Nos seis dias em que fiquei em Florianópolis nesse mês de dezembro, a quarta-feira foi o mais movimentado. Conheci dois locais diferentes do município - Armação e Pântano do Sul - e ainda transitei brevemente por aqueles becos tipicamente nacionais, que na ilha são chamados de servidão.
Cabe destacar que Floripa tem seis rodovias só para si, as SC's 401, 402, 403, 404, 405 e 406, sendo que a penúltima liga o Campeche ao Pântano do Sul. Se por vezes a pista é estreita e a velocidade é limitada, imagina o que não é num servidão, onde o espelho do carro quase bate nos muros das casas.
A primeira parada foi na Armação, bairro criado em 1772 com o nome de Armação da Lagoinha, uma referência aos locais de beneficiamento de produtos vindos da pesca da baleia, prática que se espalhou na região a partir de 1730. Chegando ao seu minúsculo centro, damos de cara com uma igreja, a Sant'Ana e São Joaquim, com a inscrição "1772" sobre a porta de entrada.
Fiquei um tanto contrariado ao me deparar com a cor vibrante do amarelo recém pintado e a data estampada na fachada. O conjunto não combinava, havia algo de não-espontâneo naquilo. E sua torre, acrescentada ao prédio em 1953, parecia um pouco deslocada para um edifício religioso do século XVIII. Só depois descobri que, apesar de antiga, a tradicional igrejinha não é mais a mesma que fora no passado e nunca fora tombada tendo sofrido diversas intervenções.
Na sua frente, outro contraste, o asfalto largo que se abre até a beira da praia e os fios de alta tensão que recortam o limitado visual da igreja. A área aberta, disputada por alguns motoristas ansiosos para estacionar um automóvel - ou largá-lo sem muito critério num momento de emergência - também é arena de manobras ousadas de uma linha de ônibus que, para cumprir a rota, realiza um habilidoso retorno sem deixar marcas nos arredores.
A praia larga ao longo da rodovia pela qual havíamos passado uns minutos antes se torna mais estreita na medida em que se aproxima do conjunto de casas do bairro. A areia, farta e macia, se torna mais exígua entre o novo calçadão do bairro e a passarela que dá acesso a Ponta das Campanhas; as águas calmas mantém os vários barcos de pesca flutuando livremente sob a proteção da Ponta; as casas, que ainda lembram suas origens portuguesas, se mesclam com algumas construções mais modernas perfiladas ao longo da linha da praia; e o verdejante Morro do Matadeiro, ao fundo, comprime as construções junto ao oceano fechando o conjunto da obra com sua onipresença. Está formado o cenário perfeito para um refúgio de tranquilidade e paz.
O dia abafado, depois transformado num cinza mais agradável que começava a tomar o topo do morro com uma neblina, parecia ideal para uma praia - até um grupo de três gurias se colocarem atrás de nós e uma delas, sem o menor pudor, resolver abrir sua vida privada para meia humanidade ouvir.
Passando pela passarela que dá acesso a Ponta das Campanhas, encontramos no alto uma imagem que, para minha frustração, não era de Nossa Senhora, mas de Iemanjá. É evidente que a expectativa para alguém apegado à Mãe de Deus era de que uma figura feminina, visível ainda na subida da Ponta, fosse Maria, mas logo percebi, pelo perfil da imagem, o cabelo negro e o tipo de vestimenta que a pessoa representada era alguém parecida com Ela, e não deu outra. Passando ao lado da imagem à beira do rochedo, me deparei com uma oferenda a Iemanjá de alguém que teve o bom senso de deixá-lo numa caixa protegido do vento. No alto do rochedo, a belíssima vista da Praia do Matadeiro, com a enseada arenosa, o pontilhado de surfistas - a praia está voltada ao mar aberto - e a foz do Rio Quincas (ou Rio da Armação) que recebe as águas do Rio Sangradouro e deságua para o mar num leito raso, travessia de acesso à praia vizinha. Se na areia reina - ou deveria reinar - a paz e a tranquilidade, no alto da Ponta das Campanhas a atmosfera é mais profunda, há um convite à contemplação, típica das paisagens amplas que transmitem, por sua vastidão, o senso de eternidade.
A Armação continuava tranquila ao longo da tarde. Com o horário de almoço totalmente desregulado, com pastéis e caipirinhas aleatórias, entramos num café cuja rua dá acesso à frente da igreja, com o detalhe de que já eram quase quatro horas. O tempo carregado com a umidade vinda do mar desaguou num chuvisqueiro reforçando a percepção de que estávamos num local frio, apesar do ambiente, da cidade e da temperatura dizerem o contrário. E detrás da janela ampla que dava para a rua estreita passaram as escandalosas, ao menos expansivas do que na praia. Seria realmente estranho chamar a atenção no meio da rua. Até mesmo nas praias brasileiras as coisas têm limite.
Com os bancos molhados e sujos pela areia deixados para trás, seguimos aos extremo-sul da ilha, na Praia do Pântano do Sul.
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