(Retrato de Praskovia, pintado por Ivan Argunov, servo de Nikolai, em 1802. No seu peito a medalha com o rosto do marido com quem recém se casara.)
A cultura moderna erigiu o amor romântico como a forma de relacionamento ideal entre homem e mulher como se a relação fosse exclusivamente baseada num sentimento profundo e perfeito de entrega, paixão e sofrimento. A realidade, no entanto, é muito distinta do idealismo da ficção, tão presente no cinema, nas novelas e na literatura.
O matrimônio é sim baseado no amor, mas também em muitas outras coisas, da necessidade de equilibrar e harmonizar os interesses, de trabalhar pelo bem do outro, de fazer sacrifícios. O amor é o desejo real de entregar-se ao outro, talvez o sacrifício mais profundo. O homem casado não tem uma esposa: ele
é da esposa. Da mesma forma a mulher casada: ela não tem um marido, ela
é do marido. Isto vale, segundo as possibilidades, para todos os casos da vida, inclusive na relação sexual: se o marido quer se satisfazer na cama, cabe à mulher satisfazê-lo; e vice-versa. O corpo de um pertence ao outro. O padre Paulo Ricardo, conhecido por suas aulas e vídeos de esclarecimento da doutrina católica e pelo seu perfil conservador, explica isto
neste vídeo. O sexo visa a reprodução, mas também o amor, a união total.
A Igreja Católica vê o matrimônio como uma das quatro vocações existentes, sendo as outras três o sacerdócio (só para homens), a vida religiosa e a vida leiga consagrada. A grande massa é vocacionada ao matrimônio, e assim como as demais vocações tem como missão santificar a alma. Bem sabemos que a santidade não é vida boa, mas um caminho árduo de sacrifícios, a "porta estreita" que nos fala Jesus Cristo.
(Retrato do conde Nikolai)
Um caso bastante específico e impressionante do que um matrimônio pode fazer com uma pessoa é o de Nikolai Petrovich Sheremetev. Conde que viveu na Rússia entre 1751 e 1809, Nikolai foi servo pessoal e amigo do imperador Paulo I e neto de Boris Sheremetev, último boiardo da Rússia. Boris era pessoa próxima do czar Pedro, o Grande, e fez fortuna com serviços prestados ao imperador ao longo de décadas. Fiel ao serviço da coroa, sua família recebeu terras, bens e honrarias e se tornou a segunda mais rica de toda a Rússia depois apenas da família dinástica dos Romanov.
Segundo Orlando Figes no livro
Uma história cultural da Rússia, Nikolai era mulherengo e costumava flertar com as servas que trabalhavam nas casas e palácios dos Sheremetev. Mas o aristocrata se apaixonou por uma delas, Praskovia Kovalyova-Zhemchugova, com quem se encontrou às escondidas até o casamento. Cabe especular até que ponto a serva submeteu-se à vontade do seu senhor, mas desde início sua relação foi marcada por dificuldades, principalmente pela necessidade de esconder os encontros dos olhos de outras pessoas. Praskovia teve de suportar os comentários e as piadas dos outros servos pelo envolvimento com alguém da aristocracia e as repreensões da família por viver um relacionamento incerto. Para protege-la e poder encontrar sua amada em privado, Nikolai alocou Praskovia na sua propriedade em Kuskovo, perto de Moscou, para onde viajava para encontrá-la, e depois construiu uma casa de madeira para ela. Mas com a ascensão de Paulo I ao trono, o conde foi nomeado camareiro-chefe do imperador e teve de se fixar definitivamente em São Petersburgo. Assim Praskovia voltou e passou a morar na mesma residência, a Casa da Fonte. Agora era a vez do conde lidar com a rejeição e raiva da aristocracia, que considerava um escândalo uma serva morar em sua casa. A família Sheremetev deserdou Nikolai, que ainda manteve suas propriedades. A rígida hierarquia social e a obsessão da nobreza russa por status dificultava muito o casamento com uma serva. Nobres e servos não formavam famílias publicamente, mas mantinham relacionamentos às escondidas e, ao exemplo da relação senhor-escravo no Brasil colonial, geravam filhos ilegítimos. Em 1801, Nikolai libertou Praskovia da servidão e casou-se com ela no dia 6 de novembro numa cerimônia secreta em uma pequena igreja na vila de Povarskaia, perto de Moscou.
(Casa da Fonte, principal propriedade da família Sheremetev. Símbolo de São Petersburgo, hoje sedia o Museu Anna Akhmatova, nome da poeta que viveu na casa entre 1926 e 1952.)
O retorno de Nikolai a São Petersburgo e o casamento com Praskovia isolou o conde da vida pública, e poucos eram os amigos que mantiveram os laços de amizade, dentre eles o imperador Paulo I, que inclusive apoiou o relacionamento dos dois. A agora ex-serva e condessa sofria de tuberculosa e tinha uma saúde frágil. Depois de ter seu único filho, Dmitri, em 1802, sua saúde piorou, vindo a falecer três semanas depois. Praskovia, que viveu em torno de um ano casada, foi sepultada no Mosteiro Alexandre Nevski. O mais impressionante foi a presença das pessoas no enterro. Ou melhor: a falta delas. Como Paulo I fora assassinado, ninguém da corte esteve presente, bem como ninguém da nobreza e nem mesmo da própria família, os Sheremetev.
A tristeza e a amargura de Nikolai transformaram-se em ação que foi muito além da família e da aristocracia. Como descreve Figes no seu livro:
"Perdido de pesar, o conde demitiu-se da corte, virou as costas para a sociedade e, retirando-se para o campo, dedicou seus últimos anos ao estudo religioso e às obras de caridade em homenagem à esposa. É tentador concluir que havia um elemento de remorso e até culpa nessas obras de caridade - talvez a tentativa de ressarcir as fileiras sob servidão de onde viera Praskovia. Ele libertou dezenas de servos domésticos favoritos, gastou enormes quantias para construir hospitais e escolas de aldeia, criou fundos para cuidar de órfãos, fez doações a mosteiros para darem comida aos camponeses quando a colheita escasseava e reduziu pagamentos cobrados dos servos das suas propriedades. Mas o projeto mais ambicioso de todos foi o asilo que fundou em memória de Praskovia nos arredores de Moscou - a Strannoprimny Dom, que, naquela época, de certa forma, foi o maior hospital público do império, com dezesseis enfermarias masculinas e dezesseis femininas. "A morte da minha esposa", escreveu ele, " me abalou a tal ponto que a única maneira que conheço para acalmar o meu espírito sofredor é me dedicar a cumprir a sua ordem de cuidar dos pobres e doentes." Durante anos, o conde, abalado pelo pesar, saía da Casa da Fonte e andava incógnito elas ruas de Petersburgo, distribuindo dinheiro aos pobres. Morreu em 1809, o nobre mais rico de toda a Rússia e, sem dúvida, também o mais solitário. No seu depoimento ao filho, ele quase rejeitou por completo a civilização incorporada à obra da sua vida" (p. 70-71)
No testamento ao filho, Nikolai escreveu, que sua paixão pelas artes, as coisas raras, "Não deixava a mais remota impressão na alma." E se questionava: "Para que todo este esplendor?"
O solitário conde deixou para trás a opulência da nobreza e curvou sua riqueza para o bem do próximo. Encontrou sentido, infelizmente, pela dor, mas deixou um legado e um exemplo do que alguém com posses pode fazer por aqueles que necessitam. Esta foi a obra involuntária de Praskovia: fazer de Nikolai uma pessoa melhor, ou pelo menos fazer dele o instrumento de um legado e um exemplo. Se o conde dedicou-se à caridade por culpa, dor, fiel adesão ao segundo mandamento ou os três fatores juntos, pouco importa: o trauma da perda e a desilusão de uma vida falsa, a lembrança do amor verdadeiro e o sentimento de ter perdido tempo com coisas desnecessárias são razões mais do que suficientes para girar o leme e dar um novo rumo à vida. Sei por experiência própria que a perda de tempo por negligência ou decisões erradas dão uma sensação de urgência, a necessidade de encontrar, de forma tenaz e perseverante, um objetivo de vida. Parece que esta foi a experiência de Nikolai: encontrou numa ação substantiva e duradoura o preenchimento de um vazio e um pouco de alívio na dor que o dilacerava. Encontrou na caridade uma vida nova.
Fiquei com forte impressão desta passagem do livro de Orlando Figes, talvez por ser alguém que demorou para descobrir que, de fato, eu não era vocacionado à vida religiosa. E que o casamento é uma via não só de santificação como de felicidade, que nunca é um oceano permanentemente calmo, mas recheado de tormentas onde um se torna o refugio do outro. E mais: a história do conde mostra a força que um matrimônio fincado no amor verdadeiro tem para transformar uma vida. Nikolai se viu impelido a tomar uma nova atitude, forçado, também, pela pressão social. Mas foi uma atitude que não pode deixar de ser admirada. Ela é a consumação do Evangelho de Mateus (25, 31-46) onde Jesus Cristo anuncia a separação dos rebanhos. Salvam-se os que fazem a caridade, os que vêem Ele nos outros. Se Praskovia não fez de Nikolai um santo (talvez longe disso), ao menos mostrou-lhe o caminho. Devemos ser o farol para nossa cara metade.