Há tempo não participava de um encontro de família. Domingo, dia de tempo bom e temperatura muito agradável, algumas pessoas, todas elas conhecidas, receberam uma moradora expatriada para o outro hemisfério da Terra. Estávamos em um pequeno salão de festas encravado nos fundos de um pequeno condomínio. Um refúgio que apenas olhares um pouco atentos poderiam notar.
Havia pouca luz natural, e mesmo com amplas janelas do lado do sol que descia ao oeste, o grande e novo edifício vizinho fazia sombra no salão. No lado oposto, a leste, quatro janelas davam acesso ao corredor de pedestres que, se estendendo da entrada do condomínio até o fundo do comprido terreno, tinha parte de sua extensão coberta pelos apartamentos e outra parte com vista ao céu por entre tijolos avermelhados. Ao norte, apenas uma parede com uma uma mesa e sobre ela a comida da tarde, como pizza de sardinha - delícia, há tempo não me deparava com uma -, cuca, cachorrinhos e algumas bebidas, e do outro lado, ao sul, a porta de entrada do salão, através da qual era possível ver a escada que dava acesso aos andares acima.
Notava que a parede que nos separava do corredor parecia ter um revestimento de madeira e em alguns momentos prendia minha atenção. Bati no material, como alguém que bate levemente em uma porta, que parecia estar oco. Bati noutra porção do lado oposto da coluna de concreto, mas o som confirmava a solidez do objeto. A fugaz curiosidade da estrutura interna da parede mostrava que havia, sim, um ponto oco, questão que não valia à pena a atenção, senão sua textura e cor.
A madeira tem uma capacidade de nos remeter a uma residência, um lar, local de convívio entre pessoas e membros da família. É ela mesma parte da vida, extraída de um ser que doou um pouco de si - não necessariamente de forma consensual, claro - para acolher outros seres que se doam uns aos outros. Um material perfeito para se sentir o aconchego de um ambiente discreto e privado.
Por outro lado, o salão tinha o paradoxo de ter seu único período de sol coberto por um edifício com aquelas linhas retilíneas típicas da arquitetura moderna, fazendo o local perder boa parte de sua luz natural. Mas estar ali, debaixo de dois andares de tijolos avermelhados e escondido detrás de um monstro de concreto, não parecia ser algo tão ruim assim. Pouca luz, poucas janelas vizinhas capazes de notarem o murmúrio e as risadas das conversas em família, pouco som das raras pessoas que transitavam pelo corredor ao lado, algumas camadas de tijolos entre a mesa coberta com bebidas, doces e salgados e os moradores acima e ao lado e muitos metros da distante rua onde alguns automóveis deslizavam sobre o asfalto novinho. O salão, que era de festas, também era ideal para ler um livro, relaxar ou dormir.
Em dado momento de aperto, pedi a chave ao meu primo morador do local e subi ao apartamento, onde também satisfiz minha curiosidade visual após anos de ausência. Ao entrar na sala, deparei-me com um dos presentes assistindo a um jogo de futebol deitado no sofá, um tablet à sua frente e com a cabeça mais para lá do que para cá, como denunciavam as pálpebras que oscilavam entre uma débil atenção ao jogo e um fechamento da consciência para o inexplorado mundo interior. Ambiente escuro, janela quase totalmente fechada e ainda o edifício com sua imponente sombra do lado de fora. Madeira e tijolos em muitos detalhes e, finalmente, o pequeno banheiro, alvo de minha rápida visita. Ao lado esquerdo do vaso acima de quem está em suas necessidades - não era meu caso - havia uma janela de vidro fosco com molde em madeira dividida em duas porções, uma delas aberta com uma estreita vista para o vão livre do corredor. Olhei celeremente para fora e pensei: ninguém jamais imaginaria que eu poderia espionar os transeuntes daqui. Me sentia como se estivesse em um esconderijo com acesso exclusivo para mim, meu local secreto com vistas para o mundo, o pequeno mundo dos vizinhos desconhecidos e das luzes refletidas nas paredes
Se estivesse de posse do apartamento ou do salão teria a oportunidade diária de gozar da privacidade e da reclusão tão caros aos leitores e estudiosos e do aconchego ideal para noites frias ou de chuva - já que raramente poderia contar com a neve em minha cidade. Me sentiria em casa ou, na pior das hipóteses, no local perfeito para um trabalho perfeito.
Não cheguei a ponderar se moraria em local como esse, que exigira uma mudança radical de rotina. É difícil sintetizar a complexidade de uma vida cotidiana numa equação simplificada em tão pouco tempo. Mas certamente teria momentos de felicidade se pudesse mergulhar num espaço onde o mundo exterior fosse suspenso por algumas horas e estivesse protegido das loucuras alheias. Seria possível realizar, quem sabe, um pouco da felicidade que, para mim, sustentam-se em momentos de paz duradoura. Um monasticismo urbano voltado às atividades do mundo.
Findo o encontro, voltei para casa já com minha cidade mergulhada na metade escura do mundo. Mas foi comigo a lembrança, há tempos hibernada em minha memória, de um desejo juvenil de ter um local só para mim onde pudesse ter uma vida à parte do constante transição das coisas, onde o tempo pudesse ser suspenso para que eu pudesse ser eu.
Às vezes temos esta nostalgia de sangue, queremos reproduzir nas coisas da vida o aconchego uterino, como se fora de nosso ambiente ideal tudo fosse um parto. Mas a vida é isso mesmo: um parto.
Muito bem redigido e profundo na medida certa
ResponderExcluirMuito obrigado!
ExcluirEscreve, descreve e sente muito bem esse Marcos. Adorei a narrativa, a percepção e a conclusão "a vida é isso mesmo: um parto".
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