A afirmação de que o banheiro é lugar para filosofar faz parte do típico humor brasileiro, cujo repertório está preenchido com as piadas mais criativas possíveis. Mas há também a possibilidade de, na atividade intestinal combinada com a inatividade física dos membros do corpo, se realizar uma série de ações, como ouvir música, ler trechos de um bom livro, rótulos de produtos - certa vez um amigo meu confessou que fazia isso - ou, por que não, filosofar de verdade.
A quente tarde desta quinta-feira não era das mais convidativas à filosofia. De qualquer forma, aproveitei o momento para revirar algumas páginas de O último homem soviético, da escritora bielorrusa Svetlana Aleksiévitch. O tema? O novo e inesperado amor de um homem cujo pai, ex-comandante político de uma divisão da Aeronáutica soviética, só tinha uma coisa em mente: tornar o filho um herói das Forças Armadas. O entrevistado detestava a vida militar, vivia "hipnotizado" pela ideia de morte, mas subitamente se viu apaixonado por uma moça, situação que virou sua vida completamente do avesso no melhor sentido da palavra. Uma das consequências de estar apaixonado, disse ele, era ver a realidade de forma mais viva. "Tudo parece muito, muito próximo" dizia o entrevistado, tentando definir o que parecia indefinível. "O mundo... se revela em infinitos detalhes". Tudo fica mais evidente e colorido.
Enquanto minha cabeça absorvia este momento marcante, pude notar a distância em que eu estava deste momento. O relato do homem vivo e realizado contrastava com o peso do meu dia. O ambiente estava relativamente abafado, e mesmo com sol lá fora parecia haver pouca luz. A penumbra das janelas pequenas cobertas por finas cortinas e a porta do corredor - aberta, não havia ninguém em casa naquele instante - não davam conta de uma luminosidade natural. Ao contrário do homem apaixonado, que vê a realidade mais viva que "se revela em infinitos detalhes", notei algo em mim que estava fora de lugar.
O que eu estava fazendo com minha vida? Não deveria estar vivo, apaixonado pela vida mesma? Em verdade, não era o ambiente abafado e pouco iluminado que me oprimia, mas minha própria alma que se tornara mais escura e sufocada. É notória a ideia de que projetamos nossos pensamentos e sentimentos no mundo, e era inevitável que uma atitude de rejeição quanto à minha vocação de ser alguém transbordasse para uma rejeição ao mundo exterior, essa realidade maldita recheada de hostilidade, agressividade, maldade e controle. Um excelente subterfúgio para negar minha caminhada de vida e sabotar minha própria realização enquanto pessoa.
Frustrado, pensava que meses de orações e súplicas haviam resultado em resvalos e paralisação. Mas Deus é sábio e amoroso. Ele não faz por nós o que podemos fazer, mas aponta o caminho, dá o toque, o sinal de por onde seguir e, mais importante de tudo, na hora certa. O homem, esse ser livre por excelência, deve pegar os remos e trilhar o desafio mar a dentro. Em situações de sofrimento a alma reage como num terremoto: na fenda aberta penetra a luz, que ilumina as camadas mais profundas num misto de revelação pessoal com fotossíntese interior. E numa dessas camadas penetrou o relato do homem vivo eternizado na literatura em contraste com o eu em letargia com os remos atirado a alto-mar. De repente, de forma quase súbita, fui pego com as calças nas mãos - ou sem elas, e notei que minha orações, que definhavam aos poucos, acabaram por não serem vãs, cumuladas de perseverança.
As coisas são assim mesmo, da inesperada combinação entre um inapropriado ambiente filosófico e o testemunho de um desconhecido escrito por outra pessoa desconhecida, pode surgir a resposta de que precisamos. Todos nós precisamos dessa misteriosa pedagogia de vida que são os terremotos pessoais que, apesar de potencialmente trágicas, não são fim do mundo.
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