O primeiro capítulo do livro “Vidas
Desperdiçadas” (2004) do sociólogo polonês Zymgunt Bauman versa sobre o projeto da
modernidade. O capítulo tem um nome claro e direto: chama-se “No começo era o
projeto”. Trago aqui o texto que escrevi para um disciplina de pós-graduação.
Bauman sintetiza o projeto da
modernidade como a forma do homem moderno encarar o mundo através do
pensamento racional e da necessidade, inerente a este pensamento, de
administra-lo. O mundo administrado é o mundo preconcebido pelo
pensamento racional, ou seja, é precedido por ideias, planos, ideais e
intenções premeditadas. Daí a concepção do projeto moderno, que abarca todas as
dimensões da vida das pessoas que vivem sob o manto da modernidade.
A discussão do livro de Bauman gira
em torno da ideia de refugo humano, as pessoas que são consideras e tratadas
com “o resto” da humanidade ou, numa linguagem mais popular, os “excluídos”. No
capítulo em questão, é a partir da página 31 que Bauman relaciona a ideia de
refugo com a de projeto moderno e inicia uma análise muito interessante da real
dimensão sobre as reais consequências deste aspectos inerente à modernidade:
“Indagado
sobre como obtinha a bela harmonia de suas esculturas, Michelangelo teria
respondido: ‘É simples. É só você pegar um bloco de mármore e cortar todos os
pedaços supérfluos’. No auge do Renascimento, Michelangelo proclamou o preceito
que foi o guia da criação moderna. A separação e a destruição do refugo seriam
o segredo comercial da criação moderna: cortando e jogando fora o
supérfluo, o desnecessário e o inútil, seriam descobertos o belo, o harmônico, o
agradável e o gratificante” (BAUMAN, 2004, p. 31-32, grifo no original)
A analogia com a visão de trabalho de
Michelangelo perpassa todo o restante do capítulo: para alcançar o ideal, o
objetivo final do plano previamente pensado, é necessário tirar de cena tudo e
todos os que não se enquadram no projeto. O projeto aqui pode ser qualquer
coisa que estabeleça um objetivo a ser alcançado no futuro: acabar com a
pobreza, o desemprego, mudar a forma de organizar a economia, estabelecer
planos e metas na educação, criar um determinado regime político (democrático
ou não), estimular as ciências e assim por diante. Mesmo que as intenções sejam
boas e os objetivos alcançáveis, inevitavelmente
haverá pessoas que não se enquadrarão, por razões diversas, nos projetos em
questão, sejam eles quais forem.
Bauman lembra que para a mentalidade
moderna é a mentalidade da transformação constante, é a ideia de que “o mundo pode ser transformado (grifo no
original). A modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem sido
até agora e à decisão de transformá-lo” (BAUMAN, 2004, p. 33). Para transformar
o mundo, é necessário estabelecer um plano, um projeto para a criação da
sociedade futura. Outra passagem do capítulo é reveladora sobre esta
mentalidade escatológica da modernidade:
“A história da era moderna tem sido uma longa cadeia
de projetos considerados, tentados, perseguidos, compreendidos, fracassados ou
abandonados. Os projetos foram muitos e diversos, mas cada um deles pintou uma
realidade futura diferente daquela que os projetistas conheciam. E uma vez que
‘o futuro’ não existe enquanto permanece ‘no futuro’, e que ao lidar com o
não-existente não se pode ‘obter a certeza de um fato’, não havia como prever,
muito menos com precisão, como seria o mundo a emergir na outra ponta dos
esforços de construção”
“O bem maior só pode ser obtido por um preço:
justamente com seus benefícios, ele tende a acarretar consequências tão
indesejáveis quanto imprevisíveis, embora estas últimas sejam normalmente
minimizadas ou ignoradas no estágio de produção do projeto sob o pretexto da
nobreza das intenções gerais” (BAUMAN, 2004, p. 34-35)
A principal consequência dos projetos
modernos, sejam elas intencionais ou não, é o refugo humano, as pessoas que não
se enquadram nos ideais futuros. Podemos ver isto claramente nos regimes
totalitários, como o nazismo e o comunismo, onde grupos de pessoas classificadas por raça ou classe eram
literalmente eliminadas da sociedade “ideal”, mas também podemos ver os efeitos
colaterais inevitáveis dos projetos modernos, dentro do qual nos também
vivemos, onde massas humanas não se enquadram na forma de vida adota pela
sociedade. Bauman cita, logo no início do
capítulo, as pessoas que não conseguem se adequar à chamada “sociedade de
consumidores”: se antes, na época da “sociedade de produtores”, as gerações
possuíam estabilidade quanto ao estilo de vida que levavam (emprego garantido,
Estado provedor de bem-estar, estabilidade nas relações sociais), hoje a vida
moderna nos pressiona a nos adaptar à fluidez e à instabilidade das mudanças
constantes e cada vez mais rápidas na esfera socioeconômica, onde nada mais é
garantido, nem mesmo as relações pessoais. A “modernidade líquida” (não
comentado no capítulo) de Bauman é o mundo das mudanças rápidas onde nada é
permanente e onde tudo passa tão rápido quanto chega. E quanto mais as coisas
mudam, mais projetos surgem para tentar reparar os estragos dos projetos
anteriores. No dizer do autor, vivemos num “excesso de produção de projetos”
(p. 35) acreditando que cada um trará a solução dos problemas criados, criando
assim novos problemas futuros. Cada vez mais projetos, cada vez mais novos
problemas, cada vez mais novos refugos humanos.
(Zygmunt Bauman, 19/11/1925 - 09/01/2017)
É inerente à modernidade a
necessidade de transformar a realidade. O homem moderno não se satisfaz com o
mundo “que aí está” e almeja o mundo ideal futuro imaginado, pensado e aplicado
através do projeto. Nisto subjaz a concepção de que a natureza humana é frágil,
que está à mercê de forças que ela não pode controlar. Bauman resgata uma
passagem de Francis Bacon que diz “a natureza, para ser comandada, deve ser
obedecida”. O homem moderno, porém, não tomou este enunciado como um chamado à
humildade, e sim ao desafio. Portanto, a natureza, seja no sentido material ou
humano, deve ser controlada pelo homem na expectativa de superar as crises e
desastres do passado. Se na pré-modernidade era a irracionalidade e a
superstição de lançava o homem ao desastre, então caberia à razão guiar a
humanidade para um futuro seguro e luminoso:
"Guiada
pelas leis humanas, a humanidade seguiu em frente se arrastando, enquanto era
fustigada, pressionada e atormentada pelas forças da irracionalidade, do
preconceito e da superstição. Comparado com a parte inumana do universo que não
conhece ‘erro’, o passado humano só podia aparecer como uma estufa da estupidez
e da malevolência, e como uma longa sequência de crimes e erros. A única ‘lei
da história humana’ que se podia imaginar era a necessidade de a razão assumir
onde a espontaneidade humana havia falhado de maneira espetacular "(BAUMAN,
2004, p. 40-41)
A modernidade é (...) um estado de
perpétua emergência”, diz Bauman, sem a qual cairíamos no caos, na ausência
total de normas e, portanto, de ordem. “A modernidade é uma condição da
produção compulsiva e viciosa de projetos” (p. 41).
Se há projetos, então há agentes, há alguém que pensou neles antes que fossem
aplicados. A pergunta que fica é: quem cria os projetos? De onde vêm as ideias
que guiam sua implementação e quem as aplica? Bauman afirma que o principal
autor é o Estado-nação moderno (aqui ele ignora os agentes individuais, como
políticos, acadêmicos, ideólogos, etc). Mesmo em declínio, “a despeito do
acúmulo de evidências sobre o status ficcional das afirmações de soberania do
Estado”, seu “monopólio permanece incontestável ainda hoje” (p. 45). Bauman é
incisivo quanto ao papel do Estado na formulação da ordem, incessantemente
almejada pelos projetos da modernidade. E da ordem surge o refugo humano:
“Por
toda a era da modernidade, o Estado-nação tem proclamado o direito de presidir
à distinção entre ordem e caos, lei e anarquia, cidadão e homo saucer*, pertencimento
e exclusão, produto útil (= legítimo) e refugo.” (2004, p. 45)
Interessante notar que autores de diferentes matizes, como Eric Hobsbawn ("Nações e Nacionalismos") e John Lucks ("O Fim do Século XX"), provavelmente concordariam com o enunciado sobre o Estado-nação, dado que os dois historiadores consideravam o nacionalismo sentimentos ainda muito vivos e atuantes até poucas décadas atrás. É do nacionalismo que o Estado-nação moderno bebe de suas forças, retroalimentando-o.
O projeto da modernidade, capitaneado pelo
Estado-nação moderno, comporta múltiplos projetos que se entrecruzam, se
sobrepõem, se complementam, se anulam e entram em choque. Numa sociedade em
constante e cada vez mais rápida mudança, as gerações encontram-se angustiadas
frente à perda de estabilidade, seja no trabalho, seja na vida pessoal. É o caso da chamada Geração X, com a qual Bauman inicia este capítulo que também é
início do livro: fortemente atingidos pela instabilidade socioeconômica, a Geração X, composta por pessoas nascidas entre as década de 1960 e 1970, foi
fortemente afetada por sofrimentos até então desconhecidos, um novo tipo de
mal-estar que se somatiza, por exemplo, em doenças como a depressão. Este
mal-estar é o medo de um mundo que não fornece mais segurança de qualquer tipo, nem mesmo material.
Derrubado o senso do eterno provindo
das grandes religiões como o cristianismo, a sociedade moderna, ao avançar à
pós-modernidade, perdeu qualquer eterno no qual se agarrar, e tenta fazer dos
seus projetos planos que durem para sempre, que sejam tão eternos quanto a
mensagem divina. Na medida em que os projetos se desenvolvem, novos problemas
surgem e projetos antigos desaparecem. Aqueles que se viam falsamente
confortados pelo emprego estável, pela vida fisicamente segura e pelas relações
duradouras, agora veem-se no meio de novas tempestades causadas por novos
planos que planejam tirá-las de campo. Decisões políticas, planos empresariais,
crises dos mais variados tipos que ninguém sabe de onde e quem começou, guerras
do outro lado do mundo... Tudo concorre para a instabilidade. O refugo humano
por vezes se recicla, mas se acumula na medida em que a modernidade caminha e
tenta recriar o Paraíso perdido das gerações passadas. O projeto é a tentativa
de recriar este Paraíso, que está lá, fixado no eterno, e que não pode de
maneira alguma ser estabelecido neste mundo.
* Categoria do antigo direito
romano que definia a pessoa fora da jurisdição humana e divina. Esta pessoa era
considerada desprovida de valor (BAUMAN, 2004).