Existe um país que me persegue. Ele é conhecido, entre bebidas destiladas e frio extremo, pela ostensiva prática de espionagem. Não que seja o único a praticar isso, obviamente, mas se convencionou a vê-lo do Ocidente como um mistério indecifrável, e o Brasil, fortemente influenciado por aquilo que dizem os americanos e europeus, entrou no roldão no carnaval desses estereótipos.
A Rússia me persegue, ou talvez eu persiga a Rússia. E mais uma vez fui pego por uma espécie de espião invisível que, na hora "H", resolveu dar o ar da graça.
O mais recente fato curioso foi neste último dia de novembro, quando estive mais uma vez no Centro de Porto Alegre para os afazeres burocráticos e aproveitei para dar uma esticadinha num sebo, na famosa ladeira que liga a Rua da Praia com a Praça da Matriz.
Espremido entre elevadas paredes de livros, uma espécie de paraíso estreito, ao fundo do corredor mexi de forma um tanto aleatória nos livros sobre religião quando, de repente, um pequeno cartão de promoção da cultura soviética caiu ao chão. Não havia pensado em nada sobre a Rússia no momento, mas o cartãozinho comunista estava lá entre os livros quando, ao puxar um deles, veio num leve tombo ávido a se apresentar.
O material comemorava os oitenta anos da Revolução Russa com a inscrição "1917 1987", e por entre os números se erguia a Torre Spasskaya, a principalmente do Kremlin de Moscou, com a sua famosa estrela vermelha ao topo, tendo do lado direito outras duas torres de seus muros avermelhados e do esquerdo a cúpula do Senado do Kremlin com a bandeira soviética tremulando. Ao centro, um exemplar de uma revista comunista em português e abaixo a chamada "Não se esqueça de assinar a tempo jornais e revistas soviéticas!".
Não me furtei de pensar, no mesmo instante, que aquilo só poderia ser para mim. Não me refiro à propaganda comunista, mas à referência à Rússia, enorme nação imperial que, apesar de minha insignificância, volta e meia aparece para me dar um alô.
Não sei quando comecei com o fascínio por esse país ao mesmo tempo tão distante e tão presente, mas algumas coisas dão o que pensar. Na juventude, sempre achei Moscou fascinante por sua arquitetura grandiosa e ruas largas, cujos projetos visavam remodelar a cidade como exemplo da cidade comunista ideal e uma portentosa capital imperial. Tanto as peculiares igrejas - com a emblemática figura da Catedral de São Basílio, símbolo máximo da Rússia - quanto as chamadas Sete Irmãs de Stálin, em parte inspirada na própria arquitetura russa com bordas e torres pontiagudas, apresentam Moscou como centro de um império.
Certamente fui atraído pelo imaginário popular ou, diria melhor, pela figura estereotipada e militante da "grandiosidade" comunista, que infundia nas consciências juvenis o sonho de transformação da humanidade em todas as suas dimensões. Grandiosidade, universalidade, ideal, uma sedução sem fim de um universo inteiramente novo representado pela Terceira Roma, agora sob vestimentas materialistas. Por detrás da imensidão material e espiritual da Rússia, pulsava o ímpeto revolucionário que fizera da nação hospedeira seu Cavalo de Tróia. Amarga ilusão regada a muito sangue.
Recordo-me de um ex-professor de pós-graduação lendo um texto a respeito do cosmismo, ideologia tão exótica e misteriosa quanto o país que lhe dera origem, que propunha uma nova evolução da humanidade em sua exploração do espaço, cujo resultado seria - pasmem! - a vida eterna! Uma loucura tipicamente russa e sedutora para um país com mania de grandeza. No artigo, um integrante do governo declarava, abertamente, sobre "o caráter nacional do povo russo, acostumado a pensar em categorias globais e pronto a sacrificar a vida por uma ideia". Ora, ora, quão fascinado sou por ideias amplas, arrebatadoras e reveladoras a respeito da vida, do homem, da História humana, do Universo inteiro!
Este foi o principal motivo pelo qual sempre me senti atraído pela mensagem de Fátima. Uma atração que por muito tempo foi muito mais mental do que espiritual. Seduzido pela temática impactante e abrangente, via as revelações sobre a História como muito mais interessantes do que o plano divino de salvação das almas e de paz no mundo, suas verdadeiras razões de existir. E nessa história tão incrível quem estava lá com uma menção toda especial? A Rússia, como pivô de uma época, a minha época, chave para a paz no mundo. A mensagem se encaixava muito bem nas "categorias globais" como forma de pensar o mundo. Minha atração pelo conteúdo era inevitável, mas até então boiava em divagações ao estilo History Channel.
Apenas recentemente, em 2019, entrei de roldão na mensagem de Fátima graças a uma paróquia próxima de casa que realizava a Devoção dos Cinco Primeiros Sábados, e só depois disso entendi claramente, lendo as memórias da Irmã Lúcia, que a Consagração da Rússia não era o único fator da paz mundial, mas um de seus pilares junto com a Comunhão Reparadora. Fisgado pelo interesse pessoal pela Rússia, fui parar na frente de Nossa Senhora de Fátima como que um participante não só da História humana, mas do tempo de Deus, que não se mede por padrões humanos nem se limita a fronteiras nacionais.
Estar com Fátima é estar na Rússia. Basta menos do que um passo e menos do que o pulsar do ponteiro do relógio para atravessar mais de meio mundo. Quando me dobro frente à Nossa Senhora de Fátima, sei que um pouco de meu espírito repousa no distante país, da foz do Rio Neva à tundra siberiana, pois foi de meu interesse pela imensa nação que descobri, para conforto interior, a real dimensão da devoção a que me vinculava.
A revelação pessoal não pára por aí. Em fins de 2019, descobri o repositório digital do jornal Voz de Fátima, dedicado à difusão da mensagem e publicado todo o dia treze de cada mês desde outubro de 1922.
Este que voz escreve veio ao mundo em 12 de fevereiro de 1981, e dada as "coincidências" que surgem naqueles que buscam uma vida espiritual, resolvi investigar o que se publicava a edição do dia seguinte. A situação não poderia ser mais reveladora. Dizia o título da capa: "Fátima e a Consagração ao Imaculado Coração de Maria". Chamada chocante para quem se dispôs, há dez anos, realizar a Consagração Total pelo método de São Luís Montfort, uma devoção de entrega à Maria Santíssima. Mas as coisas não pararam por aí; o subtítulo continuava: "Em diversas manifestações, Nossa Senhora pediu a consagração ao Seu Coração Imaculado: Consagração do Mundo e Consagração da Rússia.", e no pé da capa, outra reportagem anunciava seu título: "O Coração de Maria e os Primeiros Sábados".
De boca aberta, fiquei a imaginar o por que da impressão desse jornal exatamente com esse conteúdo menos de vinte e quatro horas depois de sair do delicioso aconchego materno. Saído de um aconchego, já se preparava outro com material feito especialmente para mim no futuro. Sim, essa edição foi impressa para que eu pudesse lê-la trinta e oito anos anos mais tarde. Ninguém imaginava minha existência, mas Alguém desde antes do princípio das coisas não só imaginava como já havia decidido tudo.
Outra impressionante "coincidência" é o salto no tempo e no espaço que me fez olhar para uma distante terra gelada no passado. Explico. Na Renovação Carismática, bem como em certos grupos de oração, realiza-se a cura da árvore genealógica, procedimento que é, pelas palavras do falecido exorcista Gabrielle Amorth, ponto de discussão na Igreja Católica dadas suas sensíveis implicações teológicas. Como nunca fui autoridade tarimbada no assunto, pude conhecer dessa árvore pelos frutos quando tive experiências com orações de libertação.
Em meados de 2009, tive o enorme privilégio de receber umas dessas orações que penetram nas gerações passadas. Na ocasião, queria descobrir a origem das dificuldades de relacionamento com meu pai, algo que perpassou toda minha vida.
Fui colocado sentado no centro de um sala em frente a uma imagem de Jesus, que expressava um olhar simplesmente irresistível a causar um desarme da alma. Ao meu redor, um grupo de mulheres introduziam orações católicas e invocação a Santíssima Trindade, anjos e santos, e impunham docilmente as mãos sobre mim. Buscando responder à minha ansiosa dúvida, uma das mulheres presentes me informou que visualizava um cossaco, e este tentava impor ao seu filho modos de agir e até mesmo o que ele deveria ou não pensar. Isso mesmo, um cossaco, e na Rússia. O homem, distante no tempo e no espaço, era antepassado da linhagem paterna, coisa que jamais imaginei nem por desejo. Como não possuía dons e sensibilidades afloradas, muito menos tinha o conhecimento teológico de um Adolphe Tanqueray ou as experiências de Santa Teresa d'Ávila, tive de me contentar com a descrição do local: havia neve. E como poderia ser a Rússia? Pois era a Rússia, respondeu a mulher, e o homem era um cossaco, o que me faz concluir que a libertação retornava pela minha linha familiar até meados dos séculos XVII-XVIII.
Outro laço com a Rússia foi mais indireto, mas não menos surpreendente. Ingressei no mencionado grupo de oração em 2012, e uma das mais marcantes experiências ocorreram com canções religiosas, mais especificamente uma versão específica da Ave Maria atribuída ao compositor italiano do século XVI Giulio Caccini.
Todas as vezes em que ouvia o som pela voz de um dos coordenadores do grupo, meu peito borbulhava como se produzisse vapor a explodir pela garganta, e que subitamente transbordava como a caneca com leite fervilhante. Não era o curto Neva, mas o vasto Volga que vinha à tona. A combinação de sutileza, profundidade e força da melodia tiveram em mim efeito avassalador. Não só a melodia em si, mas quem a cantava foi determinante. Richard Emunds era cantor profissional e se tornou meu padrinho de crisma, instrumento providencial decisivo para minha volta à Igreja. Através da canção a Nossa Senhora, eu vivia aquilo que costumei chamar de "experiência de Deus", o "sentir", como diz a banal linguagem popular. As cicatrizes abertas pela canção eram como que buracos por onde penetrava e jorrava a graça. Nunca mais quis me curar.
Mas que raios esse episódio tem a ver com a Rússia? Nessa última semana de novembro descobri que a mencionada canção da Ave Maria não era de autoria de Caccini, mas de Vladimir Vavilov, compositor russo que criou a música em meados de 1970 na então Leningrado publicando-a de forma anônima. Um duplo sopro providencial que fez brotar uma canção profundamente espiritual num regime antirreligioso e a fez alcançar essa alma então desnorteada por sonhos ilusórios e sentimentos desequilibrados que pululavam em lágrimas.
Não sei se Vavilov pensava em conversões ou possuía alguma devoção mariana especial, mas por seu valiosíssimo instrumento Nossa Senhora fez comigo o que ainda pretende fazer - e fará - com a Rússia.
Mas enquanto a conversão da Rússia prometida em Fátima e Garabandal não chega, a Santa Sé e o Patriarcado de Moscou trabalham sutilmente nos bastidores por uma aproximação. Um passo ousado foi dado após vinte anos de discussão quando ocorreu o primeiro encontro da história entre um Papa e um Patriarca russo, Francisco e Kirill. O encontro teve direto abraços, sorrisos e uma Declaração Conjunta com temas muito delicados O ano era 2016, e o dia - sim, acreditem - 12 de fevereiro. De tão pessoalmente representativa, a data soava quase como uma ironia. Era dia do meu aniversário, praticamente um presente pessoal.
Na época não pude esconder minha alegria, que brotou discretamente quando soube da novidade pela internet, como se eu tivesse colocado a mão na sensibilíssima diplomacia Santa Sé-Moscou e participado de algo tão surpreendente. Obviamente seria ingenuidade pensar que disso pudesse vir a definitiva união das igrejas, algo tão improvável como o Papa e o Patriarca acenderem velas num bolo de aniversário e cantarem "Parabéns pra você" para um habitante desconhecido nas plagas do Sul do Brasil.
Voltando ao 30 de novembro, uma pequena coincidência se revelaria pouco menos de seis horas depois do cartãozinho soviético me dar um alô. Eu havia começado a escrever esse texto comentando da misteriosa perseguição que o mencionado misterioso país vem promovendo à minha pessoa quando interrompi a escrita, fui à missa e soube, pela voz do padre, que estávamos comemorando o dia de Santo André.
Um dos apóstolos de Cristo, André é considerado ninguém menos do que fundador do cristianismo no Oriente e o santo mais venerado na Ortodoxia. Coincidência? E no mesmo dia, o Papa exortava, junto ao Patriarca de Constantinopla, que os ortodoxos buscassem a unidade de ambas as igrejas. Este texto tinha de ser escrito.
Todos os dias somos pegos com as calças na mão ou com o cartãozinho que cai ao nossos pés. Se há algo providencial entre minha relação com a Rússia ou se ela é mais um instrumento da providência que Deus dispôs para minha conversão, só o futuro dirá. E o futuro a Deus pertence.