontificado.
O apoio aos greco-católicos fez aumentar o número de sacerdotes na Ucrânia, que chegavam a quinhentos, estimulou a criação de um comitê de defesa dos direitos da Igreja e injetou ânimo na comunidade religiosa clandestina.
A Santa Sé também declarou apoio aos católicos da Letônia e Belarus, então territórios da União Soviética, acusados de atividades ilegais, como serviços e educação religiosos, defendendo a liberdade religiosa e seus direitos de propriedade.
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Não foi por acaso que os comunistas, através do serviço secreto da Bulgária e com, ao menos, complacência da KGB, tentaram matar João Paulo II em 13 de maio de 1981 num atentado a tiros na Praça de São Pedro. Moscou ficou alarmada com a viagem do Papa à Polônia em 79 e percebeu o impacto que sua personalidade provocava na multidão católica, e mesmo na cristã em geral, bem como os efeitos de suas atitudes públicas e oficiais na esfera política.
É notória, também, a atribuição que este grande santo deu à Nossa Senhora de Fátima à sua sobrevivência. Como agradecimento, dirigiu-se à Fátima, em Portugal, em 13 de maio de 1982 e depositou a bala do atentado na coroa da imagem encaixando-a perfeitamente no orifício superior da estrutura.
Neste mesmo espírito, João Paulo II convocou, em 8 de dezembro do mesmo ano, o encontro dos bispos do mundo todo para a consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, em Roma, em 25 de março de 1984. Neste ato solene, realizou também uma consagração implícita da Rússia, tal qual mostra o texto da Santa Sé no Ato de Consagração a Nossa Senhora de Fátima, e assim teria cumprido um dos preceitos das mensagens de Fátima.
Importante notar que na oração de consagração, São João Paulo II não menciona a Rússia, ainda que provavelmente fosse sua real intenção, fazendo referência indireta ao país como "os povos que (...) são particular objeto de Vosso amor e Vossa solicitude". A omissão da menção explícita seria resultado da pressão de políticos do Vaticano que, em consonância com a Secretaria de Estado dirigida por Casaroli, queriam evitar atritos com Moscou.
Quem cita os "políticos" é o falecido Gabriele Amorth, padre exorcista e organizador da cerimônia de 84, que em 2016 divulgou um vídeo onde afirma que a consagração da Rússia não fora realizada como Nossa Senhora especificou à irmã Lúcia na aparição de Tuy, Espanha, em 13 de junho de 1929.
Válida ou não, a discussão em torno desta consagração é mais um capítulo, de valor espiritual central, na tensão que João Paulo II enfrentou entre uma Igreja que buscava diálogo ao mesmo tempo que tentava se libertar do jugo comunista, permitindo que seus fiéis e todos os demais não católicos pudessem gozar da liberdade pessoal e cívica necessárias para uma vida espiritual e de paz.
Com a queda do bloco comunista entre 1989 e 1991, São João Paulo II pode ser visto como um homem que cumpriu em sua missão, ainda que jamais tenha pisado na Rússia (nem na China) como desejava. Em reunião com Gorbachev em 1989, acordou a restauração da Igreja Greco-Católica Ucraniana, e em 1991, meses antes de seu fim, a URSS promulgou oficialmente a liberdade religiosa.
Hoje, a Igreja Católica continua sua caminhada buscando a união com os cristãos do leste, como mostram os recentes encontros de Francisco com os patriarcas ortodoxos Bartolomeu e Kirill, e espalhando a boa nova em tempos cada vez mais difíceis, ao exemplo da perseguição do extremismo islâmico e do fechamento de igrejas na crise do covid em 2020.
Considerado santo súbito já em 2 de abril de 2005, data de sua morte, Karol Wojtyla foi canonizado pelo Papa Francisco em 27 de abril de 2014.
São João Paulo II, rogai por nós!