Há poucas semanas li um chocante trecho da obra O fim do homem soviético, da laureada escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, onde um entrevistado confessa ter denunciado o tio para os bolcheviques quando adolescente ainda no período da Revolução Russa. O homem bastante idoso era um comunista irredutível. Não pude deixar de pensar como a ideologia pode enlouquecer uma pessoa.
A primeira vez que associei conscientemente loucura com ideologia foi a publicação de uma postagem do empreendedor Ícaro de Carvalho no Facebook sobre as complicações que Daniel Fraga, um dos pioneiros da divulgação do bitcoin no Brasil, teve com a justiça. Segundo Ícaro, Fraga, um adepto do libertarianismo, defendia ideias totalmente sem cabimento e foi processado por xingar políticos e juízes na internet sendo condenado a pagar uma multa. E o que Fraga fez? Colocou todas as suas riquezas em criptomoedas e desapareceu comprando um briga contra seu declarado inimigo, o Estado.
Ícaro sentencia: "Tanto o esquerdista quanto o libertário, ao longo do tempo, passam a enxergar inimigos em todos os lados; cada esquina existe algo que quer só te fazer mal... e isso destrói a sua cabeça." A diferença é que os esquerdistas causam muito mais estragos a si e aos outros do que os libertários, pois sua história de erros é bem mais extensa e seus adeptos bem mais numerosos do que o os últimos.
A ideologia não busca explicar a realidade, mas adaptá-la às suas premissas, moldar o redondo à sua forma quadrada. É o que afirma a filósofa Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo. Em sua face mais extrema, ela tudo subjuga invertendo a lógica do tempo ao reler o passado conforme sua lente presente e definir o futuro como algo superior à Providência. São nesses casos que princípios abstratos como "igualdade", "revolução", "liberdade" ou seja lá o que a ideologia em questão enuncie, estão acima das coisas concretas ou, pior ainda, das pessoas, as mesmas que você encontra ao seu lado ao se virar na cama depois de uma noite bem dormida.
Svetlana entrevistou Ivan Petróvich N., então membro do Partido Comunista desde 1922. O velho homem passou a totalidade da história soviética - a União foi criada oficialmente naquele ano - até os anos 1990 como comunista convicto, mesmo após ter sido preso arbitrariamente pela NKVD de Stálin no final dos anos 1930 após delação de um vizinho, ter também sua mulher presa, ficar numa solitária por um mês, testemunhar diversas prisões arbitrárias e tomar conhecimento diversas torturas e execuções.
Constrangido pela consciência ardente, Ivan relatou a mais dolorosa de suas lembranças depois que a escritora que o entrevistava desligou o gravador.
"Sem gravador... Que bom... Eu preciso contar isto para alguém...
Eu tinha quinze anos. Os soldados vermelhos chegaram na nossa aldeia. Montados. Bêbados. Era o destacamento de aprovisionamento. Dormiram o dia inteiro e à noite reuniram todos os membros do Konsomol. O comandante discursou: 'O Exército Vermelho está faminto. Lênin está faminto. E os kulaks escondem o trigo. Colocam fogo'. Eu sabia que o irmão de minha mãe... o tio Semion, tinha levado para a floresta uns sacos de grão e enterrado. Eu era do Konsomol. Tinha feito o juramento. De madrugada, fui até o destacamento e levei todos eles até aquele lugar. Eles encheram um carro inteiro. O comandante apertou a minha mão: 'Cresça depressa, irmão'. De manhã, eu acordei com os gritos da minha mãe: 'A casa do Semion está pegando fogo!'. O tio Semion foi encontrado na floresta... ele foi feito em pedaços pelos sabres dos soldados vermelhos... Eu tinha quinze anos. O Exército Vermelho está faminto... Lênin... Tinha medo de sair na rua. Fiquei em casa, chorando. Minha mãe adivinhou tudo. De madrugada, ela colocou uma trouxinha nas minhas mãos: 'Vá embora, filhinho! Que Deus perdoe você, seu infeliz'. (Cobre os olhos com a mão. Mas meu mesmo assim vejo que ele está chorando.)
Quero morrer como comunista. É meu último desejo..."
Levada como princípio de todas as coisas, a ideologia não só enlouquece, como destrói a vida. É a negação da Verdade e por isso mesmo a realização da morte.
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